domingo, 22 de fevereiro de 2009

Artigo: O interesse de agir enquanto condição legitimante da ação penal

Título na integra: O interesse de agir enquanto condição legitimante da ação penal: sobre a possibilidade do pedido de arquivamento do inquérito policial ou das peças de investigação quando cabível o perdão judicial


1. Introdução: da supremacia das formas à instrumentalidade do processo

Superada a miopia do positivismo jurídico, contemporaneamente se sabe da impossibilidade de dissociar o Direito dos fenômenos que marcam a evolução da sociedade. A lei já não é bastante em si e a justiça não mais se dobra à primazia das formas. Em suma, legalidade e legitimidade são conceitos que não podem ser confundidos, emergindo esta não mais da cega obediência a formalidades, mas da adequação entre a lei — sua criação, interpretação e aplicação — e os valores que fundam e evoluem com determinado corpo social, refletindo os interesses da coletividade que o compõe.

O papel de mera estrutura ordenadora ficou no passado, cabendo hodiernamente ao Direito a condição de ativo instrumento de transformação social. Por um lado, perdem força as formas, tão absolutas enquanto permaneceu a crença numa neutralidade passiva dos que criavam e aplicavam o Direito; por outro, ganha a busca pela justiça e sua mais equânime distribuição.

A emergência de um novo constitucionalismo anunciou o progressivo declínio do positivismo a partir da segunda metade do século passado. Em razão do surgimento de novas demandas sociais, a rigidez das leis e o engessamento de seus intérpretes acabaram suplantados pela regência plástica dos princípios, normas que se mostram capazes de conferir equilíbrio e unicidade ao ordenamento jurídico, por possibilitarem uma aplicação proporcional da lei à realidade concreta, harmonizando o Direito com a evolução e complexidade da sociedade dita pós-moderna. Desabando a estrutura vertical que se apoiava em mera legalidade, a fixidez totalitária da gaiola de ferro(1) de métodos que marcou a Modernidade acabou sendo rompida por transformações drásticas na tecitura social, cujos laços não mais se fundam e sustentam nas autoridades incontestes de outrora. Nessa dinâmica, com o aumento quantitativo e qualitativo das demandas por cidadania e respeito aos direitos fundamentais(2), somente se pode concluir que a contenção das individualidades horizontalmente situadas depende agora de um reconhecimento da legitimidade das normas que lhes são impostas.

Observa-se, pois, que as regras deram lugar aos princípios, num movimento de superação da forma pelo conteúdo, o que bem se evidencia no caráter instrumental que contemporaneamente se confere ao processo.

Assim como o Direito deve servir à realização dos valores da cultura de que irradia, de modo a assegurar seu equilíbrio e manutenção, devem as formas processuais ser instrumento de efetivação dos direitos materiais. Não mais se admite que o conteúdo se perca em razão de vícios formais, do que decorre a atual relativização das causas de nulidade do processo, tão caras aos positivistas.

No que concerne a seus reflexos sobre o direito processual, a evolução narrada produziu efeitos em todas suas vertentes. E, na condição de protagonistas dessa dinâmica de adequação do valor conferido às formas, emergem princípios como o da instrumentalidade e efetividade do processo, neste abrangido o princípio da celeridade, positivado como direito fundamental no art. 5º, LXXVIII, da CF.

Contudo, de se destacar que o presente estudo detém-se na importância da plena aplicação desses princípios ao processo penal, mais especificamente no que concerne ao interesse de agir, enquanto condição legitimante da ação penal. Neste ponto do debate, cabe afirmar que a condição legitimante que se atribui ao interesse de agir deve-se justamente ao fato de em seu âmbito serem analisadas a necessidade e a utilidade do processo, tendo em vista os fins que lhe confere o Direito.

Não há como se aplicar uma pena criminal sem o devido processo, razão pela qual, em sede de interesse de agir, sua necessidade é presumida. Contudo, no âmbito da utilidade, muito ainda há para se discutir, mesmo porque é de sua constatação que se conclui pela legitimidade da submissão de alguém à persecução penal em juízo.

A esse respeito, ensina Eugênio Pacelli:

“No âmbito específico do processo penal [...] desloca-se para o interesse de agir a preocupação com a efetividade do processo, de modo a ser possível afirmar que este, enquanto instrumento da jurisdição, deve apresentar, em juízo prévio e necessariamente anterior, um mínimo de viabilidade de satisfação futura da pretensão que informa o seu conteúdo. É dizer: sob perspectiva de sua efetividade, o processo deve mostrar-se, desde a sua instauração, apto a realizar os diversos escopos da jurisdição, isto é, revelar-se útil. Por isso, fala-se em interesse-utilidade” (OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal. 6ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, pp. 84/85).

