quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Artigo: A garantia da duração razoável do processo no âmbito da execução penal

Título na Integra: A garantia da duração razoável do processo no âmbito da execução penal: o regular gerenciamento do processo executivo como forma de amenizar o passivo social e financeiro causado pelo excesso na execução.

“En el processo el tiempo es algo más que oro: es justicia”
Eduardo Couture

Uma das emanações do due process of law é o princípio da celeridade, ou o direito a duração razoável do processo, reconhecido primeiramente na Convenção Européia para Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica)(1) também regula a matéria (art. 8º). A Emenda Constitucional 45 inseriu expressamente, no rol de direitos e garantias fundamentais do art. 5º da Constituição Federal, o inciso LXXVIII (a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação).

Conforme leciona André Luiz Nicolitt, a garantia citada tem plena aplicação nos processos executivos de pena, havendo a necessidade, inclusive, de uma sintonia mais fina no que pertine ao gerenciamento do processo, de modo a que não seja o apenado prejudicado em seus direitos(2).

Esta é a razão pela qual, no âmbito do processo executivo de pena, os poderes instrutórios do juiz sobrelevam-se, de modo a poder o magistrado determinar o quanto necessário para o resguardo dos direitos do executado, gozando de plena iniciativa para provocar os procedimentos admissíveis em sede executiva. Nesse sentido, o item 174 da Exposição de Motivos à Lei de Execução Penal:

“174. A legitimidade para provocar o procedimento se estende para além da iniciativa judicial, cabendo, também, ao Ministério Público, ao interessado, ao Conselho Penitenciário e às autoridades administrativas invocar a prestação jurisdicional em face da natureza complexa da execução.”

Ora, essa dotação instrutória especial é conferida ao magistrado exatamente para que este impeça a ocorrência de desvios e/ou excessos na execução penal. Tanto é assim que a LEP diz competir ao juiz, dentre outras competências, a de “zelar pelo correto cumprimento da pena e da medida de segurança” (art. 66, VI).

Desse modo, na dicção legal, o juiz é guardião do correto cumprimento da pena. Nesse sentido, é seu dever, percebendo que se aproxima o lapso temporal que possibilita o deferimento de quaisquer dos benefícios da LEP, aviar o quanto entender necessário para verificar se o sentenciado conta com os requisitos legais, de modo que, com o implemento do lapso temporal, já contem os autos com o quanto necessário para a sua decisão. Só atuando com esta necessária proatividade é que o magistrado, zelando pelo correto cumprimento da pena, evitará, como é seu dever, a ocorrência de excessos na execução penal.

Nesse contexto é que deve ser levada em conta a regra constante da LEP no sentido de que compete ao magistrado “inspecionar, mensalmente, os estabelecimentos penais, tomando providên­cias para o adequado funcionamento e promovendo, quando for o caso, a apuração de responsabilidade” (art. 66, VII). Como ensina Antônio de Padova Marchi Júnior (grifo nosso):

“Cabe ao juiz da Execução velar pela manutenção da legalidade em todas as etapas do cumprimento da pena, tendo a possibilidade de atuar de ofício, mesmo no plano administrativo, através da expedição de ordens de serviço, provimentos e portarias, respeitada a sua competência (...). Assim, seja para decidir acerca dos institutos jurídicos próprios da Lei de Execução Penal, seja para adotar medidas tendentes a preservar a legalidade de todas as fases de cumprimento da pena, torna-se indispensável a presença do juiz nos estabelecimentos prisionais (...)”(3).

Ora, se pode (e deve) atuar o juiz de ofício até mesmo no plano administrativo, com vistas a garantir os direitos do recluso, quanto mais não o deverá fazer no plano jurisdicional, de modo a evitar qualquer tipo de excesso na execução da pena! Como diz Salo de Carvalho, “Se a jurisdição é o instrumento através do qual o Estado se apropria do conflito do sujeito lesado para resguardar a racionalidade da pena, esta deve operar de maneira otimizada na execução, controlando os atos administrativos de forma a resguardar a dignidade e a humanidade dos apenados”(4).

