A audiência de custódia vem sendo objeto de intenso debate no meio jurídico. O ato em questão consistiria, na formulação que vem sendo proposta, na obrigação de todo preso ser apresentado ao juiz no prazo de 24 após a detenção.
O ato, tal como propugnado, constitui uma inutilidade porque não se destina à produção de provas; os magistrados não têm conhecimentos técnicos para avaliar eventuais práticas de tortura porque não são peritos; não se pode perder de vista que os presos em flagrante seriam conduzidos à presença dos magistrados por policiais, circunstância por si só apta a inibir denúncias de eventuais torturas; a condução do investigado à presença do juiz, logo após a prisão, demanda o dispêndio de escassos recursos públicos com a utilização de todo um aparato de segurança, como o emprego de viaturas e agentes estatais envolvidos no deslocamento de detentos.
Nesse contexto, a audiência de custódia serviria apenas para o magistrado ter contato visual com o preso, fomentando os preconceitos inerentes à falibilidade da condição humana frente às desigualdades sociais.
Não se pode perder de vista a dura realidade das varas criminais deste país, assoberbadas de processos e com extensas pautas de audiências. Em pouco mais de um ano frente a uma Vara Federal com competência exclusivamente criminal, embora realizando audiências todos os dias da semana (às vezes, até 7 audiências por dia), a pauta continuou extensa. Encontrar espaço na pauta de audiências para a realização de audiências de custódia implicaria a redesignação de inúmeras audiências dos processos em curso relacionados a réus soltos. Isso só aumentaria o ciclo vicioso da ineficácia da jurisdição penal que se reflete em processos infindáveis, na rotineira consumação da prescrição e na percepção generalizada de impunidade.
Minha experiência profissional como ex-juiz de Direito conduz à conclusão de que esse cenário certamente é bem pior nas varas estaduais que cuidam dos delitos do cotidiano (furtos, roubos, lesões corporais etc). Não é exagero afirmar que a realização de audiências de custódia em relação a todos os investigados presos conduzirá à completa inviabilização da maioria das varas criminais do país.
Feitas essas ponderações, passo ao exame da questão sob o prisma legal. Não se pode negar a estatura supralegal dos tratados internacionais, conforme a compreensão jurisprudencial firmada pela Suprema Corte (RE 404276 AgR/MG), e, de consequência, vigência à Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José).
Toda a controvérsia entorno da audiência de custódia, nos termos em que vem sendo proposta, parte de um manifesto equívoco: nenhum dispositivo do tratado internacional em referência estabelece um prazo a apresentação do preso ao magistrado. A convenção assegura aos presos, ao tratar da liberdade pessoal (artigo 7º, 5) e das garantias judiciais (artigo 8º, 1), o direito de ser conduzido “sem demora” à presença de um juiz e de ser ouvida “dentro de um prazo razoável”. Essas garantias já estão contempladas na legislação processual brasileira na parte que trata do direito do réu ser interrogado (artigos 185 e seguintes do Código de Processo Penal). No sistema processual brasileiro os acusados têm o direito de ser ouvidos pelo juiz do processo e, tratando-se de réu preso, conforme jurisprudência consagrada, está assegurado julgamento célere, sob pena de relaxamento da prisão por excesso de prazo.
Assim, assentando a vigência da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, considero desnecessária e inútil a pretendida audiência de custódia porque os direitos dos presos são assegurados pelo interrogatório e pela condução da instrução célere do processo penal, o que deve ocorrer por volta de 80 dias contados da prisão.
A ausência de realização de audiência de custódia em todo e qualquer procedimento de prisão em flagrante não nulifica o auto e não torna a prisão ilícita. Essa tem sido a compreensão jurisprudencial do Tribunal Regional Federal da 1ª Região:
PROCESSUAL PENAL. PENAL. SUPOSTA PRÁTICA DO DELITO DE TRÁFICO INTERNACIONAL DE DROGAS. AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA. CONDUÇÃO PESSOAL DO PRESO AO JUIZ. AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL. HABEAS CORPUS DENEGADO. 1. O ordenamento jurídico pátrio não contempla o instituto da "audiência de custódia", apenas prevê o encaminhamento do auto de prisão em flagrante para que o juiz competente analise a legalidade e a necessidade da manutenção da prisão cautelar. Não há condução pessoal do preso ao magistrado. 2. O indeferimento do pedido de realização de audiência de custódia - por absoluta falta de previsão legal - não consubstancia constrangimento ilegal, passível de reparação por habeas corpus. 3. Ordem de habeas corpus denegada. (HC 0038979-75.2014.4.01.0000 / AM, Rel. DESEMBARGADOR FEDERAL NEY BELLO, TERCEIRA TURMA, e-DJF1 p.163 de 03/10/2014).
A dura realidade da jurisdição criminal enseja uma pergunta: é razoável a realização de um ato inútil, desnecessário e caro, como é a pretendida audiência de custódia, nos moldes que vem sendo defendida?
A alegação de que a audiência de custódia implicaria redução da população carcerária não se sustenta. Nenhum juiz de posse de suas faculdades mentais gosta de prender porque a prisão é o atestado da falência do Estado e do indivíduo.
A redução significativa da população carcerária poderia ser obtida com investimentos na aquisição tornozeleiras de monitoramento eletrônico e criação de estruturas eficazes de fiscalização das penas alternativas e das medidas cautelares diversas da prisão. Como esses instrumentos não existem a maioria dos juízes se sente desestimulada a aplicar medidas alternativas à prisão porque não têm como ser fiscalizadas. O Poder Executivo, entretanto, se recusa fornecer equipamentos e meios alternativos às prisões. A superpopulação carcerária é um problema que cabe ao Poder Executivo solucionar, uma vez que é o responsável pela administração de todo o sistema prisional.
A audiência de custódia é mais uma dessas invenções dos criminalistas românticos adeptos do Direito Penal mínimo que em nada contribuirá para a efetividade da prestação jurisdicional, direito fundamental consagrado no artigo 5º, LXXVIII, da Constituição Federal.
Adelmar Aires Pimenta da Silva é juiz federal da 2ª Vara da Seção Judiciária do Tocantins
Revista Consultor Jurídico, 28 de julho de 2015.
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