sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Artigo: Sua pena não termina quando acaba

No Brasil, a pena nunca termina ao fim da execução. Naturalmente ela se prolonga por mais 5 anos(1).

Durante este “período de prova”, a pena já cumprida fica à espreita, esperando o momento certo para reaparecer.

Isto porque o legislador brasileiro acredita que, não funcionando a reabilitação(2) na primeira passagem pelo cárcere, é necessário garantir que o reincidente seja novamente encaminhado para a prisão e que lá fique mantido por mais tempo (ou talvez, somente primários tenham direito à reabilitação, aos outros se reserva a prevenção específica).

A reincidência se faz presente na legislação brasileira em 29 momentos(3). Agravar a pena(4), impedir ou revogar benefí­cios(5) e alterar prazos(6) são suas principais funções(7).

Para se mostrar o quão desastrosa é a incidência da reincidência no Brasil, observemos um furto simples de coisa de pouco valor cometido pela segunda vez. Neste exemplo, a reincidência estará presente (seja obrigatoriamente ou por opção do juiz):

(1) Vedando a concessão de fiança;

(2) No momento da dosimetria da pena — como agravante e fator preponderante na contraposição entre estas e as atenuantes;

(3) Na fixação do regime;

(4) Impossibilitando a substituição por penas restritivas de direito;

(5) Proibindo a diminuição ou substituição da pena em razão da coisa furtada ser de pouco valor;

(6) Impedindo o sursis;

(7) Aumentando o prazo prescricional;

(8) Aumentando o prazo para o livramento condicional; e

(9) Elevando o prazo para a concessão da saída temporária.

Este é o mínimo de situações em que um réu reincidente pode ser tratado de maneira diferenciada do primário num furto simples de coisa de pouco valor. O que deixa claro que o bis in idem não ocorre somente quando a reincidência é utilizada durante o cálculo da pena como agravante necessária.

Neste momento, há um recurso extraordinário interposto pelo Ministério Público gaúcho(8) que, após decisão do Tribunal de Justiça reconhecendo a inconstitucionalidade do art. 61, I, do CP em mais de uma ocasião(9), pede ao Supremo que reconheça a recepção deste artigo pela Constituição de 88.

Já foi reconhecida a repercussão geral pelo ministro Cezar Peluso, mas até o momento não houve decisão definitiva. E, baseado em uma pesquisa rápida no site STF, esta pode não ser aquela que alguns — como eu — esperam(10).

É necessário o reconhecimento da inconstitucionalidade da reincidência quando usada como circunstância agravante, mas este deve ser só um primeiro passo. Mais do que isto, é indispensável uma reforma profunda para adequar toda a legislação penal.

Pois, às vezes mais nocivo ao condenado é sua função de cercear o direito a benefícios ou fazê-lo esperar mais tempo para obtê-los.

Não se pode esquecer que a pena não está apenas no dispositivo da sentença. Neste exemplo do furto simples, o aumento na pena, que resultaria da aceitação da reincidência como agravante, tem efeitos menos perversos do que a proibição das substituições da pena ou as diminuições previstas especificamente para o tipo.

Obviamente esta alteração dependeria de um enorme esforço político. No entanto, se observarmos o Código Penal peruano de 1991, que eliminou o conceito de reincidência para quaisquer efeitos — seja para o agravamento de pena ou a não concessão de benefícios — vemos que ele foi promulgado durante o governo Fujimori (que certamente não entrou para a história como amante dos direitos fundamentais).

A exposição de motivos daquele Código era muito clara ao elencar as razões que levaram a comissão responsável pelo Código a adotar esta posição:

“Hoy no resulta válido, en verdad, conservar en nuestro ordenamiento jurídico estas formas aberrantes de castigar [reincidência e habitualidade] que sustentan su severidad en el modo de vida de un individuo (derecho penal de autor). La Comisión Revisora estima que carece de lógica, humanidad y sentido jurídico, el incremento sustantivo de la pena correspondiente a un nuevo delito, vía la rein­ci­dencia o habitualidad, sin otro fundamento que la existencia de una o varias condenas precedentes, por lo demás, debidamente ejecutadas. Dentro de este razonamiento, castigar a una persona tomando en cuenta sus delitos anteriores, cuyas consecuencias penales ya ha satisfecho, conlleva una violación del principio bis non in idem (nadie puede ser juzgado dos veces por un mismo delito), el mismo que se encuentra consagrado en el artículo 233º inc. 11 de la Carta Política. La experiencia ha demostrado que la drasticidad de las penas impuestas en nombre de la reinci­dencia y habitualidad, no han servido para atemorizar, de conformidad con criterios de prevención general, todo lo cual ha llevado a la Comisión Revisora a no incluir en el documento proyectado este rezago de los viejos tiempos del derecho de castigar y que el positivismo peligrosista auspició con el fin de recomendar la apli­ca­ción de medidas eli­minatorias y de se­gre­gación social” (grifos meus).

