terça-feira, 28 de outubro de 2008

Artigo: A suspensão condicional do processo na ação penal privada

Na primeira edição do livro Suspensão Condicional do Processo Penal, RT, SP, 1995, p. 149, sustentávamos a tese da impossibilidade de suspensão do processo nos casos de ação penal privada (exclusivamente privada ou personalíssima). Na ação penal privada subsidiária da pública já se mostrava evidente o cabimento da suspensão, porque, na verdade, é hipótese de ação pública. Refletindo melhor sob o tema (re melius perpensa), mudamos de opinião. Dizíamos, para fundamentar nossa postura precedente de recusa da suspensão, que na ação penal privada já vigora o princípio da oportunidade e que qualquer acordo (processual) significaria perdão ou perempção. A doutrina, nos primeiros momentos de vigência da lei, Cézar R. Bitencourt, Juizados Especiais Criminais e Alternativas à Pena de Prisão,Liv. do Advogado, Porto Alegre, 1995, p. 114; Doorgal Gustavo B. Andrada, A Suspensão Condicional do Processo Penal, Del Rey, Belo Horizonte, 1996, p. 82; Maurício A. Ribeiro Lopes, Comentários à Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, RT, SP, 1995, pp. 380/381; Marino Pazzaglini Filho et alli, Juizado Especial Criminal, Atlas, SP, 1996, p. 95).

Bem refletido o assunto, no entanto, pode-se verificar que a transação processual (suspensão do processo) não possui a mesma natureza do perdão (que afeta imediatamente o ius puniend) nem da perempção (que é sanção processual ao querelante inerte, moroso). Havendo proposta e aceitação da suspensão do processo não se pode dizer que o querelante esteja sendo desidioso. Está agindo. Está fazendo uma opção pela incidência de uma resposta estatal alternativa, agora permitida, mas que é também resposta estatal ao delito. Isso não é inércia.

Muito menos indulgência (perdão). Nem sequer abandono da lide. De outra parte, no perdão e na perempção o que temos são atos de causação (de encerramento do processo, sem margem de indeferimento pelo juiz). Já na suspensão, o que existe é um ato de postulação (a última palavra é do juiz) (v. nosso Suspensão Condicional do Processo Penal, cit., p. 127).

Se o querelante pode o mais, que é perdoar, é evidente que também pode o menos (optar pela solução alternativa do litígio).

Cabe ainda lembrar o seguinte: o maior âmbito de incidência da suspensão na ação penal privada será constituído provavelmente pelos crimes contra a honra. Por terem procedimento especial, estão fora dos juizados especiais. Exatamente porque não integram os juizados, não vemos como excluí-los da suspensão (é dizer, da possibilidade de um via alternativa de resolução do conflito). Na essência, tendo em vista a finalidade de prevenção geral e especial da pena, não são delitos que requeiram necessariamente a resposta estatal clássica (da prisão). Alguma alternativa transacional deve ter cabimento, mesmo porque o legislador, no artigo 89, só teve em consideração a pena mínima do delito e de modo algum deixou transparecer que quisesse excluir qualquer modalidade de ação penal (pública ou privada).

O fato de o artigo 89 mencionar exclusivamente "Ministério Público", "denúncia", não é obstáculo para a incidência da suspensão na ação penal privada, por causa da analogia (no caso in bonam partem), que vem sendo reconhecida amplamente na hipótese do artigo 76 (v. Ada P. Grinover et alli, Juizados Especiais Criminais – Comentários, RT, SP, 1995, p. 122). Acima de preciosismos lingüísticos está o interesse maior na efetiva realização de uma política criminal alternativa, assim como o interesse do próprio acusado de valer-se, querendo, dessa resposta estatal alternativa.

Se os poderes do substituto processual (e nessa categoria enquadra-se indiscutivelmente o querelante) coadunam-se inclusive com a transação penal, que envolve diretamente o ius puniendi estatal, como maior razão (a fortiori), afina-se perfeitamente com a transação processual (que não envolve diretamente referido direito). A base doutrinária dessa compatibilidade está "na evolução dos estudos sobre a vítima que faz com que por parte de muitos se reconheça o interesse desta não apenas à reparação civil, mas também à punição penal" (v. Ada P. Grinover et alli, ob. cit., p. 122).

