Em coluna anterior, juntamente com Rafael Tomaz de Oliveira, apresentamos a figura do jurista MacGyver (clique aqui para ler) e finalizamos dizendo: “No caso brasileiro, o complexo de MacGyver encontra, ainda, o ‘jeitinho’, uma outra utilidade do canivete suíço, que sempre se apresenta como um forma maquiada de solver um problema sem que ele seja efetivamente resolvido, no mais lídimo sintoma do complexo: o efeito semblante: a fundamentação é a aparência do que poderia ser uma decisão, vazia de fundamentos, cheia de ementas... Iremos, assim, nas próximas colunas, mostrando os usos e abusos do nosso arquétipo, com o maior respeito aos juristas, claro. Talvez se incomodem e digam: ’mas eu não sofro do complexo de MacGyver!’ Se precisou dizer... nunca se sabe.”
Por isso, no segundo episódio da saga, a proposta é: teste seus conhecimentos MacGyverianos!
No campo do Processo Penal, assim, existem diversos exemplos de posturas MacGyver. Talvez seja o caso de se verificar sua posição. Eis o teste. Responda às questões abaixo e no final confirme seu gabarito.
1 – Nos casos de prisão em flagrante por crimes patrimoniais, inverte-se o ônus da prova?
2 – A nulidade relativa, para sua comprovação, depende da demonstração de prejuízo?
3 – As declarações das testemunhas e informantes prestadas no Inquérito Policial podem ser utilizadas para condenação, independentemente de se renovarem em Juízo?
4 – No processo penal há possibilidade de se aplicar in dubio pro societate?
5 – As interceptações telefônicas podem ser renovadas indefinidamente?
6 – A prisão cautelar pode ser decretada de ofício, sem requerimento da autoridade policial ou do Ministério Público?
7 – O acusado se defende somente dos fatos, não importando a capitulação da denúncia/queixa?
8 – A prisão temporária é constitucional?
9 – O juiz pode condenar mesmo quando o Ministério Público requer a absolvição?
10 – O juiz pode perguntar primeiro na instrução criminal, inexistindo nulidade?
Se você, caro leitor, respondeu positivamente às questões de 1 a 3, já pode ficar contente, considere-se o próprio MacGyver. Se respondeu sim às questões de 4 a 7, você é o MacGyver com especialização em desmontagem de canivete suíço. De 8 a 10 respostas positivas, talvez o MacGyver tenha algo de novo para aprender com você.
O erro das questões
A luta pela construção do processo penal democrático é algo a se desvelar no ambiente forense. Daí que a luta contra o complexo de MacGyver é algo a se combater. Tentarei explicar, assim, quem sabe, nas próximas colunas, o equívoco de cada questão acima.
Inversão do ônus da prova!
Para começar, procurarei demonstrar o erro lógico da dita “inversão do ônus da prova”. Uma das hipóteses de prisão em flagrante é a do sujeito que: “é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele o autor da infração.” (CPP, artigo 302, inciso IV). Em seguida, na linha do processo penal do conforto, cristalizou-se como máxima: “Nos casos de furto, tendo o agente sido encontrado com os bens subtraídos, inverte-se o ônus da prova”. A luta da doutrina (Aury Lopes Jr., Eugênio Pacelli, Fauzi Hassan Choukr, Sylvio Lourenço, dentre muitos outros) em demonstrar que o acusado larga inocente, mesmo quando preso em flagrante, encontra no “modo de pensar padrão” seu maior inimigo, uma vez que toma os efeitos como causas.
