No final do ano passado, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar recurso extraordinário (RE 591.054), por maioria de votos, firmou a tese de repercussão geral de que inquéritos policiais ou ações penais sem trânsito em julgado não podem ser considerados maus antecedentes para o fim de dosimetria de pena. Foram vencidos os ministros Ricardo Lewandowski, Rosa Weber, Luiz Fux e Cármen Lúcia.[1] A posição se coaduna à jurisprudência pacífica do Superior Tribunal de Justiça, estampada em sua Súmula 444, que dispõe: “É vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a pena base.”
Todavia, recentemente, no dia 24 de junho de 2015, o STF assinalou sua tendência de mudar esse entendimento, no julgamento de dois habeas corpus (HC 94.620 e HC 94.680), que estavam sobrestados à espera justamente da fixação da tese em repercussão geral. Apesar de, em atenção ao princípio da colegialidade, a tese de repercussão geral ter sido aplicada para ambos os casos, seis dos ministros disseram admitir a possibilidade de inquéritos policiais e processos penais em curso prestarem-se à caracterização de maus antecedentes, consideradas as particularidades de cada caso.[2]
Com o devido respeito, acreditamos que a retomada da posição adotada em larga escala pelo STF na década de 1990[3] implicará evidente retrocesso, por ofensa direta ao princípio da presunção de inocência (ou presunção de não culpabilidade),[4] previsto no artigo 5º, LVII, da Constituição: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória.”[5]
Em nossa ordem constitucional, a presunção de inocência é garantia individual e, portanto, ostenta a natureza de cláusula pétrea.[6]Curiosamente, a Constituição atual é a primeira a prevê-la de maneira expressa. Todas as demais destinaram um capítulo específico aos direitos e às garantias individuais, reconhecendo tratar-se de rol meramente exemplificativo, de modo a abarcar outros direitos e garantias que se harmonizassem com os princípios constitucionais adotados.[7] Dentre eles, obviamente, o princípio da presunção de inocência, fundamento que levou o STF, sob a égide da Constituição de 1967, a reconhecer a inconstitucionalidade do artigo 48 do Decreto-lei 314/67 (“Lei de Segurança Nacional”), que previa a suspensão do exercício da profissão, emprego ou cargo, em razão de prisão em flagrante delito ou pelo simples recebimento da denúncia.[8]
Aludida garantia é prevista em grande parcela das constituições ocidentais[9] e amplamente prestigiada no âmbito internacional, sendo contemplada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948),[10]pela Convenção Europeia para a Tutela dos Direitos do Homem e da Liberdade Fundamental (1950),[11] pela Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem (1948)[12] e pela Convenção Americana de Direitos Humanos (1969),[13] entre outros. Há outras constituições que não preveem essa garantia, porém conferem-na especial deferência, como é o caso da Constituição dos EUA, que permite seu reconhecimento a partir da interpretação conjugada da 5ª, 6ª e 14ª emendas.[14]
A presunção de inocência, juntamente com outras garantias, como a ampla defesa (artigo 5º, LV, CF) e a vedação à autoincriminação (artigo 5º, LXIII, CF) compõe uma espécie de escudo protetivo contra as práticas estatais arbitrárias, com raiz na cláusula geral do procedural due process (artigo 5º, LIV, CF), que certamente “restará descaracterizado com o exercício arbitrário da violência estatal nele institucionalizada e canalizada.”[15]
Retornando ao tema central, resta saber se a consideração de processos penais em curso como maus antecedentes ofenderia a garantia constitucional em apreço. Nossa resposta é afirmativa. Com efeito, os direitos e garantias fundamentais apresentam um núcleo, uma essência ouconteúdo de inegável valor, que deve ser identificado com o espírito imanente ao valor enunciado pela norma ou corpo de normas. Como sustenta Ana Paula de Barcellos, “não se pode admitir que conformações ou restrições possam chegar a esvaziar o sentido essencial dos direitos, que, afinal, formam o conjunto normativo de maior fundamentalidade, tanto axiológica, quanto normativa, nos sistemas jurídicos contemporâneos. Nesse sentido, o núcleo deve funcionar como um limite último de sentido, invulnerável, que sempre deverá ser respeitado.”[16]
Ponderamos que o princípio da presunção de inocência “impõe consequências normativas de natureza material e processual. É uniforme na doutrina que nele se expressa não apenas uma norma de tratamento, que proíbe antecipação da pena ou adoção de medidas coercitivas em face do não culpado, mas também uma norma processual que atribui o ônus de prova à acusação.”[17] Esta é, segundo acreditamos, a essência do princípio em apreço e, como tal, ela impede, em absoluto, qualquer aumento de pena que leve em consideração processos penais em curso, justamente porque implicaria, inegavelmente, antecipação de pena, no acréscimo decorrente dessa circunstância. Para o acusado, uma singela elevação de pena pode acarretar-lhe diversas consequências negativas, como a fixação de regime mais severo (artigo 33, Código Penal), óbice à conversão da pena privativa de liberdade em penas alternativas (artigo 44, CP) e impedimento de sursis(artigo 77, CP), dentre outras.
