segunda-feira, 7 de abril de 2014

Promover o ódio possui limites: Justiceiros e quejandos

Cena 1: O Ministro Joaquim Barbosa, presidente do STF e do Conselho Nacional de Justiça, explicitamente afirma que aumentou a pena de muitos acusados no processo conhecido como mensalão para que as penas não prescrevessem.
Cena 2: Juiz no Rio de Janeiro é processado administrativamente pelo Tribunal de Justiça do referido estado por ter colocado um quadro de determinado pintor em que retrata cena de violência policial contra pessoas pobres. O fundamento do processo teria sido o fato de que, com isso, o juiz estaria fazendo um juízo de valor em relação a outra instituição do Estado importante para o sistema de segurança pública, tal como o Judiciário.
Cena 3: Na verdade, são várias cenas. Vários noticiários escritos e falados do país começam a divulgar notícias no sentido de que as comunidades de vários locais em todo o Brasil estariam fazendo justiça com as próprias mãos, amarrando supostos autores de crimes sexuais, furtos e roubos em postes nessas localidades, bem como dando surras nos referidos suspeitos.
Cena 4: Divulgada nas redes sociais mobilização para uma nova Marcha Por Deus, Pela Pátria e Pela Família, com esse título e com o número II. Nos dizeres da convocação, os responsáveis pelo movimento pedem um novo golpe militar no Brasil cinqüenta anos depois.
Voltamos. O leitor deve estar se perguntando no quê essas cenas se relacionam com o título da presente coluna e se haveria alguma relação entre as referidas cenas.
Tais cenas servem de mote para discutirmos o estágio de avanço ou retrocesso de nossa democracia constitucional. E aqui, já alertamos para o fato de que não dissociamos mais democracia de constitucionalismo.[1] Isso porque se democracia é um conceito que engloba várias concepções, entendemos que a melhor concepção de democracia é aquela que compreende tal forma comunitária como mecanismo que assegura uma comunidade de pessoas livres e iguais em verdadeiro regime de parceria, tal como desenvolvido por Ronald Dworkin.[2] Assim, para que a democracia enquanto governo do povo possa se realizar em seu maior grau é preciso que a comunidade reconheça aos seus membros iguais direitos tanto na esfera pública quanto privada. Direitos relacionados à igualdade e liberdade, tais como igualdade na estruturação dos projetos de felicidade, igualdade na profissão de fé, na escolha da profissão, na apresentação e defesa de ideias, no igual direito de associação, no igual direito de não ser considerado culpado até trânsito final de sentença penal condenatória, no igual direito a um processo que se desenvolva segundo os princípios constitucionais e legais, etc. Em outras palavras, uma democracia somente é digna desse nome se o próprio constitucionalismo se afirmar enquanto um conjunto de princípios que visam a estruturar e organizar a vida da comunidade de modo que todos os seus membros se sintam parceiros e queiram contribuir para o sucesso dessa comunidade. Portanto, democracia também se encontra umbilicalmente ligada à ideia de Estado Democrático de Direito.
Esperamos, então, que o leitor já perceba onde queremos chegar. Se, até então, muitos juízes decidiam casos fingindo aplicar um direito prévio criado democraticamente pelo povo, a afirmação do ministro Joaquim Barbosa escancara agora algo extremamente violador da nossa democracia constitucional: uma crença explícita proveniente do órgão responsável, dentre outras coisas, pela manutenção das expectativas normativas de comportamento da população em geral no sentido de que o Judiciário não pode ultrapassar ou contornar o direito democraticamente estabelecido. O seu papel, do Judiciário, deve ser, em um Estado Democrático de Direito, aplicar o direito criado pelo Poder Legislativo ou pelo Constituinte Originário (o povo soberano) e não criar um direito a partir de suas convicções pessoais, por mais cheia de boas intenções que elas sejam.
Por outro lado, essa situação toca profundamente nas outras cenas. Ora, em uma democracia constitucional deve-se assegurar a todos a livre expressão de ideias e pensamentos, justamente para que todos possam ser tratados como livres e iguais, ou seja, dotados de igual respeito e consideração.[3] É um atentado ao nosso sistema democrático que um juiz seja processado simplesmente por ter, através de uma obra de arte, externado suas opiniões e convicções, até porque isso de forma alguma atenta contra sua imparcialidade. Em um Estado Democrático de Direito, não podemos confundir imparcialidade da jurisdição com neutralidade. A última é sempre impossível![4]
Violação grosseira de nossa democracia constitucional também é revelada pela cena 3. Uma sociedade que se pretende democrática não pode compactuar com parte dos seus membros fazendo justiça com as próprias mãos. A garantia do devido processo legal substancial na esfera penal exige que as pessoas devem ser tratadas como sujeitos e não objetos revela o grau de civilização de uma comunidade. Ao mesmo tempo, a chamada presunção de inocência ou não culpabilidade também demonstra o respeito que a comunidade revela para com cada um de seus membros, até porque os erros judiciários estão aí. Justiçamento pela própria comunidade que se substitui ao Judiciário é vedado pelo ordenamento jurídico e pelo processo penal compreendido como jogo, em que as regras são compartilhadas tanto pelos participantes quanto pela própria comunidade.[5]
Por fim, a liberdade de expressão não pode ser utilizada para pregar o fim da própria democracia. Isso seria uma contradição em termos. Mobilização pelo retorno da ditadura revela muito da nossa sociedade: que não conhecemos nossa história, inclusive, porque, como bem mostra Emílio Peluso Neder Meyer[6], o STF, ao decidir sobre a compatibilidade da lei de anistia em face da Constituição de 1988, não compreendeu adequadamente que o direito à memória exige que a comunidade não se esqueça de suas atrocidades para que essa lembrança impeça que o passado se repita. A própria falta de responsabilização dos torturadores e criminosos que agiram em nome do Estado Autoritário Brasileiro cria na população, em geral, sentimento de que não há problema em se instrumentalizar as pessoas em nome da razão de Estado. Movimento em prol do retorno da ditadura não é liberdade de expressão, pois o que pretende pregar é o ódio, a intolerância e a falta de liberdade, devendo ser reprimida pelo ordenamento jurídico brasileiro.
Cabe dizer, com Jean Pierre Lebrun[7], que o ódio nos habita e seria muito bom que ele não estivesse em nós, não tivesse nos construído, não atuasse em nossas ações diárias, em nossas posições subjetivas. E fica mais fácil apontar o ódio no vizinho, no próximo, evitando o reconhecimento de que o ódio é pressuposto da Civilização, embora seja justamente por ela que tentemos manter um mínimo de convivência. Acolher e conviver com o ódio pelo e a partir do Direito é o mote de quem não quer ser Justiceiro, nem ser objeto dos Justiceiros. Conviver com isso é o dilema eterno dos humanos.
Essas cenas, como se percebe, demonstram que um pouco mais de 25 anos após a Constituição de 1988 nossa comunidade ainda não conseguiu criar ambiente de igual respeito e consideração entre seus membros, de modo que devemos temer pelo futuro de nossa democracia constitucional, caso não nos comprometamos efetivamente com o projeto constituinte que não foi de 1987/1988, mas que é o de nossa realidade: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, baseada no pluralismo e na dignidade de todas as pessoas.

