quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Prisões do Brasil abrigam legiões de Genoinos

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Presídio Central de Porto Alegre: com espaço para 2 mil presos, abriga 4,5 mil exemplos de descaso
De todos os imutáveis flagelos brasileiros o pior talvez seja o flagelo do sistema penitenciário —cerca de 540 mil presos para algo como 300 mil vagas. É o inqualificável facílimo de qualificar. Qualquer zoológico oferece estadia mais decente. Vistos como sub-bichos, os presos são submetidos a horrores como a superlotação, a insalubridade e a doença.
Nos últimos dias, o noticiário sobre a situação carcerária migrou dos fundões da editoria de polícia para as manchetes de primeira página. Deve-se a migração à mudança de status dos condenados do mensalão. Desceram do Brasil da impunidade para a subcivilização que definha dentro das cadeias, onde subpessoas vivem e, sobretudo, morrem esquecidas por uma sociedade selvagem.
O contato dos neopresidiários com o insuportável provocou um estrépito fulminante. Voaram algemados no camburão aéreo da Polícia Federal. Desrespeito! Foram revistados nus. Acinte! O banho é frio. Uhuuuuuu! Come-se a gororoba na quentinha, com garfo de plástico. Irrrrrrrrc! O semiaberto virou regime fechado. Inaceitável! A vida do José Genoino corre risco. Barbárie!
De repente, o país superlativo —Brasilzão do mensalão— se deu conta de que o submundo também tem uma quedinha pela desinência ‘ão’. Cruza da boa intenção com a inação, a prisão virou problemão sem solução. Antes, o inferno só era infernal para bandido do povão. Gente sem noção, vidrada em rebelião, sem vocação para reabilitação. Nesse caldeirão não cabe a turma dos embargos de declaração.
O debate sobre o martírio dos mensaleiros é legítimo e necessário. Polícia boa é polícia sob controle. Não é papel do Estado humilhar presos. A imposição de penas mais gravosas do que as previstas na sentença não pode ser tolerada. O descaso com a doença alheia é um tipo de crueldade que, além de ilegal, agride a boa índole do brasileiro.
Nesta quarta-feira, até Dilma Rousseff revelou-se inquieta com o quadro de Genoino. Falando a emissoras de rádio de Campinas (SP), a presidente disse ter uma “preocupação humanitária” com o companheiro. “Sei das condições de saúde dele. Ele teve uma doença extremamente grave do coração. Sei que ele toma anticoagulante'', disse.
Deve-se louvar o fato de a presidente ter botado a boca no trombone por Genoino. Pena que lhe falte sopro para fazer barulho pelo resto dos presos doentes e pelo sistema carcerário na UTI. É ensurdecedor, por exemplo, o silêncio da presidente diante da precariedade do Presídio Central de Porto Alegre, cidade onde ela se fez politicamente.
Há dez meses, em janeiro de 2013, entidades reunidas no Fórum da Questão Penitenciária denunciaram o cadeião da capital gaúcha à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA. Construído em 1959, o presídio jamais foi reformado (veja fotos). Tem capacidade para 2 mil presos. Há cerca de 4,5 mil pessoas empilhadas em seus pavilhões. Falta saneamento básico. Sobram gambiarras e fiações expostas ao risco de curto-circuito. Ratos e baratas correm por entre os presos. Doentes morrem sem assistência médica —a  maioria fenece de Aids e tuberculose.
Em fevereiro, a OEA cobrou explicações ao governo brasileiro. Pediu informações sobre providências que as autoridades adotariam para proteger a integridade física e a vida dos presos da cadeia de Porto Alegre. Indagou sobre a falta de assistência médica no interior da penitenciária. Questionou sobre a encrenca da superlotação e os riscos de incêndio. Fixou um prazo de 20 dias para o envio das respostas.
Em março, Brasília enviou à OEA um documento de 52 páginas. Não traz a assinatura do responsável. Tampouco informa o órgão que produziu o texto. Pintou-se um cenário de rendenção. A cadeia gaúcha já disporia de unidade de saúde com médicos, psiquiatras, psicólogos, infectologista, traumatologista, dentistas, enfermeiros e assistentes sociais. Já estariam à disposição dos presos testes de HIV e sífilis, além de exames de raio-X.
Pelo texto oficial, a coleta do lixo teria sido aperfeiçoada e a cozinha da penitenciária passara por reformas. Criara-se um sistema de combate a incêndios dotado de 12 bombeiros. Instalaram-se no presídio 19 extintores. A OEA enviou a resposta do governo ao denunciante, o Fórum da Questão Penitenciária. Pediu uma manifestação sobre o conteúdo do papelório.
Na sua resposta, o fórum informou à OEA que nada mudara na masmorra de Porto Alegre. A assistência médica aos presos continuava deficitária. Seriam necessárias oito equipes médicas para atender à população carcerária. Só havia uma equipe completa. O aparelho de raio-X estava quebrado, sem previsão de data para o reparo.
Os dejetos das redes de esgoto continuavam correndo a céu aberto, conforme parecer técnico do Instituto Brasileiro de Avaliações e Perícias de Engenharia do Rio Grande do Sul, anexado à réplica. O parecer anota que a “estrutura do Presídio Central é irrecuperável para o fim a que se destina, de ser um presídio”. Há críticas também à higiene e ao acondicionamento da alimentação preparada para os detentos (veja abaixo).
Não se ouviu nenhuma palavra de Dilma que expressasse “preocupação humanitária” com os detentos de Porto Alegre. Segundo dados da Vara de Execuções Criminais da capital gaúcha, das 278 mortes ocorridas nos 25 presídios da Região Metropolitana de Porto Alegre nos últimos quatro anos, quase 90% foram causadas por doenças.
“A maioria dos presos – portadores de Aids e tuberculose – morre por insuficiência respiratória, sem receber assistência à saúde; é preciso lembrar que eles estão sob responsabilidade do Estado. A saúde é um dos deveres do Estado”, afirma o juiz auxiliar da presidência do Conselho Nacional de Justiça, Luciano Losekann, coordenador dos Mutirões Carcerários realizados pelo órgão.
O problema das cadeias brasileiras decorre de um descaso que é velho como a primeira missa. Mas o vexame aumenta quando se considera que, no caso do Rio Grande do Sul, a presidente Dilma, o ministro José Eduardo Cardozo (Justiça) e o governador gaúcho Tarso Genro são velhos defensores dos direitos humanos, pertencem à mesma agremiação partidária, o PT de Genoino, e têm nas mãos a faca e o queijo.
Enquanto Dilma manifestava sua preocupação com Genoino na entrevista de Campinas, 26 deputados federais do PT foram em caravana ao presídio da Papuda. Para irritação dos familiares dos presos pobres, entraram sem pegar o final da fila. Avistaram-se com Genoino, José Dirceu e Delúbio Soares. Saíram alardeando as queixas dos condenados do núcleo político do mensalão. Dirceu, por exemplo, não se conforma de estar trancafiado há cinco dias. Condenado ao semiaberto, não vê a hora de ganhar o asfalto durante o dia.
Correta, a queixa de Dirceu logo será atendendida. A mesma sorte não socorre os milhares de presos provisórios do país. Numa conta do ministro Gilmar Mendes, ex-presidente do STF e do CNJ, algo como 40% dos 540 mil presos estão na cadeia sem jamais ter sido condenados. São, por assim dizer, presos eternamente provisórios. Em muitos casos, a cana já dura mais de dez anos. Em alguns Estados, o desastre é maior. No Piauí, por exemplo, 70% da população carcerária aguarda julgamento. São os sem-embargo. Pior: é gente que não tem dinheiro para o advogado. Gilmar Mendes falou sobre a encrenca numa entrevista concedida ao blog em maio (reveja um trecho abaixo).