A reincidência desapareceu completamente do Código Penal peruano durante 15 anos, até a Lei 28.726/06 acrescentar dispositivos que reinstituíram os conceitos de reincidência e habitualidade(11), mas somente como circunstâncias a serem consideradas no cálculo da pena(12) (no site do Congresso peruano(13) há explicação para tal mudança).

E mesmo após este retrocesso, o sistema peruano, no que se refere à reincidência, continua sendo muito mais garantista do que o brasileiro.

Na verdade, lá a reincidência só é considerada no cálculo da pena. Só que, como o país não adota um sistema trifásico para a dosimetria (uma exclusividade brasileira), a reincidência ou a habitualidade são consideradas em um universo de 13 elementos para a elaboração final da pena(14), sem um valor específico em sua determinação.

Ou seja, em termos de reincidência, o único ponto em que o Brasil pode avançar neste momento é o único ponto que o Peru regrediu.

Ah, e se o Supremo realmente reconhecer a inconstitucionalidade da reincidência como agravante, vão faltar só mais 28 recursos extraordinários para limpar a legislação brasileira...

Notas

(1) Este é o tempo previsto no CP (art. 64, I) para cessar os efeitos da reincidência após o cumprimento da pena.

(2) Art. 1º, Lei de Execução Penal.

(3) Parte das informações aqui apresentadas foi extraída de projeto de pesquisa ainda em curso coordenado por Maíra Rocha Machado. Para realizar este levantamento, consideramos o Código Penal, o Código de Processo Penal, a Lei de Execução Penal e as Leis 8.072/90 e 9.099/95. Separamos todos os artigos que estejam, explícita ou implicitamente, relacionados à reincidência. Assim, também estão inclusos aqueles artigos que só fazem menção à condição de primariedade ou aos antecedentes do réu.

(4) Arts. 33, §2º, b e c; 59; 61, I; 67; e 71, parágrafo único, todos do CP.

(5) Arts. 44, II e § 3º; 60, § 2º; 77, I; 81, I; 81, § 1º; 83, V; 86; 87; 95; 155, § 2º; 168-A, § 3º; 170; 171, § 1º; 180, § 5º; 337-A, § 2º, todos do CP; 323, III, do CPP; e 76, III, Lei 9.099/95.

(6) Arts. 83, II , 110 e 117, do CP; 123, II, da LEP; e 2º, § 2º, da Lei 8.072/90.

(7) Até pouco tempo atrás, ela também servia para impedir que réus reincidentes, pronunciados ou condenados, recorressem em liberdade. Felizmente, essa imposição foi revogada com as Leis 11.689/08 e 11.719/08.

(8) RE 591.563-8/RS.

(9) O caso que gerou o recurso extraordinário é a Apelação Criminal 70016965345, da Quinta Câmara, rel. des. Luís Gonzaga da Silva Moura.

(10) Utilizando o termo de busca “reincidência e agravante” e separando a mostra ministro a ministro, pude observar que os relatores dos seguintes acórdãos (oito no total) não reconhecem nenhuma inconstitucionalidade quando a reincidência é usada como agravante e não há, aparentemente, nenhum acórdão dissidente destes: HC 94.020/RS, HC 93.969/RS, HC 93.194/RS, HC 94.903/RS, HC 70.483/SP, HC 82.306/PE, HC 88.422/RS e HC 85.507/PE.

(11) No Brasil, desde o Código Imperial de 1830, nunca houve distinção entre reincidentes. Apenas no CP de 1969 (que não chegou a ter vigência) e nos anteprojetos do Código Penal, como o de Nelson Hungria de 1962, previa-se essa separação entre “reincidentes”, “habituais” e “por tendência”, mas que não vingou. Cf. Alcides Munhoz Neto, “Criminosos Habituais e por tendência”, in Revista de Direito Penal, nºs 15/16, Rio de Janeiro: Editora Revista do Tribunais, julho/dezembro 1974.

(12) A habitualidade é caracterizada pela ocorrência de três sentenças condenatórias transitadas em julgado contra o réu e permite o incremento da pena em até a metade. A reincidência, por sua vez, permite o aumento da pena em até 1/3 e ocorre quando há menos de três condenações transitadas em julgado

(13) E pelo que se depreende da leitura, ela se deu por motivos de ordem pública e pressão da mídia. Cf: http://www.congreso.gob.pe/participa/2006/ipc_11052006.htm.

(14) Art. 46 do Código Penal peruano. Entre eles encontram-se também a idade, a educação, a situação econômica e o ambiente social do réu, a confissão sincera e a reparação do dano.


Pedro Mesquita Schaffa, Bacharel pela USP e pesquisador na Direito GV.

SCHAFFA, Pedro Mesquita. Sua pena não termina quando acaba. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 195, p. 10, fev. 2009.

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