segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Entrevista - Cecilia Sosa Gómez

"Não há segurança jurídica na Venezuela"

 

O filósofo político francês Charles-Louis de Secondat, o barão de Montesquieu, desenhou a teoria da divisão do Estado em três Poderes como fórmula mais próxima do ideal para regimes que se admitam democráticos. Eleitos pelo povo, os membros do Legislativo editam normas, o Executivo conduz a máquina pública dentro das regras e o Judiciário garante que todos cumpram seu papel. Mas esse edifício hermético vira de cabeça para baixo quando o chefe de Estado é um ex-militar revolucionário como Hugo Chávez. Pela velha e gasta intimidação, o presidente da Venezuela já tem no bolso a mais alta corte constitucional do país, o Tribunal Supremo de Justiça, e tem caminho aberto para estatizar toda a propriedade privada, suprimir direitos e sapatear sobre a Constituição.
O diagnóstico amargo é da ex-presidente da Suprema Corte de Justiça venezuelana Cecilia Sosa Gómez, que visitou o Brasil no início do mês para participar de debates sobre a entrada do país no Mercosul. Cecília Sosa palestrou em seminário organizado pela Federação do Comércio do Estado de São Paulo e pelo Instituto Millenium, que adiantou discussões a serem feitas no Senado brasileiro em novembro, sobre o ingresso do novo membro no bloco.
Em entrevista à revista Consultor Jurídico, a ex-ministra admitiu que seu país está muito aquém dos vizinhos no que se refere ao respeito aos princípios democráticos. “Na Venezuela não existe democracia”, afirma. Segundo ela, o descaso do Estado com a própria Constituição pode prejudicar os interesses em investimentos estrangeiros. “Se direitos constitucionais são manipulados para facilitar ou favorecer um setor da população em detrimento de outro, obviamente que a segurança jurídica é ausente”.
Primeira mulher a presidir uma corte suprema nas Américas, em uma Venezuela sacudida pela instabilidade política e econômica, Cecilia acredita ter deixado sua marca em 11 anos no tribunal, quatro como presidente. “A mulher sabe lidar com limitações econômicas e é apaixonada pelo seu trabalho. Para ela, o trabalho não é uma tarefa, é uma conquista”, orgulha-se. A satisfação se deve à atenção especial dedicada por ela à administração da corte, em uma experiência parecida com a vivida pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro sob o comando da ministra Ellen Gracie, primeira mulher a ocupar o posto no país. Especialista em administração tanto pública quanto privada, e vivendo na pele os problemas do Judiciário a esse respeito, Cecilia crava com conviccção: "nem todos os juízes sabem administrar".
Cecília Sosa Gómez assumiu uma cadeira no Tribunal Supremo de Justiça venezuelano em 1989, e chegou à presidência da corte em 1996. Dois anos depois, era eleita presidente da Associação de Cortes Supremas de Justiça das Américas. Entre suas decisões mais importantes, estão a condenação do ex-presidente Carlos Andrés Pérez, a declaração de constitucionalidade de acordos de privatização para exploração petrolífera e o reconhecimento da necessidade de se fazer uma Assembleia Nacional Constituinte em 1999. Antes da corte, ela foi juíza na Primeira Corte de Contencioso Administrativo, segundo tribunal mais importante do país, entre 1986 e 1989.
A condenação do ex-presidente Carlos Andrés Pérez foi um dos episódios mais difíceis vividos pela então presidente da Corte Suprema. “Nenhum magistrado queria anunciar publicamente o resultado da sentença de condenação”, conta Cecilia. Pérez foi deposto em 1993, acusado de corrupção e de ser o responsável pelas mortes e desaparecimentos de milhares de revoltosos do levante conhecido como Caracazo, que abriu caminho para o golpista tenente-coronel Hugo Chávez.
As medidas tomadas pelo governo venezuelano durante a crise econômica na década de 1990 foram o estopim. Ao facilitar as importações, privatizar serviços públicos e provocar o aumento nas tarifas, Carlos Andrés Pérez enfrentou um levante armado mobilizado por Chávez. A revolta não deu certo e Chávez foi preso, mas isso não evitou uma segunda investida, respondida com borbardeios e prisões em massa. As mortes causadas pela ação dos governistas levaram Pérez à prisão.
