sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Artigo: Drogas: Repensando os caminhos para o novo milênio

Durkheim, no clássico "Regras ao método sociológico", há mais de cem anos, já chamava atenção para o fato de que os crimes são definidos não pela "sua importância intrínseca, mas pela importância que a eles atribui a consciência comum" (tít. or.: "Las Règles de la Méthode Sociolgique", trad. Maria Isaura Pereira de Queiroz, SP, ed. Cia.

Editora nacional, 8ª ed., 1977, p. 60). Tome-se como exemplo das variações a recente proteção penal ao consumidor e ao meio-ambiente ou, mais remotamente, o crime de "bruxaria", prática incriminada pelas legislações medievais, mas não pelas modernas. Há, como assinala o professor português Taipa de Carvalho, uma inegável "condicionalidade sócio-cultural do direito penal" ("Condicionalidade sócio cultural do Direito Penal", Coimbra, Separata do número especial do Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra "Estudos em homenagem aos Profs. Manuel Paulo Merêa e Guilherme Braga da Cruz", 1986, p. 49).

Por outro, uma conquista do cidadão em face do poder punitivo estatal é a separação entre direito penal e moral e, mais do que isso, a confinação daquele à proteção de bens jurídicos essenciais à convivência humana. Isto quer dizer, por exemplo, que a prática homossexual entre adultos, reservadamente, não deve ser catalogada como criminosa, ou mesmo a masturbação individual. Lembremo-nos que até os anos 60, países como Inglaterra ou Alemanha puniam o homossexualismo. Aliás, ainda hoje o nosso Código Penal Militar pune a pederastia (art. 235).

Nessa linha de reflexão, não é mais possível aceitar-se que um jovem usuário seja tratado como criminoso, quando se sabe que a lei penal nesse particular tem pouca ou nenhuma eficácia intimidativa sobre si e, mais grave, tem um efeito marginalizador catastrófico. Vale dizer: estigmatiza o jovem de um modo tal que o simples indiciamento ou processo poderão comprometer sua futura carreira profissional. Numa palavra, a lei penal, além de não ser fator eficiente de prevenção, marginaliza.

Mas, se é certo que o tratamento estigmatizante do direito penal é inaceitável quando se trata de condutas que não afetam terceiros, é igualmente preocupante observar que a disseminação do crack e de outras drogas pode conduzir a situações calamitosas do ponto de vista da saúde pública. Neste caso a questão insistentemente levantada por políticos, médicos e educadores, entre outros, é a de se saber se a descriminalização das condutas hoje catalogadas no artigo 16 da Lei nº 6.368/76 (adquirir, trazer consigo ou guardar substância entorpecentes ou que cause dependência física ou psicológica para uso próprio) não provocaria um enorme ascenso no consumo. De fato, não se pode negar que o direito penal representa um instrumento de controle a mais do qual a sociedade dispõe. Assim, o seu emprego pode significar um reforço à proibição. Todavia, é sabido que, apesar dos esforços nesse sentido, o consumo não se vê reduzido com a atuação repressiva. Ao contrário, a experiência do fim dos anos 60 viu-se usuários a mesma pena que aos traficantes, não houve decréscimo no consumo. As influências da contra-cultura, movimento hippie, etc., falaram mais alto e o número de usuário cresceu. Por isso, já no Governo Médici a sistemática legal pertinente às drogas foi modificada.

Ainda assim, não se pode negar que uma descriminalização ou, mais ainda, a legalização possa, simbolicamente, sinalizar como um valor positivo para o jovem e, dessa maneira, facilitar uma onda de aumento no uso. Realmente, a ilicitude penal demarca com muita nitidez e força o campo do proibido. Sua exclusão pode, erroneamente, apontar para um idéia de que "se não é mais crime, não deve fazer tanto mal" ou, por outra, "liberou geral".

Não é, também, despropositada a reflexão que aponta os problemas gerados pelo álcool, droga lícita e, em considerável medida, responsável pelos inúmeros acidentes de trânsito, agressões domésticas, ou crimes decorrentes de briga de bar. Aqui, porém, a linha de pensamento poderia ser invertida. Se a criminalização do álcool já se mostrou inadequada para a contenção do seu consumo, por que repetir-se o modelo para as substâncias que entorpecem ou causam dependência? Vale o registro de que não poucos autores ao tratarem da "Lei Seca" ("Volstead Act", de 1919) chamam atenção para que a proscrição do álcool gerou uma terrível violência entre gangues que disputavam pontos de venda ou que matavam revendedores ou consumidores "inadimplentes". Mais do que isso, houve uma enorme onda de corrupção na polícia e no judiciário (crime organizado). Tanto que vinte anos depois esta lei veio a ser revogada, sem que com isso o alcoolismo tomasse conta dos EUA.

Embora pessoas de respeito como Miltom Friedman, Winfried Hassemer, Figueiredo Dias, Zaffaroni e outros, em maior ou menor extensão, venham defendendo a legalização das drogas ou, ao menos, de algumas delas (Zaffaroni lembra que o Estado nessa área atua como o alquimista na Idade Média que transforma "ferro em ouro"), não se pode deixar de reconhecer que há uma enorme resistência da população em relação a proposta deste tipo ou mesmo de descriminalização. A resistência tem a ver tanto com o problema que a disseminação das drogas pode ocasionar em termos de saúde quanto com o aumento da criminalidade.

Por tudo isso, o caminho alternativo, politicamente viável, cauteloso e mais auspicioso parece ser o da adoção de uma estratégia de compromisso entre as diferentes propostas, isto é, continua-se a manter a conduta do usuário debaixo do rol das criminosas, mas dispensa-se a este um tratamento singular. O Projeto de Lei aprovado pela Comissão Especial da Câmara dos Deputados faz isto e com muita competência quando e porque proíbe que o usuário seja conduzido à Delegacia de Polícia e, conseqüentemente, a lavratura do flagrante, o que significa dizer que ele não mais será indiciado e, ao depois, permite a suspensão do processo (possibilidade, aliás, já existente com o advento da lei que instituiu os Juizados Especiais Criminais), o que implica na preservação da primariedade.

Esta solução de compromisso tem a vantagem de permitir a utilização simbólica do direito penal como um marco proibitivo, mas impede a estigmatização do consumidor como um criminoso. Ao lado disso, pode-se pensar que esta proposta legislativa venha significar uma etapa de transição para uma futura solução mais liberal, onde a necessária prevenção em relação ao consumo das substâncias hoje etiquetadas como ilícitas possa ser feita da mesma maneira com que se procede nos casos do álcool e do tabaco. Aliás, os EUA reduziram o número de usuários de cigarros sem botar ninguém na cadeia.

Alberto Zacharias Tonon Presidente do Conselho Estadual de Entorpecentes e do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais

TORON, Alberto Zacharias. Drogas: repensando os caminhos para o novo milênio. Boletim IBCCRIM. São Paulo, n.45, p. 08, ago. 1996.

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