quarta-feira, 26 de março de 2008

O que é uma gangue?

A natureza mutante da violência jovem organizada

Se uma criança leva um tiro e morre, importa como chamamos o grupo que atirou?


De uma certa forma, sim. Quando a polícia ou o Exército cometem atos de violência contra jovens, ou quando milícias matam crianças nas ruas, existe um alvo claro contra o qual devemos protestar. Assassinos precisam ser julgados, mesmo que estejam uniformizados. As Forças Armadas estatais só devem ser usadas para proteger, não para ferir pessoas.


Mas, e se o jovem que dispara a arma vive nas ruas? Importa se ele faz parte de uma gangue, de uma facção de crime organizado, de um cartel ou de uma milícia? O que estamos realmente querendo dizer quando denunciamos a "violência de gangue"?


Esta questão é muito mais complicada do que parece, principalmente para nós que vivemos em círculos acadêmicos. Nos Estados Unidos, criminologistas vêm batalhando há décadas para encontrar uma definição de gangue e acabaram impondo o debate na Europa. Na América Latina, Ásia e África, no entanto, uma discussão mais cheia de nuanças confere menos importância às definições. Nessas regiões, a sociedade civil enfrenta grupos armados tanto com ideologias políticas quanto outros que são basicamente criminais. Paramilitares e milícias usam a violência em nome de sua religião, grupo étnico ou tribo. Alguns grupos cometem atos de violência em troca de dinheiro ou de taxas, outros, por ideais revolucionários. Ex-crianças soldado e crianças de rua brigam por espaço em grandes centros urbanos super-lotados de imigrantes e refugiados.


Niilismo gangsta rap


Bem-vido à era da globalização. De um lado, zonas financeiras super-valorizadas nas grandes cidades que recebem massivos investimentos públicos e privados. De outro, regiões inteiras formadas por guetos, favelas e bairros que são vergonhosamente negligenciadas onde a criminalidade acaba se misturando com a necessidade desesperada de sobreviência. Grupos de jovens vivem sob uma economia informal que os transforma tanto em agentes como em presa do negócio global de drogas.


Muitos jovens perderam seus ideais e, ao invés de lutar pelo futuro, lutam somente pelo presente. O niilismo do gansta rap substituiu quase totalmente o livro vermelho da revolução. As crianças que estão nas ruas perderam a fé no progresso enquanto as ideologias políticas estão sendo encobertas por identidades étnicas e religiosas.


A polarização e o poder de identificação estão entre os fatores que alteraram o caráter das gangues e da violência dos jovens. Por exemplo, o MQM, grupo armado do Paquistão, tem suas origens na resistência política à emigração forçada de muçulmanos da Índia. A desmoralização levou alguns do MQM a trocar suas ambições revolucionárias por ações criminosas. Em El Salvador, as maras recrutam os jovens que, em outras épocas, teriam aderido à guerrilha. As crianças soldado de Serra Leoa, frente a um cenário inóspito de guerra civil e, na ausência de escolas e de empregos, acabam indo para as ruas.


Grupos institucionalizados de jovens armados de longa data


Por outro lado, os grupos Latin Kings e Queen Nation, de Nova York, foram politizados em 1990, antes de serem dissolvidos. Na Espanha, os Latin Kings até conquistaram legitimidade. Os grupos ligados a drogas em Kingston, na Jamaica, estão firmemente enraizados na rivalidade política local. Na Algéria, depois que as eleições de 1991 foram anuladas, os hittistes (jovens que vivem nas ruas) foram levados para grupos radicais islâmicos e usados em suas conexões para praticar extorsões. Na Nigéria, gangues de jovens reforçam a sharia para os imans locais mas também vendem drogas e se vestem como os gangsters de Los Angeles. Os goondas (capangas) trabalham para os homem-forte de Mumbai, Bal Thackery, em bandos que atacam muçulmanos de forma violenta em nome do hinduvata (fundamentalismo hindu). Na Irlanda do Norte, milícias protestantes abriram mão de sua guerra contra os católicos para lutar uns com os outros pelo tráfico de drogas em Belfast. A linha que separa as gangues dos partidos políticos, do crime organizado, das milícias étnicas e do policiamento religioso se tornou tênue.


Esse emaranhado de violência significa que muitas crianças agora crescem em áreas com grupos de jovens armados institucinalizados há muito tempo (na Colômbia, inclusive, mulheres armadas também). As crianças que vivem nessas áreas são criadas seguindo modelos adultos que os iludem com oportunidades econômicas ilícitas amplificadas por identidades religiosas ou étnicas. Nenhuma "gangue de jovens" formada em áreas onde existem esses grupos armados pode mais agir meramente como um grupo de amigos rebeldes. A juventude nessas cidades se tornaram vulneráveis a múltiplas influências adultas ilícitas que oferecem, com freqüência, mais empregos, serviços e proteção do que o Estado.


A divisão dos políticos na era industrial entre "de direita" e "de esquerda" faz muito menos sentido hoje. A rebeldia dos jovens é menos baseada em ideologias e é manchada pelo niilismo, manipulada pelos adultos e colorida por sinais étnicos ou religiosos. Para os jovens pobres, as condições nos guetos, favelas e bairros pobres não são desesperadoras, mas sem esperanças.


Hip hop X 'mano dura'


Isso significa que a violência é inevitável? Sim. Mas, como podemos perceber, as diversas formas de grupos de jovens, incluindo os armados, são também passíveis de mudança. As correntes culturais de hip hop, por exemplo, que celebram a vida e se opõem à opressão, podem ser usadas para direcionar os jovens, inclusive aqueles que fazem parte de grupos armados, para uma variedade de causas sociais. A maioria dos jovens pobres, apesar de serem receptivos aos movimentos de massa, desconfiam dos partidos políticos.


Nós não podemos confiar no Estado para prover a segurança que necessitamos e sua política mano dura demanda um preço alto demais. Isso significa que precisamos aumentar os nossos apelos pela não-violência aos jovens e aos grupos dos quais eles fazem parte, não importa se esses grupos sejam chamados de gangues, milícias, facções, cartéis ou vanguardas revolucionárias.


Portanto, não importa como nós definimos o grupo que atira. Precisamos nos opor às mortes em qualquer lugar. As pessoas não podem se unir se a violência está sendo usada pelos jovens para estabelecer disputas.


Saiba mais:

'Gangues são um problema global e permantente'

Crianças e jovens em violência armada organizada

Em outros sites:

Gang Research (em inglês)

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