Com a vitória de Hugo Chávez nas eleições presidenciais em 1998, e a dissolução do Congresso Nacional decretada por ele no ano seguinte, Cecilia renunciou ao cargo na Suprema Corte. Como os próprios membros do tribunal aceitaram, por oito votos a seis, a submissão da Justiça ao Parlamento, ela preferiu se afastar. "A Suprema Corte está morta, ela se matou em vez de ser assassinada", disse ao sair.
A corte continua agonizante. No mês passado, o governo venezuelano publicou a Lei Orgânica do Sistema de Organização da Justiça, criando uma comissão responsável por controlar desde os pagamentos aos juízes até a marcação de audiências. Cinco dos nove membros dessa comissão vêm do Executivo, o que representa mais um golpe na independência do Judiciário.
Mesmo assim, Cecília Sosa fez escola. Hoje, o Tribunal Supremo de Justiça continua sendo presidido por uma mulher, a ministra Luisa Estella Morales Lamuño. A Corte é dividida em seis seções, chamadas de "salas", três comandadas por mulheres. A Seção Constitucional, a mais importante, conta com sete ministros, chamados simplesmente de "magistrados", e é dirigida pela presidente da corte, Luisa Lamuño. A Secção Político-Administrativa, tem à frente a ministra Evelyn Margarita Marrero Ortiz — cadeira que também foi ocupada por Cecilia. Outra ministra, Yris Armenia Peña de Andueza, conduz a Seção Civil. As demais seções são a Eleitoral, a Social e a Penal. O Plenário conta com 32 membros.
Embora a escolha dos ministros venezuelanos seja mais rigorosa do que no Brasil, Cecilia afirma que as indicações não vêm respeitando a Constituição. O Parlamento, responsável por aprovar ou não os nomes indicados em uma lista tríplice, tem se incumbido também de fazer as indicações, o que garante o alinhamento da corte ao ideário de Chaves. A Constituição prevê, no entanto, que além dos requisitos de ser nascido no país, ter reputação ilibada e mostrar notório saber jurídico, os membros da corte suprema tenham advogado por no mínimo 15 anos, tenham título acadêmico em Direito ou sido professores em Direito por 15 anos. Já os magistrados indicados precisam ter sido juízes pelos mesmos 15 anos, na especialidade da seção a que almejam.
Hoje com 56 anos, Cecilia Sosa Gomez trabalha como advogada. Além da experiência no Judiciário, ela também passou por tribunais administrativos e exerceu funções públicas em pelo menos três Ministérios. Formou-se em Direito em 1967 e ganhou o título de doutora em Ciências Administrativas pela Sorbonne, a conceituadíssima Universidade de Paris. Otimista, ela ainda aposta em mudança de ares no regime chavista, no que a entrada do país no Mercosul pode ajudar.
Leia a entrevista:
ConJur — Quais os principais problemas enfrentados pela Corte venezuelana?
Cecilia Sosa Gómez
Até a mudança constitucional feita em 1999, havia, como em quase todos os países da América Latina, um Conselho Administrativo, e uma "cabeça judiciária", que era a Corte Suprema, o nosso Tribunal Supremo de Justiça. Toda a gestão de administração, assim como todo processo de decisão e tudo o que tinha a ver com disciplina era unificado dentro do Tribunal Supremo. A experiência não foi muito satisfatória, porque nem todos os juízes sabem administrar. Como colocar em um órgão colegiado a criação de políticas para todo o corpo judiciário? Atualmente, quase todos os juízes, sejam titulares ou não, estão submetidos às decisões do Tribunal Supremo. Há poucos dias foi publicada uma lei que coloca o controle de todo o sistema judiciário nas mãos do governo. É a Lei Orgânica do Sistema de Organização da Justiça. O sistema é gerido por uma comissão com nove membros, cinco dos quais respondem a órgãos do governo que não fazem parte do Judiciário. Somente quatro são da Justiça, vindos do Tribunal Supremo, do Ministério Público e da Defensoria Pública. Essa comissão fixa os horários das audiências e todos os recursos orçamentários. Não sabemos qual será o destino da autonomia e independência do Poder Judiciário quanto à sua organização e ao seu funcionamento. A lei está sendo questionada pela presidente do Tribunal Supremo [magistrada Luisa Lamuño], e pelo Ministério Público.
ConJur — Pode haver intereferência nos processos?
