Somente no primeiro semestre do ano passado foram registradas 565 mortes violentas no sistema carcerário brasileiro, segundo os dados mais recentes do Departamento Penitenciário Nacional (Depen). A causa, avaliam especialistas, seria a superlotação dos presídios. “Com a superlotação exagerada, cresce a tensão entre os membros de facções criminosas e entre os presos e os agentes prisionais”, afirma o presidente da Comissão de Direitos Humanos da seccional maranhense da Ordem dos Advogados do Brasil, Luiz Antônio Pedrosa.
A expectativa é que com o projeto Audiência de Custódia, lançado e difundido nacionalmente pelo presidente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ministro Ricardo Lewandowski, o quadro endêmico de superlotação das unidades prisionais seja superado, diminuindo a probabilidade de homicídios e suicídios de pessoas sob custódia provisória, contingente de maior incidência entre as mortes verificadas.
A audiência de custódia – apresentação das pessoas presas em flagrante a um magistrado, em até 24 horas após a prisão –, favorece a adoção imediata de medidas alternativas ao encarceramento e, consequentemente, seleciona melhor o contingente daqueles que merecem continuar presos.
No Maranhão, onde pelo menos 60 detentos foram mortos em 2013, as primeiras 569 audiências de custódia realizadas pelo Judiciário local resultaram na liberação de 322 pessoas. A taxa de mortalidade nas unidades prisionais maranhenses, porém, é a mais alta do país – 75,1 mortes para cada 10 mil detentos no estado. A média nacional é quase nove vezes menor (8,4), de acordo com os números do Depen de junho do ano passado.
Por causa das mortes violentas nas prisões maranhenses, o estado brasileiro foi acionado pela Corte Interamericana dos Direitos Humanos. A realização de audiências de custódia foi uma das medidas recomendadas pelo órgão da Organização dos Estados Americanos (OEA) para reverter o quadro prisional do estado. “As audiências de custódia representam um avanço no Tribunal de Justiça do Maranhão, que agora precisa de juízos específicos para cuidar apenas das audiências de custódia”, diz Luiz Antônio Pedrosa.
Provisórios – A superlotação do sistema prisional brasileiro se deve em parte à enorme quantidade de detentos que ainda não foram julgados – 222 mil pessoas, ou quatro em cada dez presos no país. Em junho de 2014, as unidades destinadas a presos que aguardam julgamento (provisórios) apresentavam taxa de ocupação de 192%, o que praticamente equivale a dois presos para uma só vaga. O índice é superior à média nacional, 161%, segundo o Depen.
Iniciado pelo CNJ em fevereiro deste ano, no Tribunal de Justiça de São Paulo, o projeto Audiência de Custódia tem obtido resultados que contribuem para reverter o quadro no estado com a maior população carcerária do país: 219 mil pessoas.
Em conversas informais com diretores de unidades prisionais do estado, a diretora-executiva do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), Isadora Fingermann, percebe que a reação deles às primeiras audiências de custódia tem sido “extremamente positiva”. A especialista considera as audiências “a melhor solução para o excesso de presos provisórios dos últimos anos”, pois manter presos os responsáveis por crimes de menor potencial ofensivo é um dos principais fatores para o “caos” do sistema carcerário.
“Acabam misturando detentos perigosos a presos provisórios que podem eventualmente vir a ser inocentados ou que poderiam receber alguma pena restritiva de direitos, não necessariamente a prisão. O impacto disso é a absorção de muitos deles pelo crime organizado no que chamamos de escola do crime. Com menos presos provisórios, teremos menos caos no sistema”, afirma.
Solução – Nos tribunais estaduais em que as audiências de custódia já foram adotadas como política institucional– São Paulo, Espírito Santo, Maranhão e Minas Gerais –, os juízes têm avaliado que metade das pessoas detidas em flagrante não precisa permanecer na prisão enquanto o julgamento não ocorre. No TJ maranhense, o índice de liberdade concedida é ainda maior – 60%. A medida deve diminuir o ritmo de crescimento da população carcerária no Maranhão, que aumentou na primeira metade de 2014 na proporção de dois presos novos para cada detento que deixava o sistema. No mesmo período, a população carcerária nacional cresceu menos rapidamente, numa relação de quatro entradas para cada três saídas.
