1. Introdução
Um dos princípios jurídicos mais conhecidos de todos os tempos encontra-se no brocardo latino: "dormientibus non sucurrit jus". De fato, o direito não socorre aos que dormem no processo.
E, dentre os institutos que consagram essa clássica lição, encontra-se a preclusão, consubstanciada, por exemplo, na perda da faculdade de realizar algum ato processual em razão da prática anterior de ato incompatível.
Com notável discernimento, Ada Pellegrini Grinover, Antonio Scarance Fernandes e Antônio Magalhães Gomes Filho observam que "O instituto da preclusão decorre da própria essência da atividade processual; processo, etimologicamente, significa "marcha adiante', e, sendo assim, não teria sentido admitir-se que a vontade das partes pudesse, a qualquer momento, provocar o retrocesso a etapas já vencidas no curso procedimental; daí a perda, extinção ou consumação das faculdades concedidas às partes, sempre que não for observada a oportunidade legal para a prática de determinado ato ou, ainda, por haver o interessado realizado ato incompatível com o outro"(1).
Contudo, se é certo que a preclusão é matéria bastante estudada e utilizada em casos de natureza cível, o mesmo não ocorre no processo penal. Não há o aprofundamento necessário sobre a questão nos procedimentos criminais.
Não se trata de exigir que o processo penal utilize "as roupas velhas de sua irmã denominada Processo Civil", na feliz metáfora de Carnelutti em que compara o procedimento criminal à Cinderela(2). É, sim, uma necessidade premente em um direito processual que cada vez mais deve ser constitucional e eficaz.
2. A preclusão
Genericamente, pode-se definir a preclusão como a "perda de um direito subjetivo processual pelo seu não-uso no tempo e no prazo devidos"(3). Segundo o processo civil clássico, a preclusão para as partes pode ser temporal, lógica ou consumativa.
Por todos, Nelson Nery Junior: "A preclusão temporal ocorre quando a perda da faculdade de praticar ato processual se dá em virtude de haver decorrido o prazo, sem que a parte tenha praticado o ato, ou o tenha praticado a destempo ou de forma incompleta ou irregular"; "Preclusão lógica é a que extingue a possibilidade de praticar-se ato processual, pela prática de outro ato com ele incompatível"; "Diz-se consumativa a preclusão, quando a perda da faculdade de praticar o ato processual decorre do fato de já haver ocorrido a oportunidade para tanto, isto é, de o ato já haver sido praticado e, portanto, não pode tornar a sê-lo"(4).
Há, ainda, a preclusão que tem como destinatário o Magistrado (denominada "pro judicato"), que ocorre quando este não tem a possibilidade de decidir novamente questões já decididas no processo.
3. A preclusão no CPP
Se, por um lado, o Código de Processo Civil consagra, em diversos artigos, as diferentes hipóteses de preclusão (como, por exemplo, nos arts. 183, 299, 473, 503 e 511), o mesmo não se pode dizer do Código de Processo Penal.
Salvo melhor juízo, dos 790 (setecentos e noventa) artigos do CPP, há apenas um abordando o tema. Trata-se do art. 572, pertencente ao Título relativo às Nulidades (Livro III, Título I), segundo o qual as nulidades relativas serão sanadas "I - se não forem argüidas, em tempo oportuno (...); III - se a parte, ainda que taci tamente, tiver aceito os seus efeitos".
É de se ressaltar, contudo, que a ausência de menção explícita em outros dispositivos não caracteriza a ausência de consagração do instituto em seara penal.
Tanto é assim que a nova redação do art. 421 do Código de Processo Penal, com a alteração imposta pela Lei n.º 11.689, de 9 de junho de 2008, estabelece que "Preclusa a decisão de pronúncia, os autos serão encaminhados ao juiz presidente do Tribunal do Júri."
Ademais, não se pode olvidar que os dispositivos previstos na lei processual civil podem ser perfeitamente aplicados nos procedimentos criminais, em razão da possibilidade de interpretação extensiva e aplicação analógica consagrada no art. 3.o do CPP.