Como cediço, serve o processo penal ao exercício da coerção punitiva pelo Estado (jus puniendi), que detém seu monopólio, tratando-se de verdadeira — e indispensável, como afirmado — garantia do indivíduo contra eventuais abusos por parte do poder público. Sabe-se, ainda, que a forma por excelência do exercício dessa coerção dá-se com a aplicação da pena privativa de liberdade, à qual a doutrina atribui finalidades de prevenção especial e geral, tanto positiva quanto negativa.

Porém, considerando-se o esvaziamento dos objetivos de inclusão que se vinculavam à pena privativa de liberdade — especialmente observado a partir da década de 80 do século passado —, aqui se toma essa sanção penal tão-somente em seu viés retributivo. Conforme bem apontado por Loïc Wacquant, os ideais de reintegração social foram substituídos por uma “nova penalogia”, que mais diz de uma “reciclagem de detritos sociais”(3).

Deve-se considerar, portanto, que a análise do interesse de agir como condição da ação no processo penal passa necessariamente pelo exame, no caso concreto, da necessidade e, principalmente, da utilidade desse instrumento para a aplicação, ao autor do crime, de uma pena que represente efetiva retribuição pela lesão causada à vítima e à sociedade.

2. Sobre a falta de interesse de agir – ou ilegitimidade do processo – nos casos em que cabível o perdão judicial

Expostas as considerações introdutórias, cabe agora tratar da situação específica a cuja abordagem aqui se dedica, qual seja, da possibilidade de o Ministério Público, enquanto titular da ação penal, nos casos em que verificar cabível o perdão judicial, deixar de oferecer denúncia, requerendo o arquivamento do caderno investigatório por falta de interesse-utilidade.

Nada mais plausível e viável, fundando-se tal possibilidade em argumentos análogos àqueles nos quais se arrima a possibilidade do pedido de arquivamento com base na conclusão acerca de uma futura prescrição a partir da pena ideal. Em ambas as hipóteses — no caso do perdão judicial e da prescrição pela pena ideal —, fica “demonstrada, de plano, a inutilidade da atividade processual correspondente”(4).

Afinal, como claramente define o art. 121, § 5º, do CP, tratando da hipótese de homicídio culposo, o perdão judicial corresponde à possibilidade de o juiz “deixar de aplicar a pena, se as consequências da infração atingirem o próprio agente de forma tão grave que a sanção penal se torne desnecessária”(5). Ou seja, diz o dispositivo da inutilidade da pena estatal diante de uma conduta cujas consequências, por si só, já representem castigo ou sanção suficiente a seu agente provocador, de gravidade tal que torna até mesmo desnecessária a intervenção punitiva do Estado. E, se inútil a pena, inútil o processo enquanto instrumento que se destina a viabilizar sua aplicação(6).

O que se deve destacar é que aqui se filia à posição de Damásio de Jesus, segundo o qual o perdão judicial não se trata de mera faculdade do juiz, mas, sim, de “Direito Penal público subjetivo de liberdade”(7). Nessa esteira, pode-se concluir que assiste ao promotor de justiça, enquanto titular da ação penal, a possibilidade de requerer o arquivamento do inquérito policial ou das peças informativas em constatando que as circunstâncias que animam o caso concreto se subsumem àquelas em que se permite o perdão judicial, com base na ausência de interesse-utilidade de agir. Não concordando o juiz, poderá se socorrer do previsto na última parte do art. 28 do CPP e, assim, remeter o inquérito ou as peças de investigação ao procurador-geral de Justiça, que “oferecerá a denúncia, designará outro órgão para oferecê-la, ou insistirá no pedido de arquivamento, ao qual só então estará o juiz obrigado a atender”.

Entendimentos contrários ao acima exposto terminam por afrontar princípios processuais como, dentre outros, o da instrumentalidade e da efetividade. De certa forma, pode-se concluir que processos deflagrados em condições ensejadoras do perdão judicial — ou seja, em que não há interesse de agir devido à inutilidade do processo — são natimortos. Por essa razão, acabam determinando gastos desnecessários para o Estado e maior sobrecarga da justiça penal, já tão criticada em razão de um alardeado acúmulo de processos. Ante tal consideração, pode-se, em última instância, afirmar que a tese ora desenvolvida contribui reflexamente para a efetiva realização do disposto e programado no art. 5º, LXXVIII, segundo o qual “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.