Cecilia Sosa Gómez
Estamos passando por uma fase muito difícil, pela falta de autonomia e independência do Poder Judiciário. Quando se dá poder para mexer com os horários das audiências e com os orçamentos, de certa forma também se abre espaço para a revisão das sentenças. Tudo vai poder ser questionado. O próprio Tribunal Supremo pode ser alvo, porque estão reformando a lei da Corte. Podem tirar ou colocar mais atribuições, até mesmo alterar o número de magistrados. Eu suspeito que o número será reduzido, e irão certamente tirar aqueles que não estão colaborando com o processo revolucionário.
ConJur — Como tem sido a escolha dos membros do Tribunal Supremo?
Cecilia Sosa Gómez A nomeação deve ser feita como estabelecido na Constituição Federal, mas isso quase nunca é cumprido. Os magistrados deveriam ser designados conforme uma lista tríplice, e essa lista não pode ser escolhida pela Assembleia Nacional. Porém, todas as indicações e nomeações dos magistrados foram feitas pela Assembleia. Logicamente, houve uma preferência pelos magistrados que fazem parte do processo revolucionário nas últimas nomeações.
ConJur — Cortes constitucionais de diversos países têm buscado uma integração, para troca de experiências e informações. Essa falta de independência pode trazer dificuldades para a Suprema Corte venezuelana interagir com as demais?
Cecilia Sosa Gómez Da parte da Venezuela, não acredito que haja dificuldades. O problema é se as outras Cortes estão dispostas a sentar com magistrados que não obedeçam a uma estrutura autônoma e independente. Deveria ser criado um critério de integração para o país entrar nessa rede de Cortes constitucionais, que pode ser a obediência ou não a valores democráticos. É o mesmo problema da cláusula democrática em relação ao Mercosul. Enquanto fui presidente da Corte, participei de duas cúpulas das Cortes Supremas das Américas. Os ministros do Brasil tiveram um papel importantíssimo. O objetivo desses encontros era resolver problemas comuns, não somente ligados à autonomia e independência, mas também a questões práticas, como os processos de extradição, em que há vários critérios distintos. Precisamos caminhar para que não seja mais necessário o traslado do indivíduo de um país para o outro. Mas a corte da Venezuela não se preocupou mais com esses temas. Isso deveria ser recuperado e renovado.
ConJur — Do ponto de vista dos direitos humanos e da liberdade de expressão, em que a Venezuela teria que se adaptar para se equiparar aos demais países?
Cecilia Sosa Gómez O tema dos direitos fundamentais, em particular o da liberdade de expressão, está sendo reescrito na Venezuela. É um dos aspectos mais irritantes para o resto dos países do continente. O presidente da República decidiu que a Venezuela será um país com um sistema político socialista, mesmo que sua Constituição diga que a nação é um Estado Democrático de Direito, social, de justiça etc. Isso não quer dizer que não existe liberdade de expressão no país. Eu falo na televisão, dou aulas e conferências, mas os jornalistas que divulgam esse material estão isolados dos temas oficiais. Eu explico. O governo diz que existe liberdade de expressão porque as pessoas podem falar, porque o professor fala, o jornalista fala, qualquer um pode falar livremente com outro venezuelano. A Você só não pode entrevistar alguém que não seja venezuelano para falar de temas internas. Isso é claro. Mas a a impensa cosniderada de oposicão não pode fazer a cobertura de atos oficiais. Salvo os meios de comunicação do Estado, é proibido o acesso de jornalistas aos locais onde o presidente fala e eles não podem entrevistar ministros. Essa é a pior forma de controlar a liberdade de expressão e também de informação. Agora, se está criminalizando a informação, ou seja, estão detendo pessoas que falam o que o governo considera "crítica insana". A "preferência" é por jornalistas dos meios privados. Em consequência, os padrões internacionais em matéria de direitos humanos, de liberdades, de propriedade particular e da educação não são respeitados. Está tudo fora do Direito Constitucional.
ConJur — Esses procedimentos são autorizados pela Constituição?
Cecilia Sosa Gómez Não. Tentou-se uma reforma, mas ela foi rejeitada. Mesmo assim, essas coisas acontecem de fato.
ConJur — O país vive então em uma espécie de regime de exceção?
