segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Sociedade caminha cada vez mais rápido que o direito

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A frase “a sociedade caminha mais rápido que o direito” é bastante consagrada no dia a dia das faculdades e dos profissionais de direito. Atualmente, não há dúvidas de que a sociedade caminha ainda mais rápido!
Para início de conversa, o que está por trás desta frase é uma certa disjunção estrutural entre, de um lado, as mudanças sociais e, de outro, a capacidade do Estado – especialmente o Legislativo – de acompanhar estas mudanças. Em termos sociológicos, isto remonta à discussão sobre se o direito molda a sociedade ou se a sociedade molda o direito. Neste sentido, não há dúvidas de que o direito pode moldar a sociedade. São vastas as pesquisas sobre o assunto no direito penal, no direito de família e no direito comercial, por exemplo. Porém, cada vez mais observamos a sociedade moldando o direito, especialmente porque o processo legislativo não tem conseguido acompanhar as transformações sociais.
Em outras épocas, as transformações sociais eram mais prolongadas. A princípio, não vemos muita diferença da década de 1510 para 1520 ou do século VII a.C. para o século VI a.C. Hoje, as transformações são mais velozes, e isto traz imensos desafios para o direito. Há cerca de três anos sequer havia a popularização de smatphones. Há cinco anos o turismo internacional era majoritariamente feito com empresas de turismo. Há 15 anos uma das atividades comerciais mais rentáveis era a venda de enciclopédias. Hoje o comércio eletrônico invadiu as relações de consumo no Brasil, os celulares fazem de tudo (até ligam!) e em pouco tempo poderemos fazer audiências judiciais com aplicativos de tablets.
De fato, a sociedade tem caminhado ainda mais rápido que o direito. Apesar dos “doutrinadores de carteirinha” resistirem, cada vez menos se pode afirmar que temos “as legislações mais avançadas do mundo”. Em verdade, observamos uma progressiva incapacidade do Estado de normativamente lidar com as transformações que têm ocorrido. Afinal, o que fazer com o brasileiro que está na Argentina e, com um software americano hospedado na Rússia, desvia dinheiro de um banco francês e deposita na conta de um português nos Emirados Árabes?
O direito – amplamente ancorado numa certa autoestima cega de que pode corresponder e responder aos fatos sociais – tem tido diversos desafios para dar conta da progressiva complexidade e diversificação no nível nacional e internacional. Isto ocorre em vários temas, tais como crimes, patentes, menores, direitos humanos, comércio, regulação, etc. Um dado interessante é que, diante da incapacidade do Legislativo de acompanhar estas mudanças, o Executivo e, principalmente, o Judiciário têm exercido este papel com um pouco mais de rapidez. Foi assim que se resolveram no Brasil, por exemplo, temas como fidelidade partidária, aborto de anencéfalos, união homoafetiva, etc.
Observam-se, então, duas necessidades: a) a necessidade de reinvenção do ensino do direito; b) a necessidade de reinvenção do profissional do direito.
A primeira necessidade é a reinvenção do ensino do direito. O ensino tradicional do direito – que está presente em praticamente todas as faculdades brasileiras – encontra-se fortemente baseado numa “veneração acrítica” da lei, das decisões judiciais e da literatura jurídica. Como se fossem produtos despersonalizados e desumanizados, a lei, as decisões e a literatura são reproduzidos de maneira relativamente ingênua. São exemplos disso as discussões sobre a “intenção do legislador”, como se fosse possível reunir centenas de parlamentares numa única intenção racionalmente definida. Outro exemplo é a leitura de jurisprudências como se fossem uma aplicação silogística e racional da lei, em que a premissa maior é a norma, a premissa menor é o fato, e a síntese é a aplicação da norma ao fato. Por fim, não é preciso ir longe na questão da literatura jurídica, pois o direito é o único campo em que o autor não é chamado de autor, mas de “doutrinador”.
A “veneração acrítica” do ensino do direito tem um efeito pernicioso: o olhar para o passado, para o instituído, para o pacificado, para o consagrado, para o fechado. Precisamos de um ensino jurídico que olhe para o futuro, que pense de forma aberta, e não em “caixas”. Precisamos de um ensino jurídico que não busque apenas olhar o que se produziu, mas que busque pensar no que será produzido e produzir em conjunto. Esta postura mais ativa pode englobar, por exemplo, uma visão fortemente interdisciplinar dos assuntos jurídicos porque estes assuntos são, por definição, interdisciplinares. Também engloba uma reflexão crítica, prospectiva e criativa do direito para refletir e resolver os desafios da sociedade atual e contribuir para a sociedade futura.
O ensino do direito ainda reproduz em larga escala o tecnicismo. Este tecnicismo tem dois pilares fundamentais de discussão: os direitos que as pessoas têm (direito material) e a forma de efetivar estes direitos (direito processual). O efeito disso é uma verdadeira redução do potencial que os profissionais do direito têm não somente na resolução de conflitos, mas no aprofundamento da democracia e na efetivação de direitos. O tecnicismo traz consigo a “tara processual”; e esta “tara processual” traz consigo o paradigma de que a única forma de atuação do profissional do direito é o processo, a litigiosidade e o modelo adversarial. Não é por acaso que a mediação, conciliação e a negociação são habilidades precariamente ensinadas e praticadas nas faculdades. Formamos profissionais com “luvas de boxe” para serem vencedores ou sucumbentes, e não para conciliarem e resolverem de forma consensual seus problemas.
A segunda necessidade é a reinvenção do profissional do direito. Há cada vez menos espaço para o técnico do direito, que reproduz mecanicamente os instrumentos do direito sem necessariamente ter qualquer aderência social e humana, visando resolver conflitos. O profissional do direito do futuro tem que se abrir, ser curioso e ser um verdadeiro produtor do conhecimento, e não reprodutor.
Neste sentido, torna-se imperativa uma abertura radical do profissional do direito à interdisciplinaridade. E isto envolve não apenas a relação maior com as ciências humanas, tais como a sociologia, psicologia, filosofia, etc. É muito mais que isso! Para falar de direito ambiental tem que saber de gestão ambiental. Para falar de patentes de softwares tem que saber de informática. Para falar de regulação do petróleo tem que saber de economia. E para falar de células tronco tem que saber de biologia. Todos esses assuntos batem à porta do direito e exigem que o profissional do direito – seja ele o advogado, o juiz, o promotor, o defensor, o delegado, o servidor, etc. – tenha um esforço ainda maior de aprendizado e capacitação.
Para acompanhar de uma maneira mais adequada as mudanças da sociedade, talvez o profissional do futuro tenha que desenvolver duas habilidades essenciais. A primeira consiste em compreender e utilizar a tecnologia como ferramenta de trabalho e como instrumento para otimizar o seu trabalho. A segunda consiste em trabalhar em equipe, e isto não se restringe ao espaço do escritório ou da unidade jurisdicional, mas a redes/alianças profissionais e associativas que devem ser estabelecidas em nível nacional e internacional.
Com a reinvenção do ensino do direito e do profissional do direito, talvez tenhamos a possibilidade de acompanhar de uma maneira mais efetiva o que tem acontecido no Brasil e no mundo. As mudanças são diversas e cada vez mais rápidas, o que acena para a necessidade de uma nova concepção de fazer o direito na sociedade. Afinal, já que a sociedade caminha cada vez mais rápido que o direito, o mundo está bastante diferente das velhas teorias “a”, “b” e mista!

Felipe Asensi é advogado e professor da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV Direito Rio).
Revista Consultor Jurídico, 10 de novembro de 2013

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