José Calvo González, magistrado espanhol, chama o fenômeno de juízo com erro e excesso lógico. Isso porque: a) está provado que o acusado foi encontrado com os bens subtraídos; b) não há prova de o agente ter realizado a conduta típica — subtrair —, dado que se houvesse, a discussão seria irrelevante; c) invertendo-se a carga probatória, o acusado precisa produzir o que se denomina prova diabólica, ou seja, impossível, negativa, de que não foi ele o agente do furto; d) esquece-se matreiramente que o único princípio em vigor e o da presunção de inocência, que eu saiba ainda não revogado; e) a conclusão de que o agente foi o autor não se adapta nem as regras de lógica, por ser excessiva, nem as da experiência, por ser imaginária; f) a inferência fática de posse dos bens não se deduz, necessariamente, como se obtiveram as coisas, nem se foi na forma exigida pelo elemento normativo previsto no artigo 155 do CP; g) logo, de todas as hipóteses imagináveis – o acusado recebeu de terceiro, achou as coisas, estava passando no local, caíram do céu, etc., a hipótese de ser o autor da infração é somente mais uma das possíveis. h) em sendo a mais prejudicial ao acusado, havendo outras, não se pode aceitar como democrática justamente a que é mais prejudicial em face do estado constitucional de inocência.
A questão é como situar o que está fora das expectativas comuns. A forte tendência de se antecipar o sentido da narrativa imputada, excluindo a aleatoriedade do mundo. Muitas vezes o que se sabe — sempre pelo relato de terceiros — seja insignificante. Quantas vezes durante uma instrução processual se verificou erros de antecipação. Mas a nossa maneira de pensar, de regra, apaga a consciência da possibilidade de erro.
Os juristas, por se acreditarem experts, não raro apostam em sua racionalidade e tomam os eventos particulares de êxito como leis gerais, quando, no fundo, são a evidência de que não aprendemos que não aprendemos, mediante o mecanismo de seleção das relações verificadas. Diz o ditado popular que o cachimbo deixa a boca torta. No caso do processo penal, diante da acusação forma-se a antecipação do normal e se exclui o extraordinário como impossível, apressando-se em colocar ordem no mundo. Daí que as circunstâncias são desconsideradas em nome do que sempre acontece. E diante da autoridade da coisa julgada os erros de avaliação podem ter consequências graves, basta ver o Innocence Project . A busca pela certeza desconsidera a incerteza do mundo e das dificuldades probatórias. O autoengano promove a sensação de confirmação, de júbilo, mediante a seleção dos elementos probatórios confirmatórios da tese antecipadamente tida como verdadeira. Quem larga no processo penal convencido da culpa consegue enganar-se a si mesmo sobre a veracidade da conduta, sobretudo, adjetivando. Todas as vezes que a decisão é recheada de adjetivos — sobejamente, amplamente, fortemente etc. — desconfiem da enunciação. Muitas vezes pode ser uma fraude.
A proposta, assim, é se aceitar que o improvável faz parte do processo penal. E que a certeza paranoica é um mecanismo paliativo de desencargo (Jacinto Coutinho, Franco Cordero)[1] para facilitar a vida dos juristas, postados, sem angústia, diante do caos do mundo. A máquina do processo penal pretende simplificar a vida, fazendo com que se confirme o que se acredita antecipadamente, por meio de narrativas triviais de mocinho/bandido, desconsiderando a subjetividade dos metidos no processo e o silêncio probatório, que sempre diz.
Antecipando, com Gustavo Ávila Noronha, pode-se dizer que as testemunhas possuem a ilusão de poderem narrar tudo que viram e o fazem de maneira retrospectiva, ou seja, a narrativa se dá depois dos eventos fragmentados, imaginando-se causalidades de uma historinha (quem sabe infantil) organizada, sem furos, para dar sentido, e que conforta os julgadores, potencializando-se o que confirma a hipótese apresentada. O imaginário desliza e todos sorriem, como as crianças, por verem a história contada.
Lembro-me que Luis Alberto Warat comparava os juristas às crianças, sem demérito às últimas, ao afirmar que o quando se conta várias vezes a mesma história para uma criança ela não aceita desvios, mudanças nos personagens. O prazer dela está no sorriso lançado ao final por confirmar o que já sabia. Qualquer semelhança com o processo penal inquisitório e paranoico não é mera coincidência. Os juristas dormem tranquilos, depois, assim como se fossem crianças. Mas gente real cumpre pena. Talvez se possa arriscar que, como humanos, tenhamos a compulsão de apresentar explicações causais para todos os fenômenos, não fosse a imprevisibilidade a força motriz do mundo, embora varrida para debaixo do tapete. Quando a decisão judicial se posta de maneira exuberante, completa, correta, coerente, aparentemente lógica, assinada por um terceiro reconhecido, então, a armadilha se realiza. Dito de outra maneira, no mundo fragmentado de instantes o sujeito inventa uma causa que possa, retrospectivamente, dar sentido e costurar as hiâncias, as faltas, preenchendo com explicações os liames aparentemente lógicos.
