Entre tantos tipos de violação dos direitos fundamentais, crianças e jovens indígenas também acabam sendo vítimas de abuso e exploração sexual. A questão da falta de terra é apontada como fator desencadeador da violência.
Entre os diversos dados que mostram o acirramento da violência contra os povos indígenas no Brasil, o último relatório elaborado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) revelou que 63% dos registros de violência sexual nos anos de 2006 e 2007 se deram no Mato Grosso do Sul. Destes casos contabilizados no estado - que possui a 2ª maior população indígena do Brasil, com cerca de 63 mil índios -, dois terços foram cometidos contra crianças e adolescentes.
De todas as violências sexuais registradas no Mato Grosso do Sul, 85,7% foram cometidas na Terra Indígena (TI) Dourados, no município de Dourados (MS), principalmente nas aldeias Bororó e Panambizinho. Do total de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, 100% são do povo Guarani-Kaiowá; uma delas tinha apenas três anos de idade.
NA TI Dourados, mais de 12 mil indígenas dos povos Guarani-Kaiowá, Guarani Nhandeva e Terena vivem em apenas 3,5 mil hectares. Mais de 40% dos municípios sul-mato-grossenses não comportam esta população.
A insegurança com relação ao território e o espaço exíguo de terra são apontados pelos especialistas na questão indígena como um dos principais fatores desencadeadores da violência. "Sem a terra, a cultura não sobrevive. Com a espiritualidade e a cultura fortalecidas, o índio enfrenta qualquer situação," explica o presidente do comitê intertribal, Marcos Terena.
Episódios de desnutrição infantil e suicídio envolvendo indígenas no MS são comumente divulgados país afora, mas raros são os registros mais detalhados acerca de outros casos como o abuso e a exploração sexual.
Sistema e programa
Criado em 1997 e monitorado pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH) da Presidência da Republica, o Sistema de Informação para a Infância e Adolescência (Sipia) é um banco nacional de registro e tratamento de informação. O sistema foi criado para subsidiar decisões governamentais sobre políticas para crianças e adolescentes e um dos instrumentos de trabalho dos conselheiros tutelares de todo o país.
O Sipia, entretanto, não faz distinção de raça, só de cor: branco, preto e pardo - nomenclatura oficial do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Quando um conselheiro faz um atendimento a um índio, ele não é cadastrado como tal, mas sim como pardo.
"Não conheço nenhum trabalho de pesquisa sério feito neste sentido", afirma o pediatra e coordenador da equipe técnica da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), Zelik Trajber. "Sabemos que tem casos, de violência sexual, mas não há um mapeamento," complementa o presidente terena do Conselho Distrital de Saúde Indígena no Mato Grosso do Sul, Fernando Souza.
O Programa de Ações Integradas e Referenciais de Enfrentamento à Violência Sexual Infanto-Juvenil (Pair), mantido pelo governo federal (SEDH, Ministérios da Saúde, da Educação e do Desenvolvimento Social) chegou apenas a seis municípios do estado. Em 2009, espera-se que o Pair seja estendido para mais cinco localidades, inclusive Dourados (MS). Os organizadores pretendem convocar vários atores da sociedade e montar um plano operativo de enfrentamento à violência sexual infanto-juvenil para cada município.
O coordenador do programa em Mato Grosso do Sul, Ângelo Motti, sugere o fortalecimento de uma rede articulada para o enfrentamento do problema. "Quando implementamos o Pair em Antonio João (MS), chamamos a Funai e a Funasa. Mas eles não compareceram, o que dificulta a eficiência do programa. Tem coisa que não depende só de nós. A dificuldade referente a certas questões não é a impossibilidade de realizá-las".
Experiências
Hamilton Lopes, Guarani Kaiowá, foi um dos primeiros índios do Estado a desempenhar a função de conselheiro tutelar. Ele é um dos líderes da aldeia Nhanderu Marangatu de Antônio João e, apesar de conhecer bem a realidade indígena e não-indígena, sentia dificuldades em resolver alguns casos.
"O ECA [Estatuto da Criança e do Adolescente] leva em consideração as diferenças. O que acontece é que alguns casos específicos ele não detalha. Os Artigos 15, 16, 17 e 18, palavras como "crença" e "valores", que circundam todo o ECA, referem-se a todas as crianças e adolescentes”, adiciona Raphael Gomes, da Girassolidário - Agência em Defesa da Infância e Adolescência.
“Como o estatuto não foi elaborado para um tipo específico de crianças [negros, índio e mestiços)] mas sim para todas as crianças, em alguns casos a generalização do ECA abre brechas”, continua o jornalista. Avanços e desafios, adiciona, fazem parte do processo. Para ele, não se pode tirar o crédito de um “documento revolucionário" como o ECA.
A distribuição dos recursos federais também ajuda a entender parte desse processo. Segundo o Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal (Siafi), a União repassou à Funai de Mato Grosso do Sul, , em 2007, R$ 5,7 milhões. O estado vizinho de Mato Grosso, terra de 30 mil índios, ficou com praticamente o dobro: R$ 11,7 milhões.
A Fundação Nacional do índio (Funai) encomendou para o procurador federal Edson Sêda - um dos redatores do ECA e consultor do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) para a América Latina - uma versão comentada do Estatuto da Criança e do Adolescente voltado para comunidades urbanas, rurais e indígenas. Junto com seu filho, o antropólogo Edson Sêda Júnior, os dois escreveram "A criança, o índio, a cidadania”, em 2005.
A publicação especializada, contudo, não está sendo utilizada como ferramenta por profissionais ligados ao assunto. Como conta Edson Sêda, o livro sequer foi publicado. “Então, como sempre faço, coloquei o livro à disposição de todos na internet [confira o trabalho na íntegra], pois da burocracia federal jamais emergerá qualquer forma de cidadania. Quero que todos divulguem esse livro amplamente, porque ele é, realmente, um importante instrumento de trabalho para a construção da cidadania no Brasil".
Repórter Brasil.
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