Pouco se discute sobre a legitimidade ativa do Ministério Público na ação penal, se Extraordinária ( substituição processual) ou se Ordinária (direito próprio), embora seja uma das condições da ação penal. Na verdade, a Constituição Federal procedeu verdadeira revolução copernicana na legitimidade ativa da ação penal e até a presente data vem sendo ignorada, pois o foco dos estudos é no Código de Processo Penal e não na Constituição Federal.
Nesse sentido, transcreve-se trecho da Constituição:
Art. 129. São funções institucionais do Ministério Público:
I - promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;
VII - exercer o controle externo da atividade policial, na forma da lei complementar mencionada no artigo anterior.
Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
§ 1º - São princípios institucionais do Ministério Público a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional.
§ 2º Ao Ministério Público é assegurada autonomia funcional e administrativa, podendo, observado o disposto no art. 169, propor ao Poder Legislativo a criação e extinção de seus cargos e serviços auxiliares, provendo-os por concurso público de provas ou de provas e títulos, a política remuneratória e os planos de carreira; a lei disporá sobre sua organização e funcionamento. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
Os textos acima devem ser analisados de forma integrada e não isoladamente como é feito tradicionalmente.
Dessa forma, se o Ministério Público tem autonomia institucional e o Membro independência funcional, bem como cabe ao mesmo o controle externo da polícia, a ordem lógica da interpretação e atuação é diferente da preconizada pela doutrina atual. Não é a polícia que deve impor a ordem de prioridades ao Ministério Público, pois atualmente a polícia escolhe as prioridades para atendimento de ocorrência policial e para conclusão dos inquéritos policiais, o que vincularia o Ministério Público, pois acabam focando em pequenos delitos que são mais fáceis de apurar a autoria, e quase sempre presos em flagrante.
Importante ressaltar que Delegados e demais policiais não são agentes políticos e nem recebem remuneração através de subsídio. Portanto, Juízes e Promotores é que são agentes políticos, logo podem e devem fazer política pública criminal priorizando os casos penais mais relevantes. Nesse sentido transcreve-se texto de Alexandre Jésus de Queiroz Santiago: " Em conclusão no que toca ao tema proposto: considerando os frutos das preciosas reflexões doutrinárias de Hely Lopes Meirelles, o promotor de justiça é agente político, sendo assim ponto de influxo de regras pertinentes a esse status de agente público. Tal compreensão não se afasta do entendimento de outros doutrinadores, Celso Antônio Bandeira de Melo e Maria Sylvia Zanella Di Pietro, pois podemos perceber que o tratamento que a Constituição reserva aos promotores de justiça é assemelhado ao que se dispensa aos membros do Poder Judiciário, determinando, ainda, a Lei Magna, a sua remuneração através de subsídio, como o faz em relação a consagrados agentes políticos (membros de Poder, detentor de mandato eletivo, ministros de estado, secretários estaduais e municipais"
Outro aspecto importante é que quando a Constituição Federal de 1988 estabelece que cabe ao Ministério Público promover a ação penal, e de forma privativa, o faz em um aspecto estrutural bem diferente do previsto no CPP, em seu art. 24.
Quando o CPP de 1941 entrou em vigor, o Ministério Público integrava a estrutura do Executivo, pois estava previsto no art. 95 da Constituição de 1934 como “órgão de cooperação nas atividades governamentais”, juntamente com os Tribunais de Contas e os “Conselhos Técnicos”. Já que a Constituição Federal de 1937 (a polaca) praticamente nada se referiu ao Ministério Público.
Somente na Constituição Federal de 1946 é que voltou a tratar do Ministério Público em título específico, mas sem definir as atribuições (art. 125-128), embora tenha ficado na Seção do “Judiciário”.
A Constituição de 1967 também não se referiu às atribuições do Ministério Público apenas preservou a questão do quinto na composição dos tribunais, definiu a forma de seleção por concurso, e assegurou isonomia com o Judiciário, além de garantias como a vitaliciedade (implicitamente), irredutibilidade e inamovibilidade.
Contudo, a Constituição Federal de 1988 ampliou o papel do Ministério Público, com uma visão mais democrática, ou seja, não visou criar um “super” órgão de acusação, tanto é que não tem esta expressão, mas sim como garantidor de direitos fundamentais e da ordem jurídica justa. Ademais, destacou o Ministério Público da tutela do executivo, bem como a ação penal, com o objetivo de se focar no regime democrático de direito e da ordem jurídica.
Apesar de toda esta mudança na titularidade da ação penal, a doutrina e jurisprudência praticamente ignoram as mudanças constitucionais e focam na soberania do CPP de 1941.
