No centenário da morte de Machado de Assis cabe aqui trazer à lembrança uma expressão por ele utilizada em O Alienista: “caso de matraca”. Era a “matraca” um dos modos utilizados para divulgar as notícias nas antigas colônias que não possuíam imprensa. “Contratava-se um homem, por um ou mais dias, para andar as ruas do povoado, com uma matraca na mão. De quando em quando tocava a matraca, reunia-se gente, e ele anunciava o que lhe incumbiam, - um remédio para sezões, umas terras lavradias, um soneto, um donativo eclesiástico, a melhor tesoura da vila, o mais belo discurso do ano etc. O sistema tinha inconvenientes para a paz pública; mas era conservado pela grande energia de divulgação que possuía.”
A antiga imprensa, dos folhetins, alardeava os “discursos de cadafalso” — denominação dada às manifestações públicas dos executados que, para atestar a justiça da pena eram obrigados a se declararem culpados por determinados crimes. Para o espetáculo de horror o povo se reunia em torno do cadafalso e assistia à punição do súdito criminoso. Os jornais noticiavam os nomes dos condenados à pena de privação da liberdade e as pessoas se posicionavam nas ruas para verem passar os réus, acorrentados uns aos outros, expostos à curiosidade pública, em uma cena cruel de humilhação.
A imagem do jovem que agitava o jornal nas mãos, bradando a notícia para atrair o comprador, ainda vive na memória dos amantes dos antigos filmes e novelas de época.
Recentemente, a notícia de um crime contra uma criança, que teria sido praticado por seu pai e sua madrasta, abalou o País. Os jornalistas, os fotógrafos, as televisões, as rádios, colocaram-se defronte ao distrito policial de São Paulo — sobre muros, sobre telhados de casas, sobre escadas, dentro de tendas montadas para proteger os equipamentos de filmagem, todos procurando encontrar o “melhor ângulo” para verem passar os autores do bárbaro crime, os quais iriam ser interrogados pela polícia. Tudo era transmitido “ao vivo”, em cadeia nacional de televisão. Todo o Brasil posicionou-se em “torno do cadafalso” do século XXI. Era “caso de matraca”, é caso de mídia televisiva! A diferença é apenas tecnológica.
A notícia do crime ainda fascina. A mídia é livre e tem o direito de informar. A sociedade tem o direito de ser informada. No centro da notícia, o possível autor do crime que tem o direito de ter preservada a sua imagem.
O suspeito de ter praticado um delito é exposto à curiosidade pública a qual, estimulada pelos meios de comunicação, no clamor dos acontecimentos, acaba por condená-lo. A exposição do possível autor de um crime inicia-se com a divulgação da notícia do mandado de prisão e do acompanhamento, pela mídia, da execução da ordem judicial. O preso é algemado, não obstante a ausência de risco que ele possa impor à sociedade, ou ainda que não haja qualquer possibilidade de resistência ou fuga. Exposto às câmeras das TV’s, sofre uma absoluta e desnecessária diminuição social, moral, além de ter aniquilada a sua imagem. Apenas suspeito ou acusado, antecipa-se uma culpabilidade ainda não decidida judicialmente. A presunção de inocência, princípio constitucional de justiça e direito do réu, foi violada. Possível arquivamento das investigações será insuficiente para garantir-lhe a inocência. No caso “Escola Base”, os suspeitos dos crimes praticados contra crianças até hoje cumprem a pena aplicada pelos policiais que os expuseram à mídia e pela divulgação abusiva dos fatos e imagens através dos meios de comunicação: a pena de exclusão social. A mesma pena parece que está sendo aplicada a pessoa responsável por escola infantil onde, há pouco tempo, uma criança faleceu. Movida, talvez, pela lembrança do destino dos proprietários da “Escola Base”, a investigada clamou à mídia e ao público: “Esperem que terminem as investigações!” Sim, pois com o passar do tempo, a audiência dos fatos esmorece e não se divulga a conclusão das investigações, ou da sentença, restando aos olhos de todos o impacto inicial do início do procedimento.
Não menos difícil é a situação daquele que responde a processo penal. Para um justo processo, a publicidade é imprescindível como garantia de segurança jurídica e liberdade do acusado para assegurar a legalidade e a imparcialidade do juiz e comprovar ao povo a correta aplicação da lei. Daí podermos afirmar que em tempos de ampla comunicação tecnológica, a publicidade externa do procedimento penal é tão mais assegurada quanto se possibilita o relato midiático. Mas, em casos de grande repercussão social, sobretudo nos crimes contra a vida que são julgados num ritual simbólico que é o júri popular, além da ampla publicidade é preciso assegurar a imparcialidade dos jurados, o regular desenvolvimento do julgamento e a imagem do acusado.
A problemática que envolve o tema da exposição do preso à mídia, não termina com a sentença condenatória. Na execução da pena o preso tem o direito de ser protegido contra qualquer forma de sensacionalismo ou inconveniente notoriedade (art. 41, VIII da Lei 7.210/84). A pessoa presa tem o “direito ao esquecimento” de seu passado criminoso para ressocializar-se, devendo ser poupada pela mídia, nas palavras de Manuel da Costa Andrade, de “um pelourinho público permanente reatualizado”. Foi o desabafo de “Gaguinho”, um dos suspeitos no “Caso Bar Bodega”, à revista JÁ: “O que você espera da vida? Gaguinho: Sair daqui, arrumar um trabalho e esquecer o passado (...) não sou o maldoso, nem o monstro e a pessoa feroz que a imprensa tá falando (...) não sou nada disso, não (...).”
São muitos valores constitucionais em jogo: os direitos fundamentais do preso exposto à mídia, a correta aplicação da Justiça no processo penal e a liberdade de imprensa. Encontrar um equilíbrio entre eles é desafio que está lançado. É “tema de matraca” para cujo debate todos estão convocados.
Referências Bibliográficas
ANDRADE, Manuel da Costa. Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal: Uma Perspectiva Jurídico-Criminal. Coimbra: Ed. Coimbra, 1996.
CONY, Carlos Heitor. “Caso de matraca”. Folha de S.Paulo, São Paulo, 29 de jul.2008, p. A2.
GOMES FILHO, Antonio Magalhães. “Sobre o uso de algemas no julgamento pelo júri”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, 1992, número especial de lançamento, pp. 110-115.
ILLUMINATI, Giulio. La Presunzione d‘Innocenza dell‘Imputato. Bologna: Zanichelli, 1979.
RIDOLFI, Cláudia. Persona e Mass Media: La Tutela della Persona nelle Transmissioni Televisive tra Autonomia Contratualle e Diritti Fondamentali. Padova: Cedam, 1995.
VIEIRA, Ana Lúcia Menezes. Processo Penal e Mídia. São Paulo: RT. 2003.
Revista “JÁ”, 17.11.1996, p. 16.
Ana Lúcia Menezes Vieira
Mestre em Direito Processual Penal, professora universitária e promotora de Justiça das Execuções Criminais em São Paulo
VIEIRA, Ana Lúcia Menezes. Exposição do preso à mídia. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 190, p. 8, set. 2008.
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