Contudo, a experiência diária daqueles que militam na execução penal, em especial da Defensoria Pública, é que, ao reverso, muitas vezes, o magistrado dá causa, paradoxalmente, ao excesso, ao permitir, em razão de sua demora na prestação jurisdicional, a permanência do preso em regime mais rigoroso por tempo maior do que permite a lei.

Nunca é demais ressaltar que o magistrado, quando permite tais situações, além de desdenhar de direito e garantia fundamental do apenado, albergados na Constituição Federal e em Tratado Internacional, afronta a dispositivos orgânicos e de conduta ética(5).

Infelizmente, o quotidiano da Defensoria Pública em Mato Grosso — que certamente não constitui exceção em relação às outras Defensorias — revela, em muitos casos, certo desprezo de representantes do Poder Judiciário no tocante a assegurar ao apenado a garantia da duração razoável do processo. São frequentes os habeas corpus manejados pelo Núcleo Estadual de Execução Penal da Defensoria Pública perante o Tribunal de Justiça de Mato Grosso invocando a garantia do art. 5º, LXXVIII da Constituição Federal, unicamente com vistas a incitar a atividade do juiz de primeiro grau que, provocado a manifestar-se acerca de direitos a que o apenado já faz jus, queda-se inerte, ou não atua com a solércia esperada.

A demora do Poder Judiciário, além de ensejar, dependendo do caso concreto, direito a indenização(6), pode ser causadora de espantoso passivo social e financeiro. Com efeito, cada unidade prisional pode ser avaliada como geradora de um passivo social e financeiro. O passivo social recai sobre o apenado, sua família e comunidade e guarda relação com a noção de tempo social(7). Como diz Rodrigo Mo­retto, o tempo no cárcere, “lento, longo, improdutivo, dessocializante, despersonalizante, estigmatizante e desumano”(8), é dotado de verdadeiro caráter criminógeno. Além disso, fluem em notável descompasso os tempos dentro (congelado) e fora (hiperveloz) do cárcere. Quanto ao passivo financeiro, causa verdadeiro espanto observar o quanto a permanência indevida do apenado no regime fechado impacta negativamente os cofres públicos.

De fato, em pouco mais de um ano de atividades(9), e apenas atendendo à população prisional da Capital e da cidade vizinha de Várzea Grande, o Núcleo Estadual de Execução Penal já apurou a permanência indevida no regime fechado equivalente a 65.738 dias, correspondendo a um gasto indevido de R$ 2.629.080,00. As cifras são espantosas, sobretudo levando-se em conta que foram atendidos apenas cerca de 35% da população prisional(10).

Com efeito, 65.730 dias equivalem a 180 anos de prisão indevida no regime fechado. Admitindo-se que o percentual de casos em que se verifica a permanência indevida no fechado seja constante — mas a tendência é de crescimento — a projeção para 100% da população prisional apenas de Cuiabá e Várzea Grande seria de 187.822 dias, ou 514 anos, com um gasto indevido para os cofres públicos de R$ 7.511.657,00(11)!

Conclui-se, pois, que a demora processual, além de prejudicar o apenado, afeta toda a coletividade. De qualquer sorte, como visto nos parágrafos acima, qualquer passivo, seja social, seja financeiro, será grandemente amenizado se o processo executivo de pena for regularmente gerenciado, com o magistrado atendendo, normalmente e no prazo razoável, a seus deveres processuais e fiscalizatórios, de modo a evitar excesso na execução penal.

Notas

(1) O Brasil aderiu a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica, de 22 de novembro de 1969) através do Decreto n. 678, de 6 de novembro de 1992.

(2) NICOLITT, André Luiz. A Duração Razoável do Processo. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006.

