segunda-feira, 28 de abril de 2014

Regressão de regime penal por porte de drogas é desproporcional

O princípio constitucional da proporcionalidade, previsto no inciso LIV do artigo 5º da Constituição Federal, preconiza que o exercício do poder estatal se realize de maneira prudente, moderada, vedando o excesso nos meios utilizados para consecução dos seus fins.
Beccaria, ao encerrar sua obra Dos Delitos e das Penas, conclui que “para não ser um ato de violência contra o cidadão, a pena deve ser, de modo essencial, pública, pronta, necessária, a menor das penas aplicável nas circunstâncias referidas, proporcionada ao delito e determinada pela lei”[1].
Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco prelecionam que o princípio da razoabilidade (aspecto material do devido processo legal), em essência, “consubstancia uma pauta de natureza axiológica que emana diretamente das idéias de justiça, eqüidade, bom senso, prudência, moderação, justa medida, proibição de excesso, direito justo e valores afins; precede e condiciona a positivação jurídica, inclusive a de nível constitucional; e, ainda, enquanto princípio geral do direito, serve de regra de interpretação para todo o ordenamento jurídico”[2].
Cezar Roberto Bitencourt anota que, em razão do princípio da proporcionalidade, além da adequação teleológica, o ato estatal deve ser necessário, vale dizer, “não pode exceder os limites indispensáveis e menos lesivos à conservação do fim legítimo que se pretende”. Demais disso, deve haver uma proporcionalidade stricto sensu, impondo que a todo representante do estado a obrigação de “fazer uso de meios adequados e de abster-se de utilizar meios ou recursos desproporcionais”[3].
O princípio da proporcionalidade, obtempera Alberto Silva Franco, “exige que se faça um juízo de ponderação sobre a relação existente entre o bem que é lesionado ou posto em perigo (gravidade do fato) e o bem de que pode alguém ser privado (gravidade da pena)”. Assim, pondera Silva Franco que, “toda vez que, nessa relação, houver um desequilíbrio, estabelece-se, em conseqüência, inaceitável desproporção. O princípio da proporcionalidade rechaça, portanto, o estabelecimento de cominações legais (proporcionalidade em abstrato) e a imposição de pena (proporcionalidade em concreto) que careçam de relação valorativa com o fato cometido considerado em seu significado global. Tem, em conseqüência, um duplo destinatário: o Poder Legislativo (que tem de estabelecer penas proporcionadas, em abstrato, à gravidade do delito) e o juiz (as penas que os juízes impõem ao autor do delito têm de ser proporcionadas à sua concreta gravidade)”[4].
Como não poderia deixar de ser, visto que envolve exercício de poder punitivo, a Lei 7.210/84 (LEP), incorporando no seu artigo 57 referido princípio à execução penal, dispõe que na aplicação das sanções disciplinares, levar-se-ão em conta a natureza, os motivos, as circunstâncias e as consequências do fato, bem como a pessoa do faltoso e seu tempo de prisão.
À luz desse princípio, temos que a prática do crime[5] descrito no artigo 28 da Lei 11.343/2006, não induz automaticamente à subsunção do caput do artigo 52 e do inciso I do artigo 118, ambos da LEP, com a consequente regressão de regime de pena do reeducando, ante a manifesta falta de proporcionalidade entre a gravidade do fato típico e a gravidade da sanção disciplinar.
Deveras, com o advento da Lei 11.343/06, foi abolida a aplicação de pena privativa de liberdade aos condenados pela prática de porte de drogas para consumo pessoal, limitando-se o preceito secundário do respectivo tipo penal a cominar como sanções a advertência, a prestação de serviços à comunidade e a aplicação de medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
Assim, se hodiernamente o porte de droga para consumo pessoal não importa mais na privação da liberdade ambulatorial do agente, não é razoável que se imponha ao reeducando indiciado ou processado pelo delito em apreço consequências penais mais drásticas do que a própria condenação pelo delito tipificado no artigo 28 da Lei 11.343/2006.
Em outros termos, não é desproporcional que a prática da conduta descrita no artigo 28 da Lei 11.343/2006 implique na fixação de regime prisional mais rigoroso do que o determinável na sentença condenatória pelo respectivo delito.
Além do que, se, por força do art. 52 da LEP, a prática de contravenções penais e de crimes culposos não autorizam a regressão de regime de pena, é iníquo e desrazoável que a conduta prevista no artigo 28 da Lei 11.343/2006, que nem sequer é punida com reclusão, detenção ou prisão simples, seja levada em consideração para fins de aplicação do inciso I do artigo 118 daquele mesmo diploma normativo.