A fórmula do autoengano permeia o jurídico, ainda que boa parte dos atores desdenhe disso, como desdenharão deste artigo. Seria muito difícil reconhecer que decidem por slogans, lugares comuns, longe de uma teoria da decisão (leia A verdade das mentiras e as mentiras da verdade (real), de Lenio Streck), situação verificada na dita inversão do ônus da prova nos crimes patrimoniais (Gregório D’Ivanenko[2]). Daí que no processo penal não pode prevalecer o que se imagina sobre o que se comprovou. Nos processos se sabe (a) que o acusado foi encontrado com a coisa, (b) se não confessou e não há prova, abrem-se duas opções: 1) Se condena com a lógica do jeitinho e do conforto a la MacGyver, tomando as premissas como conclusão e, muitas vezes, pela consulta do rol de antecedentes do acusado, ou 2) se absolve por insuficiência de provas da autoria. Difícil? Talvez. Precisa-se levar a sério o fato de que não sabemos o que se passou e, salvo se o jurista for adepto da Igreja da Verdade Real, a coisa se resolve pela lógica. Pode ser que tenha sido o acusado, como também não. Mas quando o imaginário prevalece, condena-se.
Para terminar
É certo que se precisa julgar, embora impossível, nos diz Amilton Bueno de Carvalho, nos termos da racionalidade total. Daí que posturas MacGyver surgem e prevalecem. Isso será objeto de outra coluna. Por agora, quem sabe, possa o sujeito pensar e fazer luto da racionalidade infantil e ingênua, a qual, todavia, faz vítimas todos os dias.
Advertência final: se você acredita em Verdade Real, descobre o sentido das coisas, pensa metafisicamente, por certo, será mais feliz. Só não se sabe até quando. Todo paranoico aparentemente é mais feliz. Parabéns a quem passou no teste. Afinal, pode se dizer um jurista MacGyver!
[1] A partir do primado da hipótese sobre os fatos — posição Inquisitória e de um ‘quadro mental paranóico’ Cordero —, o desenrolar processual passa a ser de preenchimento dos significantesnecessários ao projeto/acusação, desprezando-se os demais, tal qual o engenheiro que desconsidera o material em desconformidade com seu projeto. Em suma, sob o ‘primado das hipóteses sobre os fatos’, conforme aponta Cordero, “o que conta é o resultado”
[2] Gregório Carmargo D’Ivanenko em monografia apresentada no Cesusc, sob o título A inversão do ônus da prova no processo penal Brasileiro e sua incompatibilidade com a Constituição Federal(Florianópolis, 2012) aponta: “Além de tal prática ser fruto de fundamentação fática falha e inverossímil, carece, também, de qualquer base jurídica sólida, embora seja aplicada o entendimento de que ao acusado é imposto o ônus da prova em certos momentos, não há qualquer indicação que a simples apreensão da res furtiva em seu poder seja suficiente para, invertendo totalmente a lógica jurídica, presumir a culpabilidade do acusado. Desta forma, despida dos requisitos retóricos da sentença, somente se verifica, na prática da inversão do ônus da prova, um julgamento ideológico, em que pela falta de substrato fático e normativo palpável. Assim, ficam expostas todas as argumentações subterrâneas da decisão penal que, pondo de lado princípios caros à ordem jurídica constitucional, servem à manutenção da lógica inquisitória e repressiva do Código de Processo Penal brasileiro.”
Alexandre Morais da Rosa é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC.
Revista Consultor Jurídico, 30 de novembro de 2013
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