Cecilia Sosa Gómez Na Venezuela não existe democracia, porque os elementos fundamentais, inclusive da Carta Democrática, não estão presentes. Não temos autonomia e independência em algumas categorias, nem temos a aplicação do regime econômico de natureza constitucional, em que o Estado e a iniciativa privada concorrem para o bem-estar da população. Não temos cumprimento dos direitos fundamentais, salvo sob critérios entendidos pelo governo. Liberdade de expressão só existe para defender as ideias e ações do governo. Nós temos um presidente eleito, mas como diz o artigo 3º da Carta Democrática [a Constituição venezuelana], ele não obedece aos parâmetros de um sistema político democrático. Ao contrário, ele obedece ao sistema político chamado socialista, que quer isolar a propriedade privada, suprimindo-a pelo tempo considerado necessário, com o objetivo de dar ao Estado os meios privados de produção. Como alguém pode dizer que a Venezuela é uma democracia, ainda que parcial ou limitada, quando as leis impõem reformas rejeitadas pelo povo? Nem sequer somos uma democracia participativa, que foi a bandeira levantada por Chavez.
ConJur — As normas editadas pelo Executivo não são enfrentadas pela Corte Constitucional?
Cecilia Sosa Gómez Não é isso. O controle concentrado está estabelecido pela Constitiuição na Venezuela da mesma forma que aqui. A Sala Constitucional do Tribunal Supremo tem competência para declarar a inconstitucionalidade de leis e de atos publicados pelo governo, de acordo com a sua natureza. Não é que os advogados e as partes afetadas não tenham exercido seu papel de ajuizar ações, mas todas as leis foram declaradas constitucionais. Isso dá legitimidade aos atos do Executivo. A mesma coisa acontece com pessoas que tiveram propriedades tomadas pelo Estado, mas não receberam indenização. O governo não perde casos nas instâncias judiciais.
ConJur — Então, quando o Estado é réu, a Justiça não é cega?
Cecilia Sosa Gómez É revolucionária. É tão revolucionária, que se você entrar na página eletrônica do Tribunal Supremo da Venezuela, e buscar o discurso de abertura do ano judiciário de 2009, você vai confirmar que a política do Supremo é aquela estabelecida pelo plano nacional do governo de 2007-2013. O plano diz que o país é um Estado socialista que busca a felicidade do povo, e que vai expor e acabar com a desigualdade social. As sentenças que sustentam a análise de constitucionalidade das leis seguem a teoria política vigente. Está claro que os magistrados eleitos pela Assembleia, que queria revolucionários, efetivamente obedecem essa orientação.
ConJur — Como um magistrado pode trabalhar seguindo duas "Constituições" distintas, uma escrita e outra prática?
Cecilia Sosa Gómez Manipulando aquela que está escrita, que é vigente. Imagine a responsabilidade futura de todos esses funcionários.
ConJur — Em Honduras, o presidente Manuel Zelaya foi deposto por tentar alterar a Carta Democrática. Isso seria possível também na Venezuela?
Cecilia Sosa Gómez — O procedimento existe. A responsabilidade pessoal do presidente por violação do direitos humanos, por exemplo, está expressa na Constituição. Mas qual é o tribunal e qual é a assembleia que dirão que o caso é de processo? É justamente para não correr esse risco que o governo quer diminuir o número de magistrados no Tribunal Supremo. Mas o problema de Honduras não é tão simples. Não se seguiu estritamente o procedimento constitucional. A Constituição de Honduras consagra que o Congresso tem atribuição de declarar que o presidente da República pode ser levado a juízo, e a Corte Suprema tem a função de declarar se existe ou não condições para o processo. Mas nada justifica militares batendo à meia-noite na porta de um presidente para levá-lo de avião para fora do país. Não houve cumprimento formal do procedimento consitucional. Isso não quer dizer que Zelaya não tenha infringido a Constituição fazendo a propostas que fez.
ConJur — Uma Constituição que não é cumprida pelo próprio Estado, leis que afrontam princípios fundamentais, decisões tendenciosas da máxima instância do Judiciário. Como ficam a segurança jurídica e a jurisprudência nesse cenário?
