O sistema penitenciário brasileiro acabou se transformando em fator permanente de tensão social. O fenômeno do crescimento da criminalidade organizada atuante no interior dos presídios atingiu níveis insuportáveis e é, indiscutivelmente, um grande problema a ser enfrentado pelo governo federal nos próximos quatro anos.
A omissão do Estado durante anos propiciou a falência das técnicas penitenciárias aplicadas no Brasil e, conseqüentemente, a perda do controle sobre a população carcerária. Neste cenário, é preciso assumir que não estamos ressocializando. As penas existentes dentro do sistema são inadequadas e mal distribuídas. A falta de dignidade no cumprimento da pena, existente na grande maioria dos presídios brasileiros, aponta para um crescimento da violência interna. Basta levar em conta o crescimento das facções criminosas nos últimos anos e o conseqüente impacto sobre o sistema prisional. E é impressionante o poder de organização desses grupos criminosos, inclusive na comunicação interna e externa, no seio da comunidade a que atendem.
A questão vem agravada com cenas corriqueiras ligadas à corrupção institucionalizada no interior de parte considerável dos presídios espalhados pelo País. Estão presentes, entre outros fatos graves, a troca de favores sexuais, a veiculação de informações criminosas, além, é claro, da venda de alimentação e medicamentos diferenciados, da compra e venda de aparelhos de telefonia celular, do tráfico de entorpecentes e de armas.
A corrupção estatal permite o absoluto fracasso das normas destinadas a evitar a formação de privilégios entre os detentos, que visam à igualdade formal, à homogeneidade. A corrupção dos agentes públicos faz acentuar a graduação das diferenças individuais. A falta de programas de ressocialização permite que os detentos sejam reeducados pelos próprios companheiros, e não pela equipe de supervisão. Este processo propicia que o sentenciado absorva não as regras de bom comportamento estabelecidas pela sociedade, como deveria ocorrer, e sim as normas estabelecidas pelos próprios detentos, baseadas na rebeldia, na resistência, na rejeição social.
A prisão não foi criada tão-somente como forma de privação de liberdade. A sua razão de existir, desde o início, sempre esteve ligada à função técnica de correção, juntamente com o castigo. A perda da liberdade do sentenciado foi a forma encontrada para implementar esta técnica. A solidão, o confinamento, sempre foram tidos como instrumentos de reforma dos sentenciados. Deveriam ser utilizados para gerar a reflexão. O isolamento asseguraria ao Estado condições propícias a exercícios de bons hábitos de sociabilidade, o que no Brasil não vem ocorrendo. A isto tudo acresce que o corpo de funcionários que atuam no sistema prisional brasileiro é absolutamente despreparado para o exercício de suas funções.
É preciso admitir uma proximidade nociva entre o agente penitenciário brasileiro e o sentenciado. O fato, ainda que não seja o motivo isolado, justifica a presença da corrupção no sistema prisional. A fim de solucionar este grave problema, deveria o governo investir na carreira de agente penitenciário. Este agente público deveria funcionar como educador, ditando o padrão de comportamento a ser seguido pelos presos. Hoje, em muitos Estados brasileiros, os agentes penitenciários nem sequer são submetidos a avaliação e acompanhamento psicológico.
Dados fornecidos pelo Departamento Penitenciário Nacional indicam, no Brasil, um déficit de mais de 135 mil vagas. Dos 336 mil presos existentes no País, mais de 260 mil cumprem pena em penitenciárias sob condições precárias. Ocorrem, em média, duas rebeliões e três fugas por dia.
O Brasil é o país da América Latina com a maior população carcerária e o maior déficit de vagas vinculadas ao sistema penitenciário. A solução passa pela construção de ao menos 130 estabelecimentos prisionais.
Mas não é só. Um terço da população carcerária nacional é portadora do vírus HIV. A superlotação dos presídios tem causado a propagação de microbactérias resistentes na comunidade carcerária, de modo a difundir a tuberculose pulmonar, chegando a atingir níveis epidêmicos. A tuberculose é responsável pela ocorrência de 5 mil mortes anuais no Brasil. Mais da metade dos casos estão relacionados com o sistema prisional. É imperiosa a criação de atividades eficazes de prevenção, inclusive contando com o apoio dos familiares dos presos, e uma maior articulação com o Sistema Único de Saúde (SUS), a fim de que as atividades desenvolvidas não careçam de continuidade.
A ociosidade dos detentos também se mostrou grave problema a ser enfrentado no País. O preso ocioso é caro, inútil e nocivo à sociedade. No Brasil, o custo mensal do preso é três vezes maior do que a manutenção de um aluno na escola pública do ensino fundamental.
O desafio que se apresenta é substituir um poder que se manifesta pelo brilho da desutilidade por um poder que objetive a disciplina, de modo que a sociedade ocupe o lugar de fato ideal entre os detentos.
O enfrentamento da corrupção e do tráfico, o restabelecimento da dignidade no cumprimento da pena, caminhando lado a lado com a punição severa das condutas abusivas, inclusive com utilização do regime disciplinar diferenciado até o limite da legalidade estrita, são fatores que, bem avaliados e adequadamente aplicados, determinarão a virada no caos reinante no sistema penitenciário.
Roberto Porto, mestre em Direito Político e Econômico, promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, atua no Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado (Gaeco).
Fonte: Estadão, 23 de outubro de 2006.
Nenhum comentário:
Postar um comentário