Tal desproporcionalidade se avulta, ainda mais, quando, por exemplo, comparamos a situação processual de um reeducando que é indiciado pela prática de homicídio culposo com a situação de um apenado flagrado portando consigo droga para consumo pessoal: o primeiro, embora responda por crime de maior gravidade, por não ter contra si a imputação de crime doloso, não sofrerá regressão de regime de pena; o segundo, por sua vez, em que pese ter contra sim uma acusação por crime de menor potencial ofensivo, mercê de uma exegese inflexível e divorciada da Constituição Federal do caput do artigo 52 e do inciso I do artigo 118, ambos da LEP, será transferido para regime de pena mais rigoroso.
Além do que, por força do art. 57 da LEP, é injusto, materialmente desigual, desproporcional e alheio à garantia contida no inciso XLVI do artigo 5º da Constituição Federal, que o juízo da execução penal dê ao reeducando que pratica a conduta descrita no artigo 28 da Lei 11.343/2006 o mesmo tratamento disciplinar àquele que comete um crime doloso contra a vida, um latrocínio ou qualquer outro crime grave.
Aliás, na doutrina, Amilton Bueno de Carvalho consigna que “com o alargamento interpretativo autorizado pelo sistema aberto ao julgador, desde que para beneficiar o apenado, o delito (?) de porte de droga (míseros 0,174g) não está englobado pela expressão doloso (leia-se, grave, agressivo, causador de pane social, perigo à vida humana). Logo, não é possível regredir de regime”[6].
Embora não haja muita ressonância na jurisprudência, é possível joeirar alguns julgados esposando a tese em análise, in litteris:
AGRAVO EM EXECUÇÃO PENAL - IRRESIGNAÇÃO MINISTERIAL CONTRA DECISÃO QUE DENEGOU PEDIDO DE REGRESSÃO DE REGIME - PRÁTICA DE CRIME DOLOSO - PORTE DE DROGA PARA USO - DELITO DO ARTIGO 28 DA LEI Nº 11.343/06 - DESPENALIZAÇÃO E RELATIVIZAÇÃO DO CARÁTER CRIMINÓGENO DA CONDUTA - DESACERTO DA DECISÃO NÃO VISLUMBRADO - MEDIDA DE POLÍTICA CRIMINAL - RESPEITO AO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE - RECURSO IMPROVIDO. (TJMG, número do processo: 1.0000.07.465505-1/001(1), Númeração Única: 4655051-95.2007.8.13.0000, Relator: Des.(a) EDELBERTO SANTIAGO, Data do Julgamento: 26/02/2008, Data da Publicação: 11/03/2008);
AGRAVO EM EXECUÇÃO PENAL. NÃO SE REGRIDE REGIME CARCERÁRIO QUANDO O NOVO CRIME É INSIGNIFICANTE, PENA DE AGRESSÃO AO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 118, I, DA LEI DAS EXECUÇÕES PENAIS. AGRAVO PROVIDO PARA REESTABELECIMENTO DE REGIME SEMI-ABERTO. (TJRS, Agravo nº 298.007.11, Quinta Câmara Criminal, Rel. Amilton Bueno de Carvalho)[7].
De outro vértice, considerando que constitui dever do condenado manter comportamento disciplinado durante o cumprimento da pena (inciso I do artigo 39 da LEP), caso ele pratique a conduta descrita no artigo 28 da Lei 11.343/2006, o juízo da execução penal, a título de sanção, deverá lançar mão de outros meios mais adequados e menos excessivos que a imposição de regime prisional mais gravoso, tais como advertência, repreensão, a suspensão ou restrição de direitos ou a perda de alguns dias de remição.
Diante do exposto, concluímos que a prática do crime descrito no artigo 28 da Lei 11.343/2006, não induz, por si só, à subsunção do caput do artigo 52 e do inciso I do art. 118 da LEP, sendo inconstitucional a regressão de regime de pena do reeducando nessa hipótese, ante a manifesta falta de proporcionalidade entre a gravidade do fato típico (sobretudo, das penas cominadas à conduta) e a gravidade dos seus efeitos na execução penal.
Praticada a conduta tipificada no artigo 28 da Lei 11.343/2006, o juízo da execução penal, a título de sanção, deverá utilizar-se outros meios mais adequados e menos excessivos que a imposição de regime prisional mais gravoso, tais como advertência, repreensão, a suspensão ou restrição de direitos ou, ainda, a perda de alguns dias remidos.
________________________
[1] Dos delitos e das penas. São Paulo: Martim Claret, 2003, p. 107.
[2] Curso de Direito Constitucional. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, pp. 121/122.
[3] Tratado de direito penal. Volume 1: parte geral, 14 ed., rev., atual e ampl. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 25.
[4] Crimes hediondos. 7 ed., rev., atual e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 110.
[5] Conforme entendimento firmado pelo Pretório Excelso na Questão de Ordem suscitada nos autos do RE 430105 QO/RJ. Há, contudo, na doutrina forte entendimento de que a criminalização da conduta descrita no art. 28 da Lei 11.343/2006 é inconstitucional, ante a ausência de lesão a bem jurídico de terceiros. Vide, e. g., QUEIROZ, Paulo. Direito penal e liberdade. Boletim IBCCRIM, n. 20, maio 2000, p. 5. Atualmente, a constitucionalidade do delito será apreciado pelo Supremo Tribunal Federal, no RE 635659.
[6] Garantismo aplicado à execução penal. CARVALHO de, Amilton Bueno. Editora Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2007, p. 290.
[7] Garantismo aplicado à execução penal. CARVALHO de, Amilton Bueno. Editora Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2007, p. 288.
Saulo Fanaia Castrillon é defensor público no Estado de Mato Grosso
Revista Consultor Jurídico, 25 de abril de 2014

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