Cecilia Sosa Gómez — A segurança jurídica não se baseia somente em leis ou ditames, mas em regras claras de conduta para qualquer pessoa. Se direitos constitucionais são manipulados para facilitar ou favorecer um setor da população em detrimento de outro, obviamente que a segurança jurídica é ausente. Some-se a isso a insegurança pessoal, que também está crescendo. O poder está concentrado em uma só pessoa, e os venezuelanos estão preocupados com o avanço desse processo. A preocupação internacional dos investidores, felizmente, tem influenciado nesse processo que é interno. Pode-se colocar um pouco de ordem no tema democrático, amenizar os incidentes, as criminalizações, manter o direito a greve, manter os sindicatos, deter um pouco este desejo do Estado de ser proprietário de tudo. É possível que as tensões possam ajudar a tranquilizar esse processo, mas internamente não é fácil parar.
ConJur — Com um Poder Executivo tão forte, como ficam direitos como os de sigilo bancário, telefônico e à propriedade?
Cecilia Sosa Gómez — Acabaram de reformar o Código de Processo Penal. Um artigo diz que o Ministério Público, em tempo real, pode ter acesso a escutas de todos os clientes bancários. Os bancos agora são obrigados a ter sistemas que permitam essas gravações. Ou seja, não é o caso de bancos gravando conversas para identificar crimes de lavagem de dinheiro, mas simplesmente para apresentarem as escutas assim que o Ministério Público pedir, mesmo sem ordem judicial. As empresas de telecomunicações também são obrigadas a ter esse sistema.
ConJur — E a propriedade privada?
Cecilia Sosa Gómez — Uma lei recente já aprovada trata de terras urbanas, e dá ao Estado o direito de preferência para comprá-las. A sua disponibilidade para venda depende da autorização ou não do governo. É uma violência governamental que usada tanto pelo Poder Legislativo, que cria leis de acordo com o novo sistema político, qunto pelo Tribunal Supremo, que legitima qualquer das decisões judiciais dadas em favor do Estado. Ao mesmo tempo, o governo usa o Ministério Público para propor leis que afirmem que a soberania está acima da liberdade de informação. É uma operação conjunta.
ConJur — Com a participação da polícia?
Cecilia Sosa Gómez — Sim, assim como das Forças Armadas. Os militares entram nas propriedades, invadem as empresas, e reprimem as manifestações. Não há limite para a demonstração de força, que intimida a população para que não reaja. O governo foi muito hábil em dizer que os prejudicados são a classe média, quem conseguiu chegar à universidade, e não as pessoas que não têm recursos. Chávez polarizou, dividiu a sociedade, esquecendo que toda classe média vem de baixo. Isso gerou uma ruptura. Se ele aprova uma lei contra a propriedade, as pessoas que estão mais embaixo não se importam. Existem níveis da sociedade que estão totalmente por fora. O que eles querem é receber a comida mais barata, e uma moradia. É justamente onde Chávez opera, já que as instâncias mais baixas da sociedade não recebem informação sobre democracia. Para eles, isso tudo não significa nada. Além disso, a verdadeira realidade venezuelana é bastante desconhecida, porque o Chávez é muito charmoso, encantador, diz que faz tudo por amor. Pelo menos até que algum jornalista pergunte coisas de que ele não goste. Aí ele perde seu caráter mais doce.
ConJur — A Venezuela ainda tem interesse em fazer parte do Mercosul. Isso é possível nessas condições?
Cecilia Sosa Gómez — Não é que o Mercosul não quer que a Venezuela entre, é que o comportamento da Venezuela, politicamente falando, repercutiu no Mercosul. Levando-se em consideração a cláusula democrática como condição para a entrada dos países no bloco, pode-se dizer que a Venezuela, com as mudanças que vem fazendo, não tem mais interesse no Mercosul, ou mudou sua estratégia com relação à integração. A única saída é melhorar sua imagem internacional, demonstrando que seu código de conduta voltou aos parâmetros democráticos. Chávez disse que a democracia representativa é coisa do passado. Para ele, agora somos socialistas do século XXI.
ConJur — A mudança teria de envolver uma reforma eleitoral?
Cecilia Sosa Gómez — Sim. É trágica a existência de um partido único, o partido do Estado. Quem não pertence ao partido não tem os benefícios sociais, não pode trabalhar em lugar nenhum, não tem nada. É como um pária.
ConJur — O presidente Hugo Chávez não conseguiu apoio popular na última vez que propôs mudanças na Constituição, em um plesbiscito. Diante da derrota política, existe risco de golpe de estado?
