quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Artigo: O Brasil no banco dos réus: dez anos do reconhecimento da jurisdição obrigatória da corte interamericana de direitos humanos

A Convenção Americana de Direitos Humanos foi assinada em San José, Costa Rica, em 1969, no seio de Conferência Especializada de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), mas entrou em vigor apenas em 1978. Este tratado, conhecido também como Pacto de San José, é hoje o principal diploma de proteção dos direitos humanos nas Américas por vários motivos: 1) pela abrangência geográfica, uma vez que conta com 24 Estados signatários; 2) pelo catálogo de direitos civis e políticos e 3) pela estruturação de um sistema de supervisão e controle das obrigações assumidas pelos Estados, que conta inclusive com uma Corte de Direitos Humanos.

O Brasil incorporou definitivamente a Convenção Americana de Direitos Humanos pelo Decreto Presidencial nº 678 de 11 de novembro de 1992. Em 10 de dezembro de 1998, o Brasil depositou, junto ao secretário-geral da OEA, nota reconhecendo a jurisdição obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos, podendo ser processado em ações de responsabilidade internacional por violações de direitos humanos e obrigando-se, assim, a implementar suas decisões(1).

A Corte Interamericana de Direitos Humanos, com sede em San José da Costa Rica, é a segunda Corte especializada em direitos humanos criada no Direito Internacional, tendo como predecessora apenas a Corte Européia de Direitos Humanos. Possui sete juízes e realiza sessões ordinárias e extraordinárias anuais. A Corte Interamericana só pode ser acionada (jus standi) pelos Estados contratantes ou pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que exerce a função similar à do Ministério Público brasileiro.

Frise-se que somente Estados podem ser réus perante a Corte de San José, ou seja, não se trata de uma corte criminal que julgaria indivíduos autores das violações de direitos humanos. Julga-se o Estado, por sua conduta comissiva ou omissiva, que teria proporcionado a violação de direitos protegidos. Contudo, no que tange aos indivíduos que cometeram as violações, a Corte, em jurisprudência tradicional de mais de vinte anos, exige dos Estados condenados plena e vigorosa punição criminal dos indivíduos autores dos delitos, o que serviria de garantia de não-repetição de tais condutas(2).

A vítima (ou seus representantes) possui somente o direito de petição à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que possui sete comissários e sede em Washington (EUA). A Comissão analisa tanto a admissibilidade da demanda (há requisitos de admissibilidade, entre eles, o esgotamento prévio dos recursos internos) quanto seu mérito. Caso a Comissão arquive o caso (demanda inadmissível, ou quanto ao mérito, infundada) não há recurso disponível à vítima. Pode também a Comissão propor às partes (Estado e vítimas) uma solução amistosa da controvérsia, devendo zelar, contudo, que a vítima de violação de direitos humanos não tenha seus direitos amesquinhados no futuro acordo.

No caso de inexistir solução amistosa e a Comissão entender que houve violação de direitos humanos, há a adoção do chamado Primeiro Relatório ou Informe (confidencial), no qual se sugerem as medidas de reparação a serem adotadas pelo Estado infrator. Por sua vez, caso o Estado não tenha reconhecido a jurisdição da Corte de San José e não cumpra as recomendações do “Primeiro Informe”, caberá tão-somente à Comissão a adoção do Segundo Informe ou Relatório, público, que será encaminhado à Assembléia-Geral da OEA.

Caso, por outro lado, o Estado tenha já reconhecido a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos, a Comissão, em até três meses contados do envio do Primeiro Informe sem que o Estado adote suas recomendações de reparação às vítimas, pode interpor uma ação de responsabilidade internacional(3)contra o Estado infrator na Corte. Outra hipótese de ser o caso apreciado pela Corte ocorre se algum Estado, no exercício de uma verdadeira actio popularis, ingressar com uma ação contra o Estado violador. Até o momento, os Estados americanos nunca exerceram tal prerrogativa. Efetivamente, a Comissão é responsável, até hoje, pela propositura de todos os casos contenciosos na Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Após a propositura da ação, há observância do exercício do contraditório e defesa, com plena instrução probatória. A sentença da Corte pode ser pela procedência ou improcedência, não existindo recurso às partes (Comissão e Estado, sendo a vítima considerada como assistente da Comissão) salvo o recurso de interpretação (embargos de declaração).