A bancada de deputados do PT prestaria um enorme serviço ao país se aproveitasse o súbito interesse carcerário para organizar caravanas a outras unidades do sistema penitenciário nacional. Sugere-se que comecem pelo HCT, Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico de Salvador –um pedaço da rede hoje submetido aos cuidados do governo petista de Jaques Wagner. Equipe do CNJ inspecionou o local no ano passado.
Encontrou um telhado em petição de miséria. Chovendo, alaga-se o piso do primeiro andar. A água escorre pelos bocais das lâmpadas e vaza no andar de baixo, nos quartos dos presos com problemas psiquiátricos. A umidade deixa malcheirosos os ambientes. Para complicar, o contrato com a empresa que fazia a limpeza do local havia expirado quando os inspetores do CNJ varejaram as instalações.
Está disponível na web um filme que mostra o inferno do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico de Salvador. Chama-se ‘Casa dos Mortos’, título do poema de um dos presos. Um dos mortos-vivos exibidos na peça chama-se Almerindo Nogueira de Jesus. Internado aos 23 anos, encontra-se no local há 28 anos. Foi diagnosticado esquizofrênico.
Acusado de ameaçar a madrasta, Carlos Marcos Ferreira de Araújo foi internado aos 18 anos. Vegeta no HCT há 31 anos. Seu diagnóstico é de deficiência mental e eplepsia. Há no Brasil 23 hospitais de custódia como o de Salvador. Escondem dos olhares da sociedade 4.500 homens e mulheres.
Ainda que seja breve, a presença dos mensaleiros na cadeia terá efeitos notáveis se dela resultar uma evolução do sistema carcerário nacional para a Era medieval. A discussão sobre a necessidade de “humanizar'' as prisões é coisa do século 18. A conveniência da “ressocialização'' do criminoso tonificou-se no final do século 19.
Atrasado em mais de um século, o Brasil tem agora uma boa oportunidade para encarar um problema que nunca quis ver. Até aqui, reservado à clientela dos três pês –pobre, preto e puta—, o sistema prisional brasileiro estava apinhado de bandidos sem jeito, do tipo que só se resolve matando. Solução definitiva? Só quando sobrasse algum dinheiro. Mantida a disposição do Judiciário de enviar para o xadrez os bandidos de grife, pode-se sonhar com uma redução na taxa de roubo. Quem sabe começa a sobrar algum caraminguá.

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