Cecilia Sosa Gómez — Não. Acredito que Chávez vai terminar seu mandato em 10 de janeiro de 2013. Seu próprio movimento precisa de renovação. As pesquisas com a população mostram que as pessoas estão cansadas do radicalismo. As pessoas querem viver em paz, melhorar suas condições de vida, ter seus direitos satisfeitos. A retórica política permanente acabou gerando cansaço, inclusive nas pessoas que seguem o presidente de maneira muito forte. Existe a necessidade de uma direção mais eficiente, para além do aspecto ideológico. Mais eficiente, mais disciplinada, mais transparente e mais participativa.
ConJur — A ministra foi a primeira mulher presidente de uma Corte Suprema nas Américas. Como foi o desafio?
Cecilia Sosa Gómez Já havia uma mulher na Corte venezuelana quando eu entrei, mas fui a primeira a presidir o tribunal. A experiência foi muito interessante, porque estava rodeada de homens. Éramos quinze magistrados, e doze eram homens. Não foi fácil. Havia casos um pouco complexos, como o do então presidente Carlos Andrés Pérez [afastado do cargo num processo de impeachment depois de cumprir dois mandatos, entre 1974 e 1979, e 1989 e 1993], e nenhum magistrado queria anunciar publicamente o resultado da sentença de condenação. Ele chegou preso. Devem ter pensado: "vamos colocar uma mulher na presidência para ver como ela se vira. Vamos ver se rende mais que um homem".
ConJur — Como a ministra ganhou a confiança dos colegas?
Cecilia Sosa Gómez Influenciou bastante a receptividade da equipe de trabalho. Nós éramos aproximadamente 500 pessoas. Desde que entrei na Corte, fiz muito por melhorias salariais, pela segurança, pela saúde e pela alimentação. O ambiente também era propício para alguém que não sentencia simplesmente, mas também gerencia. Isso acabou até influenciando os magistrados de última instância.
ConJur — A magistratura sempre foi seu objetivo?
Cecilia Sosa Gómez — Desde que me formei, eu queria ser juíza de menores. Fiz todos os cursos para ser juíza. Já faz muito tempo, não vou te dizer quanto (risos), mas na época havia apenas seis vagas para juízes de menores em todo o país. Eram ocupadas todas por juízas, muito competentes, que exerceram a função até o fim de suas vidas. Por isso, minhas chances acabaram totalmente frustradas. Decidi, então, entrar na administração pública.
ConJur — Como chegou à Corte?
Cecilia Sosa Gómez — Fui advogada, advogada chefe, chefe de divisão, chefe de seção. Passei 15 anos na administração pública. Fazia um trabalho junto com a Universidade Central da Venezuela. Trabalhei nos Ministérios do Planejamento, de Meio Ambiente e de Recursos Naturais. Depois, fiz doutorado na França, voltei e me dediquei à pesquisa na universidade. Dirigi um centro de pesquisas na Universidade Católica e comecei minha carreira acadêmica. Depois, tive a oportunidade de ser co-juíza, uma espécie de juiz convidado, de um tribunal administrativo, o segundo mais importante, logo abaixo do Tribunal Supremo. Pediram que eu preenchesse o quinto posto de uma lista de suplentes dessa corte. Como a sorte sempre me acompanhou, os quatro primeiros não aceitaram o cargo e eu passei a integrar esse tribunal, onde fiquei por quatro anos, chegando a presidi-lo. Enquanto estava lá, em 1989, me propuseram uma vaga na Corte Suprema. Foram 11 anos na função, quatro como presidente.
ConJur — No Brasil, tivemos a experiência recente de ter a primeira presidente mulher no Supremo Tribunal Federal, a ministra Ellen Gracie. Ela também deu especial atenção à administração da Justiça, principalmente porque foi também presidente do recém criado Conselho Nacional de Justiça, que fiscaliza o Judiciário. A senhora acha que a mulher tem uma capacidade administrativa maior na Justiça?
Cecilia Sosa Gómez Em todos os âmbitos, também na administração privada, a mulher ocupou espaços pelos mesmos motivos. Ela sabe lidar muito bem com as limitações econômicas e é muito apaixonada pelo seu trabalho. O trabalho não é uma tarefa, é uma conquista. É uma visão um pouco mais comprometida. E os homens também gostam de trabalhar com mulheres que tenham essa força.

Revista Consultor Jurídico, 18 de outubro de 2009

 

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