Além de apreciar ações de responsabilidade internacional de Estados por violações de direitos humanos, a Corte possui ainda jurisdição consultiva, ou seja, pode ser chamada a emitir pareceres ou opiniões consultivas sobre a interpretação e aplicação de normas internacionais de direitos humanos, tendo sido já emitidos 19 pareceres consultivos (até o primeiro semestre de 2008). Apesar de não serem vinculantes tais pareceres, cabe salientar que cumprir a interpretação da Corte é importante para que se evite posterior ação de responsabilização por violação de direitos humanos.

Por outro lado, a Corte tem o poder de adotar medidas cautelares (denominadas “medidas provisórias”) para o resguardo de direitos em perigo. No que tange ao Brasil, foram proferidas decisões cautelares nos casos Penitenciária Urso Branco, Penitenciária Araraquara e do Complexo Tatuapé da Febem de São Paulo.

Em relação aos casos contenciosos envolvendo o Brasil nestes dez anos de reconhecimento da jurisdição obrigatória da Corte, já houve sentença de mérito (até 2008) em somente dois casos: o caso Damião Ximenes Lopes (procedência) e o caso Gilson Nogueira Carvalho (improcedência)(4).

A sentença do caso Damião Ximenes Lo­pes expõe as mazelas do Brasil. Um cidadão, portador doença mental, com as mãos amarradas é morto em Casa de Repouso situada em Guararapes (Ceará), em situação de extrema vulnerabilidade. Somente sete anos após (2006) é que uma sentença, internacional diga-se, restaura, em parte, a justiça, concedendo indenizações (danos materiais e morais) e exigindo punições criminais dos autores do homicídio. Do Judiciário local, nada, com os processos na área cível e criminal ainda se arrastando no primeiro grau. Para aqueles que confiavam no Direito Internacional dos Direitos Humanos é esta sentença motivo de aplauso. Já o caso Gilson Nogueira de Carvalho referiu-se a homicídio de advogado defensor de direitos humanos no Estado do Rio Grande do Norte por membros de esquadrão da morte. O Brasil foi acusado pela Comissão por não ter investigado e punido, a contento, os responsáveis pela morte do sr. Gilson. Entretanto, a Corte considerou a ação da Comissão improcedente, uma vez que, para a Corte, a obrigação de investigar, perseguir criminalmente e punir os responsáveis pelas violações de direitos humanos é uma obrigação de meio e não de resultado. Malgrado, então, os resultados pífios (apenas um dos pretensos responsáveis foi processado e absolvido pelo Júri popular), a Corte considerou que o Brasil esforçou-se para cumprir suas obrigações internacionais de garantia de direitos humanos.

Por fim, nestes dez anos do reconhecimento da jurisdição obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos cabe o alerta: a responsabilidade principal pela implementação dos direitos humanos é sempre do Estado. A esfera internacional é subsidiária e não é a solução de todos os casos. Sua função básica é servir de “último recurso” às vítimas e alerta aos governantes de que suas políticas não mais serão insuscetíveis de avaliação crítica.

No Brasil, o próximo passo deve ser a aprovação de uma lei sobre execução das deliberações internacionais de direitos humanos, ficando claro, quer no texto normativo e também nas mentes dos operadores do Direito, da imperiosa necessidade de se cumprir, integralmente, as decisões internacionais que concretizam os direitos de todos.

Notas

(1) CARVALHO RAMOS, André de. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2005.

(2) CARVALHO RAMOS, André de. Processo Internacional de Direitos Humanos – Análise dos sistemas de apuração de violações dos direitos humanos e a implementação das decisões no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2002.

(3) CARVALHO RAMOS, André de. Responsabilidade Internacional por Violação de Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2004.

(4) CARVALHO RAMOS, André de. “Análise Crítica dos casos brasileiros Damião Ximenes Lopes e Gilson Nogueira de Carvalho na Corte Interamericana de Direitos Humanos”. II Anuário Brasileiro de Direito Internacional, v. 1, pp. 10-31, 2007.

André de Carvalho Ramos
Professor doutor e livre-docente de Direito Internacional da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), professor do Grupo de Estudos em Direito da Universidade Bandeirante e procurador regional da República

RAMOS, André de Carvalho. O Brasil no banco dos réus: dez anos do reconhecimento da jurisdição obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 190, p. 11, set. 2008.

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