3. Considerações finais

A crise de legitimidade atravessada pelo sistema penal reclama intervenções certas por parte dos operadores do Direito no sentido de adequar o funcionamento dessa estrutura aos princípios constitucionais e interesse público. Conforme exposto, o legalismo de formalidades absolutas já não condiciona a atuação de advogados, promotores ou juízes, aos quais hoje cabe a função maior de amoldar a lei aos ideais constitucionais e à dinâmica social, sempre visando à efetivação da justiça. O pós-positivismo deu vida à lei morta que caracterizava o positivismo jurídico, animando o Direito com um espírito transformador.

“Essa transformação da ciência jurídica, ao dar ao jurista uma tarefa de construção — e não mais de simples revelação —, confere-lhe maior dignidade e responsabilidade, já que dele se espera uma atividade essencial para dar efetividade aos planos da Constituição, ou seja, aos projetos do Estado e às aspirações da sociedade” (MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de Processo Civil. Volume 1: Teoria Geral do Processo. São Paulo: RT, 2006, p. 46).

Se tudo é proibido, nada é proibido, motivo pelo qual o excesso de leis incriminadoras explícito ao ponto de revelar a ineficácia do sistema penal brasileiro exige uma postura crítica dos juristas, que são responsáveis pelo resgate de sua legitimidade, logo, de sua credibilidade(8). Seja pelas vias processuais, seja através da aplicação de princípios próprios ao direito material, deve-se lutar pela mínima intervenção penal, a cujos drásticos efeitos somente devam ser submetidos casos que representem violação a interesses essenciais à vida em sociedade, considerada sua condição de ultima ratio. E, dentre esses, certamente não se inclui o caso dos agentes de cujas condutas decorrem efeitos tão danosos a si próprios a ponto de tornar inútil a punição estatal(9).

Nesses moldes, retomando o fio processual da questão inicialmente proposta, fecha-se o estudo com o devido destaque à importância da apuração da utilidade do processo enquanto condicionante da legitimidade da persecutio criminis in judicio. Um processo que não é meio eficaz ao alcance dos objetivos que o justificam é inútil e, por conseguinte, jamais será legítimo. Contemporaneamente pode-se afirmar, portanto, que o interesse de agir é verdadeira condição constitucionalizante da ação penal, vez que manifesta o caráter instrumental do processo na conformação do Direito aos ideais constitucionais e à dinâmica social. Harmoniza, assim, a mútua interferência entre essas inseparáveis instâncias, caracterizando-se como uma das formas essenciais à garantia de uma sintonia entre o Direito e o compasso de evolução da sociedade.

Notas

(1) Expressão cunhada por Max Weber.

(2) YOUNG, Jock. A Sociedade Excludente: Exclusão Social, Criminalidade e Diferença na Modernidade Recente. Rio de Janeiro: Revan, 2002.

(3) WACQUANT, Loïc. As Prisões da Miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.

(4) OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal. 6ª ed., Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 85.

(5) Não se cuida aqui, como se pode verificar, da forma de perdão judicial de que trata a Lei nº 9807/99, em seu art. 13.

(6) DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 13ª ed., São Paulo: Malheiros, 2008.

(7) JESUS, Damásio E. de apud GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 6ª ed., Rio de Janeiro: Impetus, 2006, p. 774. Por esse mesmo fundamento, ainda com Damásio, acompanhado por Luiz Flávio Gomes, Maurício Antônio Ribeiro Lopes e Rogério Greco (GRECO, ob. cit., p. 774), também se entende pela extensão das hipóteses em que cabível o perdão judicial a práticas que se enquadrem nos arts. 302 e 303 do CTB. Aliás, transferindo-se a abordagem da questão para o âmbito das condições da ação — portanto, para a atuação ministerial —, torna-se até mesmo desnecessária tal colocação, pois, sob tal enfoque, dispensável seria uma expressa autorização legal para cada caso em que possível a aplicação do perdão, bastando a previsão da possibilidade de se deixar de aplicar a pena em razão de sua inutilidade, para o que bastam os moldes dispostos no art. 121, § 5º, do CP.

(8) Há quem cogite que o Brasil já tenha superado a marca de 5.000 condutas tipificadas.

(9) ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em Busca das Penas Perdidas: A Perda da Legitimidade do Sistema Penal. Rio de Janeiro: Revan, 1991.


Domingos Barroso da Costa, Bacharel em Direito pela UFMG; especialista em Criminologia pelo Instituto de Educação Continuada da PUC-Minas/Acadepol-MG e em Direito Público, pela Unigranrio/Praetorium; mestrando em Psicologia pela PUC/Minas.

COSTA, Domingos Barroso da. O interesse de agir enquanto condição legitimante da ação penal: sobre a possibilidade do pedido de arquivamento do inquérito policial ou das peças de investigação quando cabível o perdão judicial. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 195, p. 13-14, fev. 2009.

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