O acesso à Justiça aos necessitados, em 1988, foi elevado à condição de verdadeiro direito fundamental, visto que o art. 5º, inciso LXXIV, da Constituição Federal, estabelece que o “Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”.
Se não bastasse, o art. 134 da mesma Constituição atribui à Defensoria Pública — que deverá ser organizada em carreira — a condição de instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados.
Interessante apontar que a Constituição de 1967, com redação dada pela emenda nº 01/69, em seu art. 153, parágrafo 32, cuidava apenas de fixar que “será concedida assistência jurídica aos necessitados, na forma da lei”, sendo certo que sequer havia a obrigação imposta ao Estado em assegurar o fundamental direito de acesso à justiça.
A opção do constituinte de 1988 não poderia ser outra. Em uma sociedade complexa, com imperiosa necessidade de conhecimento técnico para manejo dos instrumentos de defesa dos direitos das pessoas, como garantir o acesso ao sistema de justiça àqueles que não podem pagar advogado? Como assegurar ao réu pobre, no processo penal, o devido processo legal?
A Defensoria Pública faz assegurar, justamente aos mais vulneráveis, o sagrado direito de dispor de todos os meios para a defesa de seus direitos e garantias violados.
O marco constitucional foi determinante. Segundo o I Diagnóstico sobre Defensoria Pública no Brasil(1), 77% das Instituições foram instaladas após 1988, sendo que a mais recente é a Defensoria de São Paulo, criada pela Lei Complementar estadual nº 988/06.
Em seu início, com 400 defensores públicos, a Defensoria paulista cuidou fundamentalmente de substituir os procuradores da assistência judiciária — em número aproximado de 350 profissionais — nos locais em que o serviço já se encontrava organizado pela Procuradoria do Estado. Na Cidade de São Paulo, há escritórios da Defensoria nos bairros mais distantes, com elevado número de atendimentos à população carente, como Santo Amaro, São Miguel Paulista e Itaquera.
O movimento de crescimento institucional, como não poderia deixar de ser, deverá priorizar as regiões com maiores índices de exclusão social e adensamento populacional, em atendimento ao que dispõe o § 2º do art. 45 da citada LC nº 988/06.
Ainda assim, com o atual reduzido número de Defensores Públicos, algumas experiências têm sido muito exitosas, na busca de meios para se garantir o acesso ao sistema de justiça às pessoas que se encontram à margem das cidades e das estruturas do Estado. Desde outubro de 2007, em razão de convênio celebrado com a Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania de São Paulo, Defensores Públicos têm atuado nos Centros de Integração da Cidadania (CICs), que contam atualmente com 10 postos fixos localizados em regiões periféricas da cidade de São Paulo, além dos municípios de Guarulhos, Ferraz de Vasconcelos, Francisco Morato e Campinas.
São áreas periféricas, de elevada exclusão social, em que a ausência do Estado é muito sentida. Nos CICs, a prestação de assistência jurídica tem se voltado muito menos ao ajuizamento de ações e mais significativamente à orientação visando à prevenção de conflitos.
Se é verdade que pequenos conflitos, no âmbito doméstico ou nas relações entre vizinhos ou pessoas próximas, possuem potencialidade de serem convertidos em infrações penais, revela-se igualmente verdadeiro que a busca da conciliação ou mediação, sem grandes esforços, contribui de forma decisiva para solução da lide. São casos que certamente não necessitam bater às portas de um abarrotado Poder Judiciário, mas precisam de alguma técnica e conhecimento jurídico para a solução.
A Defensoria Pública tem muito a contribuir nesse campo, na prevenção de conflitos, prestando orientação aos necessitados e buscando soluções extrajudiciais para a resolução de conflitos. Quanto mais acessível a solução dos conflitos, mais se viverá o Estado de Direito e a própria democracia.
Também a partir de 2007, por meio de outra parceria com a mesma Secretaria da Justiça, a Defensoria paulista passou a promover atendimento jurídico no Centro de Referência e Apoio à Vítima (Cravi), órgão voltado a familiares de vítimas de crimes violentos.