Não é porque já reinava o princípio da oportunidade em relação à ação penal privada, acrescente-se, que devemos sempre raciocinar em termos de punição total (resposta estatal tradicional, prisão) ou renúncia total (perdão, perempção). Tertius datur. A introdução no nosso ordenamento jurídico de uma forma alternativa de solução do conflito obriga-nos a questionar a bipolaridade tradicional. Entre as duas alternativas clássicas na ação penal privada, surge agora a possibilidade de algo intermediário (cumprimento de algumas condições, dentre elas a reparação dos danos, durante certo período de prova, com a eficácia extintiva da punibilidade).

Muitas vezes, à vítima, nem interessa o processo clássico (por causa de todos os transtornos que ele provoca), nem tampouco o perdão puro e simples.

Em inúmeras ocasiões, ademais, mesmo em se tratando de crime contra a honra, é perfeitamente possível a ação penal pública (crime contra funcionário público, por exemplo), ao lado da ação penal privada. O crime é o mesmo. Pode ser perseguido pelo particular ou pelo Ministério Público. Cuidando-se de iniciativa pública, admite-se a suspensão do processo. Ora, não vemos como observar o princípio da igualdade, senão concebendo que cabe a suspensão do processo também em relação à ação penal privada, é dizer, independentemente de quem figura no pólo ativo da ação. Casos idênticos não podem ter conseqüências jurídicas distintas.

Urge ainda considerar (e esse argumento é de fundamental relevância) os interesses públicos gerais presentes no instituto da suspensão, que transcendem em muito os interesses pessoais dos envolvidos no litígio. Dentre aqueles destacam-se: ressocialização do infrator pela nada disso será alcançado. Nem tampouco a meta político-criminal que o legislador quis imprimir para a chamada criminalidade de menor ou médio potencial ofensivo.

Cabe ainda salientar a boa e generalizada aplicação que vem sendo feita da suspensão do processo, sua aprovação geral, bem como sua suficiência em termos de prevenção geral e especial do delito. Sendo assim, seu âmbito de incidência deve ser ampliado, não restringido.

Uma última observação: considerando que a suspensão do processo é direito público subjetivo do acusado, desde que presentes todos os seus requisitos legais, não pode o querelante recusar a proposta de suspensão injustificadamente. Caso isso ocorra, cabe habeas corpus contra tal ato ilegal, que deve ser julgado pelo próprio juiz de primeiro grau. Deferido, o writ, o juiz impõe ao querelante a obrigação de fazer a proposta. E tudo pode ocorrer numa só audiência. Não concordando o querelante, é evidente que tem o direito de apelação. Diante do exposto, destaque merece o primeiro acórdão abaixo transcrito, relatado pelo eminente Magistrado Ricardo Lewandowski que, com certo ímpar, no nosso modo de entender, com bastante pioneirismo, conseguiu dar passos firmes num terreno que ainda apresenta-se bastante movediço e desconhecido.

Jurisprudência

a) Cabe a suspensão condicional do processo na ação pena privada: "Lei nº 9.099/95. Suspensão condicional do processo. Aplicação à ação penal privada. Possibilidade. A suspensão condicional do processo prevista no artigo 89 da Lei 9.099/95 pode ser proposta pelo querelante na ação penal privada, em atenção às finalidades do novo diploma, por constituir direito público subjetivo do acusado" (TACRIM-SP, Embargos de Declaração nº 985.109, Rel. Ricardo Lewandowski. Rolo/Flasch 1.037/202).

b) Não cabe a suspensão condicional do processo na ação penal privada: "Lei nº 9.099/95. Crime de ação penal privada. Inaplicabilidade. Retorno dos autos à douta Procuradoria-Geral de Justiça para manifestar-se acerca do mérito. Na ação penal privada 'não há suspensão condicional do processo, uma vez que já prevê meios de encerramento da persecução criminal pela renúncia, decadência, reconciliação, perempção, perdão, retratação etc.' (Damásio E. de Jesus, Lei dos Juizados Especiais Criminais Anotada)" (TJSC, Apelação Criminal nº 34.581, Rel. José Roberge).

Luiz Flávio Gomes Juiz de Direito em São Paulo e mestre em Direito Penal pela USP

GOMES, Luiz Flávio. A suspensão condicional do processo na açäo penal privada. Boletim IBCCRIM. São Paulo, n.45, p. 11, ago. 1996.

Nenhum comentário:

Pesquisar este blog