*Artigo publicado originalmente na edição desta quarta-feira (22/7) do jornal O Estado de S. Paulo.
A errônea análise do crime exclusivamente sob o prisma dos seus efeitos, sem nenhuma consideração pelos fatores que o desencadeiam, tem como exemplo eloquente a questão do menor abandonado, que, com o passar dos anos, se tornou infrator e, depois dos 18 anos, um criminoso.
Tal questão jamais foi vista pelas elites e pelos governos como um problema social e humanitário, a exigir de todos empenho e solidariedade. Nada foi feito, e as crianças cresceram ao nosso redor sem que nós dispensássemos a elas um mínimo de atenção, mas, ao contrário, nossa atitude sempre foi de desinteresse e de omissão.
Demos-lhes as costas, ao invés de saúde, educação, teto e afeto. A presença desses menores sempre nos causou certa repulsa e medo. A atitude concreta adotada sempre foi a de fechar o vidro dos carros, para evitar qualquer tipo de contato. Agora, após anos de desprezo, foi encontrada a solução cômoda, ineficiente e predatória da prisão.
Prenderemos o maior de 16 anos e deixaremos como está o menor carente, até que ele, com aquela idade, se torne um criminoso. Quando isso ocorrer, também o prenderemos.
Esquece-se, no entanto, de que um dia eles sairão das nossas cadeias, serão egressos do nosso abominável sistema penitenciário e aí estarão aptos a cometer ainda maiores atrocidades contra nós, que os encarceramos. Esse cruel e burro círculo vicioso não vai terminar nunca? Prendemos, soltamos e nos tornamos de novo vítimas de nossa conduta, de nossa irresponsável e autofágica conduta. Estupidez pura.
É óbvio que não deveremos deixar o menor infrator impune. No entanto, vamos reagir contra o crime do menor (infração) com um mínimo de inteligência, se não por um dever social, de solidariedade e de humanismo, pelo menos por egoísmo e autopreservação.
Ninguém duvide de que o sistema prisional brasileiro não evita o crime, ao contrário, ele o estimula. Não há quem não saiba que ele age no sentido contrário dos interesses da própria sociedade, pois não recupera, mas atua como um eficiente fator criminógeno.
Não se desconhece que um coro retumbante se ergueu do seio da sociedade clamando pela redução da maioridade penal. Esse clamor é emocional e não provém da análise das causas do fenômeno criminal e das consequências da medida apregoada. Trata-se de uma grita irracional, impulsionada e avolumada por uma cultura punitiva divulgada pela mídia e incrustada no íntimo das pessoas, sem maiores indagações e reflexões.
Lembre-se de que o homem de hoje, o homem midiático, perdeu o senso crítico, pouco raciocina. A imagem divulgada não passa pela razão, porque vai direto à emoção, provocando amor ou ódio. No caso do menor infrator, provoca o ódio.
Prega-se a diminuição da idade da responsabilidade penal porque os maiores de 16 anos estão praticando infrações.
Assim, cabe uma indagação: e os de 15 anos, de 14 anos ou os de 13 anos que também as praticam? Se a solução é a prisão, por que não encarcerar todo e qualquer infrator menor, considerando-o criminoso?
Uma matéria do dia 15 de julho do jornal O Estado de S. Paulo mostrou que menores de 12 anos a 17 anos estão cometendo mais delitos do que os de 16 a 18 anos. Portanto, tendo a cadeia como solução, deverão ser colocados nas prisões, junto com experientes criminosos, os menores a partir dos 12 anos.
Bem se vê que a solução da diminuição da idade da responsabilidade penal não passa de demagogia, pura insensatez, ausência de seriedade, verdadeira cortina de fumaça para iludir a sociedade. Basta prender e nada mais deverá ser feito.
Pergunta-se: há quem creia em que os menores serão recuperados no cárcere? Ou, ao contrário, a prisão estimulará o aumento de sua periculosidade, e irá prepará-lo adequadamente para trilhar com eficiência e êxito os caminhos do crime?
Não se espantem se surgir uma corrente que pregue o isolamento, em lugares distantes, dos menores considerados potencialmente perigosos, em face do meio em que vivem, das pessoas com as quais convivem e da “cara” que possuem. Essa corrente terá como objetivo riscar esses menores dos nossos mapas urbanos...
Deve-se notar que nós estamos nos preocupando com o menor abandonado apenas e na medida em que ele nos está agredindo, pois, estivesse em silêncio, amargando as suas carências debaixo dos viadutos, sem nos incomodar, continuariam a ter o nosso desprezo. A sociedade brasileira não soube ou não quis criar uma cumplicidade entre os seus membros para cuidar do menor carente. Ocorreu, sim, a cumplicidade com o abandono.
A propósito, significativos porcentuais de infratores (total de 23 mil no País, em 2013) têm algum tipo de carência social, que certamente contribuiu para a prática delituosa. Assim, 51% não frequentam a escola; 49% não trabalhavam quando foram recolhidos; e 66% pertencem às famílias de extrema pobreza (dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, Ipea, divulgados pelo jornal Valor Econômico de 13/7).
Vamos fazer, agora, o que não fizemos durante séculos. Cuidar do menor. Recolher o infrator, porém tornar o recolhimento não o da cadeia, mas o de instituições apropriadas, algo construtivo, edificante. Ampliar o prazo de recolhimento previsto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e utilizá-lo como medida pedagógica e humanitária, para suprir as carências, que vão da educação ao afeto, passando pela saúde, pela assistência psicológica e pela profissionalização.
Vamos estender as mãos para o menor infrator, para que ele não volte a delinquir e para que o menor abandonado não se torne infrator. Digamos não à prisão, pois a prisão de hoje leva ao crime de amanhã.
Antônio Cláudio Mariz de Oliveira é conselheiro honorário do MDA, ex-presidente da OAB-SP e da AASP, foi secretário de Justiça e de Segurança do Estado de São Paulo.
Revista Consultor Jurídico, 22 de julho de 2015.
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