Estas mudanças constitucionais são consideradas inexistentes pela doutrina processual penal quando tratam do processo penal, pois repetem conceitos da década de 30 e 40, focando no CPP e não na Constituição Federal.
E em conseqüência quando se fala que cabe ao Ministério Público promover a ação penal pública, o que se afirma na Constituição é que o titular da ação penal é o Ministério Público, em legitimação ordinária, e disto decorre que cabe ao mesmo parte da titularidade do direito material, ou seja, “jus puniendi”. Ou seja, não é apenas o “jus persequendi”, direito de ação, isto seria se fosse apenas substituto processual (legitimação extraordinária), mas é legitimação ordinária. Logo, pode o Judiciário decidir se pune apenas se for ajuizada a ação penal.
Portanto, o direito de não punir não é da alçada privativa do Judiciário, pois até mesmo a vítima pode perdoar, ou deixar de representar, em muitos casos. Ou simplesmente não comunicando crime, o que consiste em um “não punir”.
Afirmar que o “jus puniendi” é um dever do Estado é um mito, uma vez que não se consegue apurar todos os crimes, muito menos processar por todos os delitos, além da cifra negra, delitos que não são descobertos ou que nem são informados pelas vítimas. Em tudo, o que prevalece é a seletividade na prática.
Quando se fala em conveniência e oportunidade não significa arbitrariedade, pois como regra básica do direito administrativo, os atos de oportunidade e conveniência devem ser motivados.
Ademais, se “jus puniendi” fosse absoluto não poderia o Estado fazer a defesa criminal, muito menos conceder “indulto” (perdão da condenação pelo Presidente da República).
Logo, quando se fala em Estado não se pode confundir apenas com Executivo, através de Polícia, escolhendo as prioridades de crimes para se combater, nem no Legislativo que define o que será crime. Mas, deve-se pensar também nas prioridades para ajuizamento de ação penal. Ou seja, como deve fazer política pública cabe o juízo de oportunidade e conveniência no ajuizamento de ações penais, sob pena de ser servidor público e despachante judicial da polícia e do Executivo cumprindo a agenda de prioridades do Executivo.
Quem for contra a possibilidade de estabelecimento de prioridades no ajuizamento de ações penais, deve primeiramente informar quantos crimes aconteceram em 2012, quantos foram registrados e quantos foram apurados pela polícia. Bem como quantas prescrições ocorreram em 2012.
Diante disso, há uma revolução que ainda não é aplicada e pouco discutida, pois se o Ministério Público é o titular da ação penal como legitimação ordinária, ou seja, é titular da ação penal e do direito material envolvido, além de exercer o controle externo da atividade policial, logo pode, em tese:
1) Colocar em liberdade presos ilegalmente pela polícia, requisitando a colocação em liberdade dos mesmos ao policial que os mantém presos.
2) Lei pode conceder a possibilidade de o MP arbitrar fiança, assim como o faz para Delegados, além aplicar medidas cautelares diversas da prisão,pois reduz número de prisões provisórias.
3) Possibilidade, fundamentada, de estabelecer prioridades para ajuizamento de ação penal, não seguindo a ordem cronologicamente de casos simplórios remetidos pela Polícia, ou seja, poderia o Ministério Público priorizar os casos mais graves, independente de réu soltou ou preso, e deixaria de ser subordinado da polícia que prioriza furtos de bagatela e cometidos por pobres.
4) Possibilidade de oferecer propostas de suspensão condicional do processo (SUSCON), mesmo que a pena mínima seja superior a um ano. Pois se a pena mínima for de até um ano há direito subjetivo do acusado de se propor a SUSCON, mas nos demais casos poderia ser ofertada fundamentadamente, passando pelo crivo do acusado, seu advogado e pelo Judiciário.
5) Possibilidade de propor pena alternativa já no início do processo, solicitando audiência preliminar, fixando a proposta no mínimo legal. A rigor, Não se trata de direito subjetivo do acusado, mas de gerenciamento de prioridades.
6) Definindo prioridades para o ajuizamento haveria a promoção de arquivamentos provisórios para demanda futura, se não prescritos.
Portanto, esta breve resenha tem como objetivo debater sobre a legitimidade ordinária do Ministério Público como titular da ação penal pública e os reflexos deste conceito no direito material (jus puniendi), inclusive atuando como agente de políticas públicas criminais definindo prioridades para o ajuizamento da ação penal e até mesmo para colocação em liberdade ou para proposição de acordos, o que inclusive já é previsto na lei do crime organizado (lei 12.850/13) e pode ser usado por interpretação extensiva em beneficio do acusado.
André Luís Alves de Melo é promotor de Justiça, ex-promotor eleitoral por 15 anos, mestre em Direito Público, professor universitário e doutorando pela PUC-SP.
Revista Consultor Jurídico, 22 de abril de 2014
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