Os reflexos da assinatura e do cumprimento de um termo de ajustamento de conduta na esfera dos crimes ambientais é uma das muitas questões que surgem do intrincado relacionamento entre o Direito Penal e outros ramos do Direito. Tais questões têm gerado perplexidade na aplicação do direito e representam um desafio para a doutrina.
A denominada administrativização do Direito Penal — fenômeno consistente na criminalização incidente sobre fatos que também configuram ilícitos administrativos — resulta em um crescente espaço de sobreposição de normas e sistemas penais e administrativos (ou civis). Essa sobreposição nem sempre se dá de forma tranqüila, sendo comum a existência de situações práticas paradoxais.
O Direito Penal Tributário parece ser o campo que vem tendo de lidar com tais situações há mais tempo e de forma mais evidente — tanto que se consolidou em nossa jurisprudência, depois de longos anos de contradições, a necessidade de se exaurir a esfera fiscal anteriormente à incidência da esfera penal.
O Direito Penal Ambiental padece das dificuldades geradas pela sobreposição de esferas de modo particularmente intenso, já que inúmeros tipos penais apresentam elementos que necessitam, para sua compreensão, do recurso à esfera administrativa. Além disso, muitas são as condutas penais que somente se configuram quando praticadas sem autorização da autoridade ambiental.
A assinatura do termo de ajustamento de conduta consiste em mais uma das situações em que se tem percebido a necessidade de buscar um relacionamento mais harmônico e livre de contradições entre as diferentes esferas incidentes sobre um mesmo fato.
A previsão legal para o termo de ajustamento de conduta na esfera ambiental está no art. 5º, § 6º, da Lei nº 7.347/85 (Lei de Ação Civil Pública), incluído em 1990, pela Lei nº 8.078. Esse dispositivo, bastante tímido e sintético, apenas prevê que “os órgãos públicos legitimados poderão tomar dos interessados compromisso de ajustamento de sua conduta às exigências legais, mediante cominações, que terá eficácia de título executivo extrajudicial”.
Na esfera civil, há discussão no plano teórico sobre a natureza jurídica do termo de ajustamento de conduta. Alguns autores defendem tratar-se de um negócio jurídico declarativo; outros afirmam se cuidar de uma transação — essa última posição prevalece entre os estudiosos do tema.
Independentemente dessa relevante discussão, não restam dúvidas de que, uma vez firmado o termo de ajustamento de conduta, não se buscará a comprovação do dano ambiental e sua indenização (caso comprovado), mas sim a execução do próprio termo de ajustamento de conduta, até em razão de sua eficácia de título extrajudicial. Portanto, a assinatura do termo suspende o inquérito civil ou a ação civil pública e seu cumprimento os encerra.
Além disso, importante mencionar que o órgão ambiental pode assinar em conjunto o termo de compromisso e, como conseqüência, eventuais embargos, suspensão de atividades ou imposição de multas podem ser suspensos em razão da assinatura — no caso da multa, pode haver mera redução do valor.
Daí se percebe que, tanto no âmbito da responsabilidade civil quanto no da administrativa, o termo de ajustamento de conduta tem como efeito a substituição da situação anterior por uma nova: aquela acordada no termo.
Todavia, as conseqüências na seara criminal poucas vezes têm sido levadas em consideração no bojo do termo de ajustamento de conduta. Tanto é assim que já houve inúmeras situações em que um interessado firmou um termo de ajustamento e foi denunciado criminalmente pela prática do mesmo fato — sendo que em muitos desses casos o termo foi utilizado como “confissão” dos fatos na esfera penal.
Apesar de ainda predominar a linha de que as instâncias penal e administrativa ou civil seriam independentes, a situação acima mencionada traz uma forte sensação de que algo está “fora da ordem”. Não parece muito razoável, por exemplo, num suposto crime de poluição seguir com a atuação do direito penal quando a esfera administrativa — que analisa de forma técnica um dos elementos do tipo penal, a poluição — abriu mão de decidir sobre os fatos e eventualmente impor sanção e não há, portanto, certeza técnica da ocorrência da conduta.
Diante dessas contradições práticas, algumas decisões de nossa jurisprudência vêm reconhecendo que o termo de ajustamento pode significar ausência de justa causa para a propositura de ação penal.
Nesse sentido, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, analisando um caso em que houve assinatura de TAC com o Ministério Público e com o órgão ambiental, decidiu:
“Mandado de Segurança – Crime ambiental – Existência de Termo de Compromisso de Ajustamento de Conduta – Ausência de justa causa – Deve ser trancada a ação penal por falta de justa causa na hipótese em que a impetrante assinou termo de compromisso de ajustamento de conduta ambiental junto aos órgãos competentes antes do oferecimento da denúncia – Mandamus concedido” (TJMG, Proc. 1.0000.03.400377-2, rel. Jane Silva, v.u., j. 25/06/2004).
O citado Tribunal já proferiu outras duas decisões semelhantes:
“Habeas Corpus. Acordo firmado com força de título executivo extrajudicial. Matéria penal definitivamente desconstituída que impede a apresentação da denúncia sobre o mesmo fato. Denúncia oferecida e recebida. Constrangimento ilegal caracterizado. Trancamento da ação penal ordenada.” (TJMG - HC 1.0000.04.410063-4/000(1), j. 24/08/2004, rel. Antônio Carlos Cruvinel, v.u.)
“Habeas Corpus. Trancamento de ação penal. Crime ambiental. Existência de Termo de Ajustamento de Conduta. Justa causa que não se verifica. Denúncia que não individualiza a conduta do paciente. Direito de defesa prejudicado. Inépcia. Ordem concedida” (TJMG – HC 1.0000.06.445201-4/00, rel. Reynaldo Ximenes Carneiro, j. 16/11/2006, v.u.).
A questão também é objeto de habeas corpus impetrado no Supremo Tribunal Federal (HC 92.921), ainda não julgado no mérito, mas cuja decisão liminar foi proferida pelo min. Ricardo Lewandowski, que fundamentou a decisão de concessão da liminar na possibilidade de dupla responsabilização pelos mesmos fatos, decorrente de assinatura de TAC e propositura de ação penal.
A análise do tema merece ser feita à luz de cada tipo penal, já que em alguns casos a vinculação entre as esferas penal e administrativa se faz diretamente no âmbito da tipicidade; em outros, se trata de ponto afeito à antijuridicidade.
Indubitavelmente, além da enorme relevância prática, cuida-se de discussão interessantíssima no que se refere aos seus aspectos teóricos e que, diante da importância cada vez maior do Direito Penal Ambiental, certamente merecerá atenção crescente tanto da doutrina quanto da jurisprudência.
Helena Regina Lobo da Costa
Mestre e doutora em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, professora da GVLaw e advogada
COSTA, Helena Regina Lobo da. Termo de ajustamento de conduta e crime ambiental. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 190, p. 15, set. 2008.
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