A propósito, especialmente nesses casos, em que se sobressai uma tragédia no meio familiar e social no qual estava inserida a vítima, aguarda-se do Estado iniciativas que permitam um atendimento multidisciplinar em prol dos familiares. Afinal, o direito é limitado e sofre enormes entraves para ultrapassar a barreira do formalismo típico de um processo que, no mais das vezes, enxerga as partes como personagens de uma história que parece fictícia. Mas não. É tudo real, de carne e osso.
Deve haver um enorme esforço para que, em cada atendimento, em cada medida, os agentes do Estado enxerguem a pessoa que se apresenta como alguém à espera de uma prestação de justiça. Como é difícil evitar a banalidade, tão comum nas relações de um processo judicial, mesmo na área criminal.
Nesse ponto, é fundamental compreender como outras áreas do conhecimento muito têm a contribuir com o sistema de justiça. Esse também é um trabalho de prevenção. Não em relação ao crime cujos efeitos estão sendo duramente sentidos, mas especialmente àqueles que, no mais das vezes, clamam cegamente por vingança.
Nessa mesma esteira, a Defensoria paulista, desde março de 2008, em razão de convênio celebrado com a Prefeitura Municipal de São Paulo e na tentativa de cumprir com sua missão constitucional, deu início à prestação de assistência jurídica nos Centros de Cidadania e de Referência à Mulher, voltados exclusivamente ao atendimento à mulher vítima de violência doméstica, fruto das inovações trazidas pela Lei nº 11.340/06 (Lei Maria da Penha).
Instalados majoritariamente em bairros periféricos da Capital/SP, como Brasilândia, Parelheiros, Capela do Socorro, Perus e Itaquera, os Centros de Cidadania à Mulher contam atualmente, entre outros serviços, com a prestação de assistência jurídica prestada pela Defensoria, mais uma vez para exercer a prevenção de conflitos e, de outro lado, para o ajuizamento das chamadas medidas cautelares protetivas previstas na nova lei já mencionada, sem prejuízo da propositura da ação principal e acompanhamento da persecução criminal.
Exemplos não faltam, pelo país afora, de como a Defensoria Pública, ao instalar-se onde o povo está, muito poderá contribuir com a educação em direitos e a prevenção de conflitos, em cumprimento ao seu mandamento constitucional de prestar assistência jurídica integral.
Todavia, cabe assinalar, conforme retrato contido no II Diagnóstico sobre Defensoria Pública no Brasil(2), apenas 996 Comarcas são atendidas pela Defensoria Pública, o que corresponde a 39,7% das Comarcas existentes no Brasil. Em São Paulo, esse número é ainda menor, de 7,1%, alcançando apenas, além da Capital, as principais cidades de sua região metropolitana e do interior, enquanto que as demais são atendidas por advogados conveniados. Ainda assim, segundo o mesmo Diagnóstico, em 2005, a Defensoria Pública brasileira prestou 6.565.616 de atendimentos, com aumento de 19% em relação ao número de atendimentos de 2003, ano de análise do I Diagnóstico.
Há muito por fazer. Há muito por crescer. Se for permitido à Defensoria Pública chegar onde está o povo pobre, em todos os rincões deste País, a efetiva prestação de assistência jurídica, especialmente no que tange à orientação, prevenção e solução extrajudicial de conflitos, muito contribuirá para diminuir os embates tão acentuados em um país que reclama com justiça pela prestação da justiça a todos, a homens e mulheres, a pobres e ricos.
Notas
(1) Ministério da Justiça, Brasil, 2004, p. 47, disponível em www.mj.gov.br.
(2) Ministério da Justiça, Brasil, 2006, pp. 76 e 83, disponível em www.mj.gov.br.
Vitore André Zilio Maximiano
Mestre em Direito pela PUC/SP, 1º subdefensor público-geral do Estado de São Paulo e professor do Curso Marcato e de cursos de pós-graduação
MAXIMIANO, Vitore André Zilio. Defensoria Pública: a justiça onde o povo está. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 190, p. 12, set. 2008.
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