Por Henrique Hoffmann Monteiro de Castro
É lição básica das Ciências Criminais que, com a ocorrência de uma infração penal, materializa-se o poder-dever de punir do Estado, cabendo a ele iniciar a persecutio criminis para aplicar a lei penal ao caso concreto. A investigação policial, seguida do processo penal, revela-se como instrumento que legitima o uso da força do Estado e se consubstancia como verdadeiro freio ao poder punitivo, que precisa ficar amarrado a rígidos limites.
A persecução penal deve caminhar lado a lado com a franquia de liberdades públicas do cidadão, humanizando-se a função punitiva do Estado. Nada mais óbvio, se considerarmos que a dignidade da pessoa humana, enquanto valor jurídico fundamental da comunidade e reduto intangível do indivíduo, traduz o centro axiológico em torno do qual gravitam os direitos fundamentais, e a última fronteira contra quaisquer ingerências externas.[1] Nesse prisma, o Estado-Investigação nada mais é do que um meio cuja finalidade consiste na garantia de direitos fundamentais[2], sendo o postulado da dignidade o norte para o Poder Público.[3]
Com efeito, a investigação preliminar é o ponto de partida para uma persecução penal bem sucedida, que atenda ao interesse da sociedade de elucidar crimes sem abrir mão do respeito aos direitos mais comezinhos dos investigados. Daí a importância da Polícia Judiciária, dirigida por Delegado de Polícia de carreira (artigo 144 da Constituição Federal), a quem incumbe a condução da investigação criminal por meio dos diversos procedimentos policiais (artigo 2º, parágrafo 1º da Lei 12.830/2013). Constatação constitucional e legal esta reiterada pelo Supremo Tribunal Federal[4], que afasta a possibilidade de qualquer outra autoridade presidir o inquérito policial.
Não de discute que o sistema constitucional pátrio reservou à Polícia Judiciária o papel central na investigação penal, justamente por se tratar de órgão desvinculado da acusação e da defesa. Trata-se de função essencial à justiça[5], que fortalece o sistema acusatório ao possibilitar que o Judiciário permaneça inerte, porquanto a investigação é conduzida pelo delegado de polícia com plena autonomia dos atos investigativos.[6]
Por isso não é de se estranhar a firmação dos tribunais superiores no sentido de que o delegado de polícia age stricto sensu em nome do Estado[7], integrando carreira jurídica.[8]
Nesse contexto, é necessário adotar pensamento crítico[9] para questionar a afirmação de parcela da doutrina, referendada de maneira irrefletida por muitos, no sentido de que o inquérito policial teria por única função subsidiar o Ministério Público de elementos informativos e probatórios para propor a ação penal.
Alguns estudiosos clássicos[10] e modernos[11] da seara criminal já notaram o equívoco dessa assertiva e sublinharam que a função investigativa formalizada pela Polícia Judiciária está longe de se resumir a um suporte da acusação, não possuindo um caráter unidirecional. A finalidade do procedimento preliminar não deve ser vislumbrada sob a ótica exclusiva da preparação do processo penal, mas principalmente à luz de uma barreira contra acusações infundadas e temerárias, além de um mecanismo salvaguarda da sociedade, assegurando a paz e a tranquilidade sociais.[12]
O delegado de polícia, na condição de “primeiro garantidor da legalidade e da Justiça”, como afirmou o ministro Celso de Mello[13], não pode adotar uma visão monocular que hipertrofie a acusação na mesma medida em que desprestigie a defesa. Deve abraçar postura de tratamento isonômico, cuja pertinência ganha ainda mais destaque se relevarmos a tendência do ser humano de utilizar a técnica heurística para tomar decisões.[14]
Outrossim, considerada que a instrução preliminar não caracteriza via de mão única, medida que se impõe é a ampliação da participação da defesa no curso do inquérito policial. O defensor deve ter a oportunidade de se manifestar nos autos do procedimento policial, ainda que após a conclusão das diligências, tendo em conta que não se pode admitir interferências nas atividades policiais em curso (segredo interno), sob pena de total ineficácia do aparelho persecutório à disposição do Estado-Investigação. Destarte, nada impede a incidência dos postulados do contraditório e da ampla defesa na fase inquisitiva, mesmo que de forma mais tênue do que no processo penal, de maneira a evitar o estabelecimento de utilitarismo exacerbado que acentue o fosso que separa acusação e defesa.
Outras questões de extrema importância que merecem destaque são a autonomia da Polícia Judiciária e a independência funcional do delegado de polícia. O Estado ainda não garantiu todos os meios para que essa autoridade imparcial não fique vulnerável a toda sorte de pressões políticas, sociais e econômicas. Nem tampouco assegurou que a Polícia Judiciária pare de ser indevidamente sufocada pelo contingenciamento de recursos .