O problema é que todas essas consequências possuem a aptidão de adquirirdefinitividade, porque, por serem decididas em sentença, poderão ser revestidas do manto da coisa julgada material, somente rescindível nas hipóteses estreitas de admissibilidade da ação de revisão criminal, previstas no artigo 621 do Código de Processo Penal. Imaginemos, portanto, um indivíduo que tenha sido condenado e sua pena aumentada pela existência de processos criminais em curso e, depois, venha a ser absolvido nesses processos. Haveria a possibilidade de ele lançar mão da ação de revisão criminal para redimensionar sua pena, de modo a excluir dela o aumento indevido, com base no artigo 621, III, in fine, do CPP? Ainda que uma posição liberal a admita, não faltarão entendimentos de que a reprimenda seria insusceptível de revisão, porque não haveria se falar em má apreciação dos fatos no momento da prestação da tutela jurisdicional.[18]
Assim, em atenção ao princípio da presunção de inocência e, em menor grau, ao princípio da segurança jurídica, temos que somente poderão ser considerados maus antecedentes as condenações criminais já transitadas em julgado, independentemente do lapso decorrido entre a data da condenação definitiva e a data do julgamento,[19] de modo que não há se falar no limite temporal de cinco anos entre a data do cumprimento ou extinção de pena e a prática da nova infração, regra específica para a caracterização da reincidência, nos termos do artigo 64, I, do CP. Segundo o STJ, os maus antecedentes também se verificam quando o trânsito em julgado sobrevém à prática do outro crime que está sendo apurado, desde que se refira a fato anteriormente praticado.[20] Desse modo, todo registro criminal apto a configurar a reincidência também assumirá a natureza de mau antecedente, mas o contrário não se verifica. É óbvio, todavia, que a mesma condenação não poderá servir para ambos os efeitos (Súmula 241 do STJ),[21] mas nada impede que, existindo duas condenações definitivas aptas a gerar reincidência, uma delas sirva para a elevação da pena na primeira fase da dosimetria, ao passo que a outra se preste à elevação na segunda etapa.[22]
Cabe a última consideração. Ao proferir seu voto no julgamento do citado RE 591.054, o ministro Luiz Fux disse que a desconsideração de processos penais em curso na dosimetria da pena poderia lesar o princípio da isonomia. Em suas palavras: “a sanção penal talvez seja o núcleo essencial dos escopos do Direito Penal, que é a sua exemplariedade. Então, se vamos levar em consideração que o tratamento tem que ser igual para quem nunca praticou crime, e deferisse o mesmo tratamento para aquele que tem processos e inquéritos pendentes, efetivamente haverá não uma violação do princípio da presunção de inocência, mas flagrante violação do princípio da isonomia.”[23]
Sem embargo do respeitável entendimento, não cremos, contudo, que a exigência de trânsito em julgado viole o princípio da isonomia, porque a existência de inquéritos policiais e ações penais em curso pode obstar uma série de benefícios, tais como a transação penal[24] e a suspensão condicional do processo;[25] enseja a prorrogação do período de suspensão condicional da pena; pode amparar o decreto de prisão provisória, fundamentado na garantia da ordem pública;[26] e, durante a execução, a simples prática de crime doloso é equiparada à falta grave e pode ensejar a regressão de regime,[27] a revogação de até 1/3 do tempo remido,[28] dentre outras.
Destarte, lege lata, a existência de registros criminais acaba por desigualar situações que seriam ontologicamente iguais, situação que já se revela suficiente para que não exista violação ao princípio da isonomia. No entanto, essa circunstância não pode ensejar a elevação da sanção penal, o que implicaria antecipação de pena e, consequentemente, feriria de morte o núcleo do princípio da presunção de inocência.
[1]Disponível em “http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?numero=591054&classe=RE-RG&codigoClasse=0&origem=JUR&recurso=0&tipoJulgamento=M.” Acesso em 28.6.2015.
[2] Disponível em “http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=294380”. Acesso em 28.6.2015.
[3] Nos anos 90, prevalecia no STF a posição de que inquéritos e ações penais em curso poderiam ser motivos suficientes para a elevação da pena base. Por amostragem: HC 68.290/DF, rel. Min. Carlos Velloso, j. em 16.10.1990; HC 70.871/RJ, rel. Min. Paulo Brossard, j. em 25.11.1994; HC 72.03/SP, rel. Min.Ilmar Galvão, j. em 31.03.1995; HC 72.664/SP, rel. Min. Moreira Alves, j. em 19.09.1997; HC 73.297, rel. Min. Maurício Corrêa, j. em 16.08.1996 etc.
[4] Não vemos diferença substancial entre as expressões, tratando-se de mera opção terminológica. Nesse sentido: BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. O ônus da prova no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 282.
[5] Por inspiração da Constituição italiana de 1948, que dispõe em seu art. 27.2: “l´imputato non è considerato colpevole sino alla condanna definitiva”.
[6] Art. 60, § 4º. Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: (...) IV – os direitos e garantias fundamentais.”
