sábado, 25 de outubro de 2008

Artigo: A suspensão condicional do processo e o princípio da proteção judiciária

A Lei 9.099/95 tem suscitado alguma perplexidade nos primeiros meses de sua
vigência. Para cada assunto controvertido logo se formam três, quatro, até seis correntes, apontado soluções diferentes para determinada situação.

É certo que a compreensão exata da dimensão dos novos institutos penais – como o
da suspensão condicional do processo – não pode ser feita sem uma mudança de mentalidade dos operadores jurídicos. Porém, não menos exato é que o legislador ordinário, ainda que quisesse fazê-lo, não poderia inovar tanto a ponto de violar princípios constitucionais relacionados com o devido processo legal, sobretudo em face do dado mais importante que preside tais relações: a pessoa humana, cuja dignidade foi erigida como fundamento do Estado brasileiro (art. 1º, III, CF).

Nesta linha, tem-se entendido que o legislador abrandou o princípio da obrigatoriedade
da ação penal, mas não chegou conferir uma faculdade ao titular daquela para que requeresse ou não a suspensão do processo. Adotou, sim, o princípio da oportunidade regrada, submetida a controle judicial (cf. Luiz Flávio Gomes, Sobre a Natureza Jurídica da proposta do Ministério

Público na Suspensão Condicional do Processo, em Justiça e Democracia, nº 1, 1996, p. 189). A expressão "poderá propor a suspensão do processo", contida no artigo 89 da Lei Não constitui novidade interpretar-se a expressão "poderá" como um poder-dever que gera, em contrapartida, um direito subjetivo do réu. No caso do sursis, a jurisprudência assentou há tempos tal posição (STF, RT 663/366; RT 642/361), na esteira da melhor doutrina (cf. Celso Delmanto, Direitos Públicos Subjetivos do Réu no CP, em RT 554/466). Para a suspensão do processo o tratamento não poderia ser diferente. Preenchidas as condições legais, é um direito do réu, como firmado em recentes acórdãos do TJSP (AC 185.135-3 – rel. Devienne Ferraz – em IBCCRIM Jurisprudência, maio/96, p. 140) e do TACrim-SP (MS 288.536-1 – Rel. Ary Casagrande).

Há, evidentemente, entendimentos contrários. Mas não é este o aspecto que se quer destacar neste artigo, que toma, aliás, como pressupostos: 1º) que a suspensão condicional do processo é, uma vez presentes as condições legais, direito subjetivo do réu, cabendo ao juiz, ausente a proposta do MP, decidir o conflito entre os interesses deste e daquele (cf. Damásio E. de Jesus, Lei dos Juizados Especiais Criminais Anotada, Saraiva, 1995, p. 92); 2º) que este provimento jurisdicional pode ser realizado em qualquer momento processual, antes da sentença, ainda que se trate de fato anterior à Lei 9.099/95 porque, sendo favorável ao réu e tendo importante reflexo no âmbito do direito material – a extinção de punibilidade –, a suspensão do processo não é atingida pela vedação do art. 90 da Lei 9.099/95 (cf. Ada Pellegrini Grinover e outros, Juizados Especiais Criminais, RT, 1995, p. 237).

O objetivo é ir além, para responder a seguinte indagação: é possível a correção da
classificação da denúncia para o enquadramento do crime dentre aqueles em que cabe a suspensão?

Figure-se o caso de um réu primário, acusado de praticar furto qualificado por
rompimento de obstáculo, em que não fique provada a qualificadora. Seria ele condenado, no máximo, por furto simples. Se é assim, porque negar-lhe a suspensão? Conclui-se, pois, que se o promotor não aditar a denúncia cabe ao juiz analisar a questão da classificação, para aqueles fins, bastando que o réu demonstre interesse.

A objeção no sentido de que, fazendo-o, estaria o juiz antecipando análise meritória,
não tem consistência. Adotar tal entendimento significaria afirmar que a realização da Justiça está adstrita à formal classificação do fato da denúncia, com todas as implicações que disto decorram, inclusive o uso arbitrário daquela classificação.

Ora, há necessidade de analisar o fato com todas as suas circunstâncias para qualquer decisão. A jurisprudência já entendeu que uma análise da classificação do crime pode
ser feita, por exemplo, para a concessão ou não de liberdade provisória, quando a lei exclui benefício para toda uma classe de delitos, como se dá com a lei dos crimes hediondo (TJESP – HC 63.008, Rel. Dínio Garcia – em RT 627/309). Outrossim, é de nossa tradição processual a possibilidade de o juiz tomar os fatos com definição jurídica diversa da denúncia (art. 383 do CPP). Pode o juiz, inclusive, "reconhecer" a nova definição, antes da sentença, para que a defesa se manifeste, se a circunstância não estiver implícita na denúncia (art. 384, caput, do CPP).

No caso da suspensão do processo, a situação não é outra. Não se trata de abordar
o mérito, propriamente, mas de "reconhecer" que a classificação do fato na denúncia está incorreta. Vedada esta possibilidade, tem-se como materialmente não garantido o acesso do réu à prestação jurisdicional, que inclui a apreciação de seu direito subjetivo à suspensão do processo.

É com independência e liberdade que o juiz deve formar sua convicção condicionada.

Como falar em liberdade se o juiz não puder escapar, para garantir um direito ao réu, da formal referência a um tipo penal feita na denúncia?

O papel primordial do juiz, no Estado de Direito e em nosso sistema de aplicação da lei
penal, é o de fiscalizar a estrita legalidade do exercício da atividade repressiva do Estado.

Assim, é lhe dado analisar a definição típica do fato em face da presença das condições legais para a suspensão do processo, para declarar se o MP pode prosseguir pleiteando o provimento de mérito ou não. Se a Lei 9.099/95 previu um novo instituto, que é prejudicial do exame da causa, há de estar embutido nesta previsão um momento processual para que o juiz analise a oportunidade da suspensão com base na regras previstas em lei.

E o provimento jurisdicional é necessário sob pena de, passada a oportunidade, abrir-se caminho para a injustiça. Ao juiz só restaria, então, condenar ou absolver o réu, cujo direito à suspensão do processo estaria irremediavelmente lesado, com graves conseqüências e violação frontal ao art. 5º, XXXV, da Constituição da República.

Dyrceu Aguiar Dias Cintra Junior
Juiz de Direito em São Paulo

CINTRA JÚNIOR, Dyrceu Aguiar Dias. A suspensão condicional do processo e o princípio da proteção judiciária. Boletim IBCCRIM. São Paulo, n.45, p. 12, ago. 1996.

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