quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Artigo: O direito penal antes e depois de Roxin

No dia 28 de janeiro de 2009 o professor Claus Roxin recebeu o título de Doutor "Honoris Causa" na Universidade de Huelva (Espanha) - foram seus padrinhos Juan Carlos Ferré Olive e Miguel Ângel Nuñez de Paz. O Coro Universitário interpretou, na abertura dos trabalhos, o "Veni, Creator Spiritus" (Venha, Espírito Criador). Nada mais adequado e oportuno.

Desde 1970 o professor Roxin transformou-se num divisor de águas no direito penal. É o antes e o depois dele. Seu funcionalismo moderado ou teleológico (que não tem nada a ver com o funcionalismo radical ou sistêmico do professor Jakobs) já não pode, de modo algum, ser ignorado pelos professores, estudantes ou operadores jurídicos. Ensinar Direito penal hoje sem a doutrina de Roxin é não ensinar direito nem muito menos penal.

No seu discurso de agradecimento, o citado professor fez uma síntese (bastante apertada, claro, pelo tempo que tinha) da sua máxima contribuição científica para a evolução do sistema punitivo.

Reiterou suas três grandes teses: (a) a relação que deve existir entre Direito penal e Política criminal; (b) a teoria da imputação objetiva e (c) a necessidade concreta de pena. Vamos recordá-las brevemente.

Franz von Liszt, no final do século XIX, afirmou que "o direito penal é a barreira infranqueável da política criminal" (ou seja: todas as postulações de política criminal deveriam ser feitas fora do direito penal, não se admitindo a interferência dela neste último; seriam duas ciências separadas, incomunicáveis).

A partir de 1970, Roxin modificou radicalmente essa premissa: para ele os postulados de política criminal devem ser introduzidos dentro do direito penal e mesclados com todas as suas mais importantes categorias.

Exemplo: quando se estuda a tipicidade, não se pode ignorar o princípio da insignificância (para excluir do direito penal as ofensas bagatelares, ínfimas). A subtração de um palito de fósforo, formalmente, está descrita no artigo 155 do Código Penal.

Materialmente falando, entretanto, é um absurdo usar o direito penal (a pena de prisão) para punir essa subtração. A conduta de subtrair, como se vê, nem sempre constitui um furto.

No plano dogmático parte o professor Roxin da premissa de que o injusto não pode se confundir com a culpabilidade. Do injusto penal fazem parte a tipicidade e a antijuridicidade.

Tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade são categorias absolutamente imprescindíveis para a compreensão do Direito penal. Se as três integram ou não o conceito de delito é tema mais complicado (há várias correntes a esse respeito).

Mas que são indispensáveis para a imposição de uma pena ninguém duvida. Aliás, para nós, elas, ao lado das categorias da norma, da punibilidade e da pena formam o sexteto mais relevante do Direito penal.

O injusto penal, disse o professor Roxin, tem por escopo a proteção dos bens jurídicos mais importantes (ou seja: ele visa a assegurar a convivência com respeito aos direitos humanos e à democracia).

O Estado não pode proibir tudo que queira (porque o Direito penal é instrumento de ultima ratio). Moral não se confunde com o Direito (por força do princípio da secularização).

Nem tudo que é imoral deve ser um ilícito penal. O Estado não pode criminalizar as pessoas que afetam bens próprios (princípios da ofensividade e da alteralidade). Todos esses princípios, que possuem caráter, sobretudo, político criminal, não podem mais ficar divorciados do direito penal.

Ainda no plano dogmático, firmadas todas as premissas enunciadas, é certo que o professor Roxin trouxe para o âmbito do injusto penal uma grande novidade: a teoria da imputação objetiva, que está fundada em algumas regras básicas: (a) a conduta do agente deve ser valorada e só é penalmente relevante quando cria ou incrementa um risco proibido relevante; (b) o resultado só é penalmente relevante quando decorre do risco proibido criado (nexo de imputação); (c) o resultado deve fazer parte do âmbito de proteção da norma penal. Em síntese, o direito penal só pode proibir riscos não permitidos. E o resultado deve ser imputado a esse risco.

Crime, portanto, é a realização de um risco não permitido. Crime não é só causar um resultado (causalismo), não é só atuar finalísticamente (finalismo). A vontade maliciosa (por si só) nem sempre significa um crime. No plano material a conduta deve ser devidamente valorada de acordo com os critérios da criação de risco, diminuição de risco, resultado imputável a esse risco etc.

Tudo isso não existia (nestes termos, pelo menos) no direito penal, até 1970. O modelo de Direito penal de Roxin veio para substituir os modelos anteriores (causalismo, neokantismo e finalismo). Reitero: não se pode perder de vista o antes e o depois.

No plano da culpabilidade (o sujeito só pode ser reprovado se podia se motivar de acordo com a norma e se podia se comportar conforme o Direito) a novidade introduzida pelo professor Roxin (e que foi sublinhada na sua intervenção em Huelva) é a seguinte: a pena não depende só da culpabilidade do agente, mais que isso, ela está guiada por exigências de prevenção.

A pena está orientada preventivamente e só tem sentido quando necessária. A culpabilidade é o limite máximo da pena. Sua necessidade preventiva é um dos fundamentos da sua imposição. Pode haver renúncia total dessa pena, quando desnecessária (no caso concreto).

Caso concreto julgado em Frankfourt: um policial praticou tortura contra uma pessoa para salvar a vida de uma outra pessoa (sequestrada). A tortura é proibida. Crime existiu.

Mas o Tribunal acabou apenas admoestando o agente, por entender desnecessária a pena no caso concreto (visto que o agente atuou para salvar uma vida). Essa é uma causa supralegal de exclusão da responsabilidade criminal.

A doutrina do professor Roxin está servindo de base para nossa tese da irrelevância penal do fato. Há casos concretos em que, não sendo possível aplicar o princípio da insignificância, a pena se torna totalmente desnecessária. Nessas situações o juiz aplica uma causa supralegal de exclusão da responsabilidade criminal.


Luiz Flávio Gomes é doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP, professor de Direito penal na Universidade Anhangüera e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG (www.lfg.com.br). Foi promotor de Justiça (1980 a 1983), juiz de Direito (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001).

O Estado do Paraná, Direito e Justiça, 23/02/2009.

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