4. A preclusão lógica
Como salientado, a prática de ato juridicamente incompatível com a realização do direito visado gera a chamada preclusão lógica. Trata-se, portanto, da incompatibilidade da prática de um ato processual com outro praticado anteriormente.
5. Um exemplo prático no Processo penal
Tal modalidade de preclusão, embora não comum, pode acontecer no processo penal. Na atividade forense, pode-se imaginar a seguinte situação: em caso envolvendo dois acusados, é proferida sentença condenatória para ambos. Na dosimetria da pena, o Magistrado valora de maneira idêntica as circunstâncias judiciais relativas aos condenados: considera favoráveis todas as diretrizes previstas no art. 59 do Código Penal, à exceção da culpabilidade, que entende ser elevada nos dois casos.
Contudo, não obstante a idêntica valoração dos parâmetros da pena, fixa, em relação a um réu, a pena mínima, ao passo que em relação ao outro aplica a pena pouco acima do mínimo legal.
Desta decisão, o Ministério Público não interpõe recurso, concordando, pois, com os seus termos na integralidade, em relação aos dois acusados. Recorre, apenas, o condenado à pena acima do mínimo legal, invocando tratamento isonômico em relação ao co-acusado e requerendo, assim, a aplicação da pena no patamar mínimo.
O Tribunal competente dá provimento ao recurso, afirmando que a pena do apelante deve, de fato, ser aplicada no mínimo legal, em razão da identidade na análise das circunstâncias judiciais em relação ao outro réu.
Inconformado, o Ministério Público interpõe Recurso Especial, sustentando negativa de vigência ao art. 59 do Código Penal, eis que não é possível a aplicação da pena mínima com o reconhecimento de uma circunstância judicial desfavorável.
Vê-se, pois, que numa mesma ação penal, o órgão acusatório (que, lembre-se, é uno e indivisível) primeiramente aceita o entendimento de que a existência de uma circunstância judicial desfavorável não impede a fixação da pena-base no mínimo legal - não recorrendo, pois, da sentença - e num segundo momento, após a diminuição da pena da apelante para patamar idêntico ao de co-acusado, insurge-se contra a aplicação do entendimento que ele próprio sufragou.
Trata-se, pois, de flagrante caso de preclusão lógica no Processo penal. Como bem observa Roberto Delmanto Junior, em obra específica sobre o tema, "Determinadas atividades do "parquet' têm natureza de dever em face da sua qualidade de funcionário público, ao passo que, outras, quando ele atua como parte, possuem a natureza de direito (ônus).
Desse modo, as atividades do membro do Ministério Público concernentes à produção da prova, à argüição de nulidades e à interposição de recursos estão sujeitas à preclusão, ao contrário do que ocorre com outras que decorrem de imposição legal, como sucede com o poder-dever de oferecer denúncia, uma vez formada a "opinio delicti', o qual só pode ser atingido pela prescrição em abstrato"(5).
É manifesta, assim, a ausência de interesse recursal (CPP, art. 577), pressuposto primordial para o juízo de admissibilidade positivo do recurso. Portanto, em casos tais, o Recurso Especial não pode sequer ser recebido.
Notas:
(1) grinover, Ada Pellegrini et alii. As nulidades no processo penal. 9.ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 36/37.
(2) Interessante estudo sobre o trabalho de carnelutti foi feito por aury lopes junior, em seu "Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional". 3.ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Lúmen Júris, p. 30.
(3) Diniz, Maria Helena. Dicionário Jurídico. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 678.
(4) junior, Nelson Nery. Código de Processo Civil Comentado e Legislação Extravagante. 10a ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007 , p.447.
(5) delmanto junior, Roberto. Inatividade no processo penal brasileiro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 298.
Alexandre Knopfholz é professor de Direito Processual Penal do Centro Universitário Curitiba (Unicuritiba); membro da Associação Internacional de Direito Penal (AIDP) e membro fundador do Instituto Paranaense de Estudos Criminais (IPEC); advogado. www.dottieadvogados.com.br
O Estado do Paraná, Direito e Justiça. 23/02/2008.
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