[7] Conferir: art. 78 da Constituição de 1891; art. 114 da Constituição de 1934; art. 123 da Constituição de 1937; art. 144 da Constituição de 1946; art. 150, § 35, da Constituição de 1967; e art. 153, § 36 da EC 1º/1969.
[8] STF, HC 45.232/GB, rel. Min. Themistocles Cavalcanti, j. em 21.2.1968.
[9] Por amostragem, Constituição de Portugal (art. 32, 2), da Espanha (art. 24.1) e da França (remissão à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 no preâmbulo).
[10] Art. 11: “toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente até que sua culpabilidade tenha sido provada, de acordo com a lei, em julgamento público, no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.”
[11] Art. 6.2: “toda pessoa acusada de um delito é presumivelmente inocente até quando sua culpabilidade não seja legalmente apurada.”
[12] Art. 26: parte-se do princípio de que todo acusado é inocente, até prova de sua culpabilidade.”
[13] Art. 8.2: “toda pessoa acusada de praticar um delito tem direito a que se presuma a sua inocência enquanto não se comprove legalmente a sua culpa.”
[14] Coffin v. United States, 156 U.S. 432 (1895) e bem mais recentemente, In re Winship, 397 U.S. 358 (1970). Nos EUA, a presunção de inocência é afirmada pelo princípio da beyond a reasonable doubt, que exige que condenações criminais somente possam ocorrer quando não existir qualquer dúvida razoável para a condenação, norma que impõe que os veredictos condenatórios dos tribunais do júri ocorram sempre por unanimidade, diferentemente dos júris para os casos cíveis, que exigem apenas maioria, em atenção ao princípio da preponderance of evidence. V. VARAT, J.D. et al, Constitutional law cases and materials. 13a ed. Nova Iorque: Foundation Press, 2009, p. 356.
[15] GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal. São Paulo: Atlas, 2014, p. 22.
[16] BARCELLOS, Ana Paula de. Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 141.
[17] TROIS NETO, Paulo Mário Canabarro. Direito à não autoincriminação e direito ao silêncio. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, pp. 114-115.
[18] Parece prevalecer o entendimento que a alteração da pena por meio de revisão criminal é medida excepcional, justificável apenas quando o julgador contrariou texto expresso de lei ou a evidência por autos (cf. NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal comentado. 12ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 1093). Nos Tribunais: “Constitui prática desaconselhável em revisão criminal proceder-se à mudança quantitativa da pena imposta, salvante os casos excepcionais de explícita injustiça, ou de comprovado erro ou inobservância de técnica no processo dosimétrico.” (TJSP, RvCr 265.269-3, 2º Grupo de Câmaras Criminais, rel. Des. Gonçalves Nogueira, 8.6.2000, v.u.).
[19] No mesmo sentido, e.g., BOSCHI, José Antônio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. 7ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, p. 166.
[20] STJ, HC 287079/SP, 6a T., rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJ13.10.2014.
[21] Súmula 241, STJ: “A reincidência penal não pode ser considerada como circunstância agravante e, simultaneamente, como circunstância judicial.”
[22] Nesse sentido: STJ, HC 19.166/SP, 6a T., rel. Min. Fernando Gonçalves, DJ6.5.2002.
[23] Disponível emfile:///C:/Users/tfilippo/Downloads/texto_304686354%20(3).pdf. Acesso em 30.6.2015.
[24] A aceitação de transação penal impede a proposta de novo benefício, nos termos do art. 76, par. 2o, II, da Lei 9.099/95.
[25] Art. 89 da Lei 9.099/95: “Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a 1 (um) ano, abrangidas ou não por esta Lei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo, por 2 (dois) a 4 (quatro) anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena (art. 77 do Código Penal).” – grifamos.
[26] Pacelli observa: “A prisão preventiva para garantia da ordem pública somente deve ocorrer em hipóteses de crimes gravíssimos, quer quanto à pena, quer quanto aos meios de execução utilizados, e quando haja o risco de novas investidas criminosas e ainda seja possível constatar uma situação de comprovada intranquilidade coletiva no seio da comunidade (STJ – HC n. 21.282/CE, DJ 23.9.2002). Nesse campo, a existência de outros inquéritos policiais e de ações penais propostas contra o réu (ou indiciado) pela prática do delito da mesma natureza poderá, junto com os demais elementos concretos, autorizar um juízo de necessidade da cautela provisória.” (PACELLI, Eugênio. Curso de processo penal. 16a ed. São Paulo: Atlas, 2012, pp. 551-552.
[27] Art. 118, I, da Lei 7.210/84.
[28] Art. 127, da mesma lei, cuja constitucionalidade foi reconhecida pela Súmula Vinculante 9, do STF.
Thiago Baldani Gomes De Filippo é juiz de Direito da 2ª Vara Criminal, do Júri e da Infância e Juventude da Comarca de Assis. Mestre em Direito Comparado pela Samford University, Cumberland School of Law e Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP).
Revista Consultor Jurídico, 20 de julho de 2015.
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