De acordo com o coordenador do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF), juiz Luís Geraldo Sant’Ana Lanfredi, o alcance das audiências de custódia ataca em cheio o inchaço desproporcional experimentado pelo sistema prisional brasileiro, nos últimos dez anos. “O encarceramento causa danos a quem está preso, mas sobretudo a quem não deveria estar preso. Por isso precisamos melhorar a forma de avaliar quem precisa estar em uma prisão e quem não precisa. O que se pretende é melhor diferenciar quem deve estar preso e quem não deve. É, decididamente, de uma melhor qualificação da porta de entrada do sistema prisional o que precisamos como primeiro passo e medida estruturante para colocar essa situação de colapso prisional que vivemos em seu devido lugar”, afirma Lanfredi.
Segundo o secretário de Justiça do Espírito Santo, Eugênio Coutinho, já é possível notar uma melhora nas condições de segurança das unidades prisionais capixabas em consequência do número de presos que deixaram de ingressar nas prisões do estado desde o fim de maio, quando o TJ do Espírito Santo aderiu ao programa. Até o dia 5 de julho, 849 presos passaram por audiências de custódia que resultaram em 439 liberações. “Reduzir a superlotação do sistema contribui para maior segurança às unidades e melhora as condições para as atividades de ressocialização e também resulta em economia para o estado”, diz o secretário, que se mostra otimista quanto ao futuro.
“Em médio prazo, acredito que o número de pessoas que deixam o sistema vai se equalizar com a quantidade de presos a quem a Justiça concede liberdade provisória ou relaxamento de flagrante”, afirma. No país, durante o primeiro semestre do ano passado, 155,8 mil pessoas entraram em alguma penitenciária, cadeia pública ou outra unidade prisional do país, enquanto 118,2 mil presos deixaram o sistema.
Cultura do encarceramento – De acordo com o coordenador do DMF, além de trazer impacto positivo para o sistema carcerário, as audiências de custódia protagonizam a mudança de paradigmas para o sistema de Justiça criminal. “As audiências de custódia são uma providência concreta para fazer frente à ideia de que, com a prisão, tudo se resolve, cultura essa que se instalou entre todos nós e está arraigada na forma como agem os atores da justiça criminal, também contaminando o pensamento de todos os setores da sociedade, que têm dificuldade de perceber que a prisão, isoladamente, não resolve o problema da criminalidade. Mais presos, mais presídios e mais prisões não estão trazendo a segurança que todos desejamos”, afirma Lanfredi.
Alternativas – Além da avaliação sobre a necessidade de manutenção das prisões, o programa também prevê a implantação de centrais integradas de alternativas penais, centrais de monitoramento eletrônico, centrais de serviços e assistência social e câmaras de mediação penal. É o suporte necessário para que o magistrado decida por alternativas à prisão. No Espírito Santo, por exemplo, desde o início do projeto, 369 presos tiveram a liberdade condicionada ao cumprimento de medidas cautelares, entre elas o monitoramento eletrônico. Ao todo, as audiências de custódia resultaram no encaminhamento de 327 pessoas detidas em flagrante para atendimento psicossocial.
Histórico – As audiências de custódia estão previstas em pactos e tratados internacionais firmados pelo Brasil, como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e a Convenção Interamericana de Direitos Humanos. Durante uma audiência de custódia, o acusado por um crime é apresentado ao juiz rapidamente após ser detido em flagrante e entrevistado pelo juiz. O magistrado é responsável por averiguar se houve tortura ou maus-tratos cometidos desde o momento do flagrante, além de analisar a própria legalidade da prisão e a necessidade de manter a pessoa presa ou lhe conceder liberdade.
A liberdade provisória, que dura até o fim do julgamento do acusado, pode ser condicionada ao pagamento de fiança ou ao cumprimento de medidas cautelares, como monitoramento eletrônico. Durante a audiência, são ouvidos o preso, o Ministério Público, a Defensoria Pública ou o advogado a pessoa detida.
Manuel Carlos Montenegro
Agência CNJ de Notícias. 24.07.2015.
Agência CNJ de Notícias. 24.07.2015.
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