[1] Sobre isso, vide: OMMATI, José Emílio Medauar. Liberdade de Expressão e Discurso de Ódio na Constituição de 1988. 2ª edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014; OMMATI, José Emílio Medauar. Teoria da Constituição. 3ª edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014; OMMATI, José Emílio Medauar. Uma Teoria dos Direitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.
[2] Sobre isso, vide, por exemplo: DWORKIN, Ronald. O Direito da Liberdade: A Leitura Moral da Constituição Norte-Americana. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
[3] Nesse sentido, vide: OMMATI, José Emílio Medauar. Liberdade de Expressão e Discurso de Ódio na Constituição de 1988. Op.cit.
[4] Nesse sentido, vide: OMMATI, José Emílio Medauar. Uma Teoria dos Direitos Fundamentais.Op.cit.
[5] ROSA, Alexandre Morais da. Guia Compacto do Processo Penal segundo a teoria dos jogos. 2ª edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.
[6] MEYER, Emílio Peluso Neder. Ditadura e Responsabilização. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2013.
[7] LEBRUN, Jean Pierre. O futuro do ódio. Trad. João Fernando C. Corrêa. Porto Alegre: CMC, 2008.
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Alexandre Morais da Rosa é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC.
José Emílio Medauar Ommati é mestre e doutor em Direito Constitucional pela UFMG e professor de Teoria da Constituição, Hermenêutica, Direito Constitucional e Administrativo no Curso de Direito da PUC Minas Serro.
Revista Consultor Jurídico, 4 de abril de 2014

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