Por Marcos Rolim, Jornalista, Escritor e professor da Cátedra de Direitos Humanos do Centro Universitário Metodista IPA (Porto Alegre). Governantes, gestores, magistrados, legisladores e formadores de opinião devem lidar com problemas reais e, tanto quanto possível, procurar soluções para eles. No Brasil, entretanto, tornou-se comum que, entre as pessoas com responsabilidades públicas, o compromisso mais autêntico seja o de procurar estabelecer uma sintonia com o senso comum e as expectativas socialmente disseminadas, ainda que isto signifique – como ocorre normalmente – agravar os problemas reais.
Poucos temas atestam tão dramaticamente tal inclinação oportunista e demagógica como aqueles suscitados pelos desafios da segurança pública. O sistema prisional e as políticas de execução penal, destacadamente, aparecem como questões emblemáticas da incapacidade dos governos – de todos eles, bem entendido – em formatar políticas capazes de produzir resultados benéficos à população.
Em dezembro de 2005, segundo dados consolidados pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN-MJ), o Brasil possuía pouco mais de 361 mil presos. Isto significa, tendo em conta a média de crescimento da massa carcerária brasileira, que já ultrapassamos a barreira dos 400 mil presos no País e que teremos, se nada for feito, cerca de um milhão de detentos nos primeiros anos da próxima década. Hoje, apenas para se receber o incremento anual de presos (para se manter, portanto, a situação de superpopulação prisional inalterada), seria preciso construir, anualmente, cerca de 80 novos presídios para 500 presos cada.
O que implicaria em um custo de quase 1 bilhão de reais, sem contar o que passaria a ser gasto com milhares de novos agentes e com o custeio das novas instituições. Uma estimativa que torna claro porque a idéia de “construir mais presídios” é, para além da emergência e do desespero, uma “não-proposta”.
Ao contrário do que muitos acreditam, o Brasil é um dos países onde mais se aprisiona, sendo que, na última década, mais do que dobramos nossas taxas de encarceramento. Esta tendência, tornada mais nítida a partir da aprovação da “Lei dos crimes hediondos” (Lei nº 8.072/1990), está se acentuando por conta da extraordinária sensação de insegurança, motivada, em parte, pelo aumento das ocorrências de determinados crimes – e, portanto, pelo alargamento de experiências concretas de vitimização - e, de outra, pela transformação da violência em um espetáculo rentável por boa parte da mídia nacional. Pressionados por resultados, policiais tendem a prender mais, promotores produzem mais denúncias e apelos, magistrados passam a decretar prisões preventivas como se estas fossem a regra do processo penal e a prolatar sentenças mais longas e, last but not least, os membros do Congresso Nacional alteraram a legislação, criando novas figuras típicas, agravando penas e tornando a execução penal mais rigorosa. Tais medidas, sempre saudadas pela opinião pública, logo se demonstram inócuas, mas o ciclo da demanda punitiva – ao invés de se fechar – retoma o caminho já trilhado, identificando as novas medidas como insuficientes ou “pouco rigorosas”. Como em um sintoma neurótico de repetição (“Wiederholen” para Freud, ou: "pedir novamente"), se insiste na mesma receita de fracasso, se exige mais do mesmo.
Mas, como na psicanálise, o repetido nunca é exatamente o mesmo. No caso da elevação das taxas de encarceramento e da deterioração das condições de vida nas prisões, o que fizemos foi contribuir para o aumento das séries causais e das dinâmicas tipicamente criminógenas. Em outras palavras: com a crescente demanda punitiva e a generalização da receita “prender mais” e “endurecer o jogo com os bandidos”, o que se alcançou foi a produção de mais crimes e de mais violência.
Os especialistas na área – pelo menos aqueles que não esqueceram suas lições em troca de cargos, sabem que legislações mais rigorosas não significam menos crimes e que impunidade tem muito mais a ver com a incapacidade de produção da prova do que com os marcos legais. As evidências são inúmeras. Holanda e França, por exemplo, tiveram 12% de aumento nas taxas criminais entre 1987 e 1996, sendo que a Holanda encarcerou, no mesmo período, 20 vezes mais do que a França. Situações assemelhadas, fizeram com que em novembro de 2002, gestores dos sistemas penitenciários de 44 países do Conselho Europeu, reunidos em Estrasburgo, observassem que o número de presos em cada nação é determinado pelas respectivas políticas criminais e não pelas taxas criminais. Ou seja: cada sociedade pode escolher, por várias razões, o número de presos que deseja ter, se quer altas taxas de encarceramento ou não. Finlândia, Canadá e Alemanha, por exemplo, escolheram diminuir drasticamente suas populações carcerárias sem que disto tenha resultado qualquer dinâmica criminógena. Pelo contrário, os estudos disponíveis apontam para o sucesso destas experiências que apostaram em penas alternativas à prisão para a grande maioria dos delitos.