(3) “Da Importância da Fiscalização Permanente e das Visitas Mensais aos Estabelecimentos Prisionais” In: Execução Penal – Constatações, Críticas, Alternativas e Utopias, PINTO, Felipe Martins (org.). Curitiba: Juruá, 2008, pp. 309/310.

(4) CARVALHO, Salo de. Pena e Garantias: Uma Leitura do Garantismo de Luigi Ferrajoli no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 184.

(5) De fato, a ausência de solércia por parte do magistrado contraria dois dos deveres a si impostos pelos incisos II e III do art. 35 da Lei Complementar 35/79, verbis: “II – não exceder injustificadamente os prazos para sentenciar ou despachar; III – determinar as providências necessárias para que os atos processuais se realizem nos prazos legais.” Além disso, ao dar causa à demora processual, fere também o Código de Ética da Magistratura Nacional, aprovado pelo plenário Conselho Nacional de Justiça em 26.08.08, cujo art. 20 (Capítulo IV – Diligência e Dedicação) prescreve (os destaques são nossos): “Art. 20. Cumpre ao magistrado zelar para que os atos processuais se celebrem com a máxima pontualidade e para que os processos a seu cargo sejam solucionados em um prazo razoável, reprimindo toda e qualquer iniciativa dilatória ou atentatória à boa-fé processual.”

(6) Sobre a Responsabilidade Civil do Estado em razão da violação da garantia do art. 5º, LXXVII da CF, consulte-se NICOLITT, André Luiz. A Duração Razoável do Processo. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006, pp. 93/98. Consulte-se também LOPES JR., Aury e BADARÓ, Gustavo Henrique. Direito ao Processo Penal no Prazo Razoável. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006, pp. 120/123.

(7) Sobre a noção de tempo social consulte-se ELIAS, Norbert. Sobre o Tempo. Editora Jorge Zahar.

(8) MORETTO, Rodrigo. Crítica Interdisciplinar da Pena de Prisão: Controle do Espaço da Sociedade do Tempo. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005, p.101.

(9) O Núcleo Estadual de Execução Penal executa o PAS – Programa de Assistência ao Segregado, que teve início em 15.08.2007, com sua instalação na Cadeia Pública de Várzea Grande-MT, que funcionou como unidade protótipo do programa.

(10) O cálculo leva em conta um custo mensal de R$ 1.200,00 por preso, de acordo com a SENASP – Secretaria Nacional de Justiça – MJ, in Manual de Monitoramento das Penas e Medidas Alternativas. Brasília: Secretaria Nacional de Justiça, 2002. O custo no regime semi-aberto não é levado em conta, por duas razões: a) porque em Cuiabá e Várzea Grande na prática o semi-aberto é cumprido com as condições do aberto; e b) porque não há dados oficiais da Secretaria de Justiça e Segurança Pública acerca do custo mensal no regime semi-aberto.

(11) Os dados continuam sendo levantados diariamente pelo Núcleo Estadual de Execução Penal da Defensoria Pública de Mato Grosso, a partir de uma plataforma digital — o PAS DIGITAL — de gerenciamento dos trabalhos executados pelo Núcleo. A meta é mapear os dados de todo o sistema prisional de Mato Grosso e, a partir deles, gerar informação e conhecimento que possibilitem a adoção de ações corretivas.


Marcos Rondon Silva
Defensor Público do Estado de Mato Grosso; coordenador do Núcleo Estadual de Execução Penal e pós-graduado em Ciências Criminais pela Unama e Instituto LFG e em Direito Agroambiental pela Universidade Federal de Mato Grosso.

SILVA, Marcos Rondon. A garantia da duração razoável do processo no âmbito da execução penal: o regular gerenciamento do processo executivo como forma de amenizar o passivo social causado pelo excesso na execução. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 195, p. 17, fev. 2009.

Nenhum comentário:

Pesquisar este blog