O Brasil precisa urgentemente levar a sério o alerta feito pelo pai do garantismo penal, no sentido de que a Polícia Judiciária tem que ser “separada rigidamente dos outros corpos de polícia e dotada, em relação ao Executivo, das mesmas garantias de independência que são asseguradas ao Poder Judiciário do qual deveria, exclusivamente, depender”. [15]
A atuação equidistante, ofertando possibilidades idênticas à acusação e à defesa, é da própria natureza da Polícia Judiciária, enquanto longa manus do Poder Judiciário. A autoridade policial tem a responsabilidade de presidir a chamada devida investigação criminal, de matiz constitucional, conduzindo-a com a isenção e a imparcialidade próprias de agente estatal sem compromisso com algo distinto da verdade.
Ademais, a independência funcional do delegado de polícia, mais do que uma prerrogativa do cargo, traduz uma segurança do cidadão, no sentido de que não será investigado por influência política, social econômica ou de qualquer outra natureza, sendo tratado sem discriminações benéficas ou detrimentosas. A autoridade estatal com um poder de tal relevância como o de presidir uma investigação criminal e decidir sobre a prisão ou liberdade das pessoas deve ter liberdade de ação, de modo a preservar o próprio sistema de persecução penal fincado no respeito à dignidade da pessoa humana.
Não poderia haver outra forma de conduzir a apuração criminal num Estado Democrático de Direito. A Polícia Judiciária, por não ter pacto com a acusação ou com a defesa, baliza seus trabalhos tão somente em razão da busca da verdade. O delegado de polícia só consegue conduzir uma investigação não tendenciosa e livre de direcionamentos na medida em que lhe for assegurada a possibilidade de agir de acordo com seu livre convencimento motivado. Essa garantia ganha ainda mais relevo se não nos esquecermos da falibilidade humana na tomada de decisões, o que certamente abrange os chamados experts em quaisquer ciências.[16] A amputação dessa prerrogativa apenas incrementaria a incerteza e a precariedade decisórias da persecução penal.
Nessa esteira, a ninguém comprometido com a devida investigação criminal interessa enfraquecer a Polícia Judiciária e o cargo de delegado de polícia, retirando do cidadão a certeza de que será investigado por autoridade imparcial, independente[17] e integrante de órgão estatal autônomo.
O combate ao crime, desde os delitos violentos até a criminalidade mais sofisticada, passa necessariamente pelo fortalecimento da Polícia Judiciária. Sucatear a Polícia Investigativa e ao mesmo tempo pretender resolver o caos da segurança pública fazendo vista grossa à usurpação de função por outros órgãos públicos (policiais ou não) representa inaceitável jeitinho brasileiro que deturpa o sistema jurídico-penal e fornece resposta demagógica à população leiga.
O exercício da função investigatória demanda generosas doses de imparcialidade, serenidade e respeito à dignidade da pessoa humana. Nessa vereda, a Polícia Federal e as polícias civis têm a importante missão de assegurar que as investigações criminais se mantenham em sintonia com um país democrático e republicano, projetando-se o Delegado de Polícia como a primeira autoridade estatal a preservar os direitos fundamentais, não só das vítimas, mas também dos próprios investigados.
[1] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Editora do Advogado, 2009, p. 105/108.
[6] CHOUKR, Fauzi Hassan. Garantias constitucionais na investigação criminal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 78.
[10] CARNELUTTI, Francesco. Tratado de Derecho Procesal Penal. v. 2. Buenos Aires: EJEA, 1963, p. 84.
[11] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 90.
[12] LOPES JUNIOR, Aury. Sistemas de investigação preliminar no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 50.
[14] KAHNEMAN, Daniel; TVERSKY, Amos. Judgment under uncertainty: heuristics and biases. Science 185 (1974): 1124.
[16] SHANTEAU, James. Psychological Characteristics and Strategies of Expert Decision Makers. Acta Psychologica 68 (1988): 203-15.
[17] GOMES, Luiz Flávio Gomes; SCLIAR, Fábio. Investigação preliminar, polícia judiciária e autonomia. 21/10/2008. Disponível em: http://www.lfg.com.br
Henrique Hoffmann Monteiro de Castro é delegado de Polícia Civil do Paraná, especialista em Direito Penal e Processual Penal pela UGF e em Segurança Pública pela Uniesp. Também é professor convidado da Escola Nacional de Polícia Judiciária, Escola Superior de Polícia Civil do Paraná, da Escola da Magistratura do Paraná e da Escola do Ministério Público do Paraná, e professor-coordenador do Curso CEI e da pós-graduação em Ciências Criminais da Facnopar.
Revista Consultor Jurídico, 14 de julho de 2015
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