Para esta decisão, é preciso saber, primeiro, que a incapacitação produzirá, sempre, um efeito muito modesto sobre os fenômenos contemporâneos da criminalidade e da violência. Com alguns poucos perfis infracionais é possível se alcançar resultados apreciáveis de redução de crimes com a prisão (tal é o caso, em regra, das condenações de responsáveis por crimes sexuais, de latrocidas, de assassinos seriais ou de responsáveis por vários homicídios, de articuladores de quadrilhas, de torturadores e de corruptos e corruptores), mas, para o conjunto das condenações à prisão, os efeitos imediatos quanto às taxas criminais é próximo de zero. Estimativas do Home Office (UK) apontam para uma redução de apenas 1% nas taxas criminais para cada aumento de 15% da população carcerária; uma relação ainda considerada muito “otimista” por alguns pesquisadores. Isto ocorre porque as funções antes exercidas por aqueles que foram encarcerados são rapidamente ocupadas por outras pessoas, sendo o tráfico de drogas apenas um dos exemplos mais visíveis desta dinâmica.
Mas todos aqueles que mandamos à prisão, dela sairão mais cedo ou mais tarde. E o fato é que saem ou mais habilitados a praticar crimes mais graves ou marcados de tal forma pelo estigma que jamais encontrarão uma chance de sobrevivência fora das alternativas ilegais, ainda que tentem. A experiência de encarceramento tem sido, assim, um dos principais mecanismos pelos quais se opera a produção do crime em escala “industrial”. O que vale ainda mais para as piores prisões, para aquelas que asseguram, sobretudo, sofrimento; onde não há qualquer respeito à dignidade dos detentos, onde a tortura se banalizou, onde não há investimentos em educação e profissionalização e onde os próprios familiares dos apenados são humilhados. Tal é, precisamente, o caso da esmagadora maioria das prisões brasileiras.
O caso de São Paulo oferece, neste contexto, com o surgimento e consolidação do PCC, as evidências mais eloqüentes a respeito da produção do crime e da violência a partir de uma experiência massiva de encarceramento, para adultos e adolescentes, construída com base no desrespeito à lei e à dignidade das pessoas. O estado, como se sabe, possui cerca de 40% de todos os presos brasileiros e é aquele que mais investiu na construção de novas prisões. Mais do que isso, foi também o lugar onde se concebeu um regime especial de execução penal – o Regime Disciplinar Diferenciado -, pelo qual é possível isolar completamente um preso por até dois anos. Tal experiência, assinale-se, foi colocada inicialmente em vigor em São Paulo sem qualquer base legal (a reforma que trouxe o RDD para a Lei de Execução Penal, de duvidosa constitucionalidade, só ocorreu em 2003).
Mas quando se trata de descumprir a Lei contra condenados ou suspeitos, não parece haver, de fato, maiores problemas no Brasil. Pelo contrário, o senso comum, a cultura institucional reproduzida pelas polícias, e a conduta da grande maioria dos agentes públicos (incluindo nossa “qualificada” representação política e parcelas significativas dos membros do Ministério Público e da Magistratura) legitimam tais ilegalidades com muita freqüência, por inação ou pelo tipo de militância anti-humanista que se alastrou como uma praga em meio a estes representantes das elites brasileiras caracterizados pelo seu ânimo em favor de políticas de tolerância zero e inteligência idem.
O Estado democrático de direito, instituição ainda frágil pelo legado de autoritarismo, lassidão moral, ausência de espírito público e insensibilidade das camadas privilegiadas, aguarda o momento de ser apresentado às instituições de segurança pública no Brasil, o que é verdadeiro para as Polícias e, sobretudo, para o sistema prisional.
Estamos, na verdade, diante do desafio de enfrentar, com base no diálogo com os acúmulos teóricos e as evidências colhidas pela pesquisa científica em todo o mundo, um caminho democrático capaz de produzir políticas de segurança pública eficazes. Uma opção que se afirme desde a identificação dos fatores de risco, preditivos para o crime e a violência, e dos agenciamentos que os tornam imediatamente possíveis – que rompa, portanto, com a visão tacanha que reduz o tema da segurança ao papel a ser desempenhado pelas polícias e que estruture a prevenção como uma prioridade de Estado; que forme um Serviço Nacional de Pesquisas de Vitimização e um Sistema Unificado de Informações Sobre Crime e Violência no Brasil; que reforme profundamente nossas polícias, qualificando-as, remunerando decentemente seus profissionais, protegendo-os e assegurando-lhes a perspectiva de uma carreira profissional (reforma que não se fará sem a desconstitucionalização do modelo de polícia e sem que se expurgue das corporações os criminosos que lá atuam); que lance as bases para um direito penal mínimo e para a emergência de formas inovadoras de tratamento de conflitos e atos disruptivos, como a mediação comunitária e a Justiça restaurativa, entre muitos outros passos.
O Brasil não pode, em síntese, se permitir a irresponsabilidade de seguir tratando do tema da segurança pública com base no sensacionalismo midiático e nas frases de efeito sacadas das estratégias de marketing político. Nem, tampouco, podemos autorizar que a incompetência governamental e a demagogia reinante justifiquem suas opções desastradas, mobilizando o medo. Senão por outro motivo, porque, como o disse Samuel Taylor Coleridge, “em política, o que começa como medo normalmente termina em loucura”.
Publicado originalmente no jornal “O Estado de São Paulo” em 31/12/2006