quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Artigo: Lei, cotidiano e cidade. Polícia civil e práticas policiais na são paulo republicana (1889-1930)(1)

Já não era sem tempo ver publicada a tese de doutorado de Luís Antônio Francisco de Souza, defendida, em 1998, no programa de pós-graduação em Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. O livro é versão atualizada e revisada da tese e é leitura obrigatória para iniciantes e iniciados nos dilemas da segurança pública brasileira.
O que primeiro chama a atenção na obra é a extensa quantidade de inquéritos e processos-crime analisados, 742 ao todo, para desnudar as diversas representações de justiça presentes no sistema policial paulista.
O autor busca compreender o emaranhado processo de formação da Polícia Civil e suas tortuosas práticas de investigação, que mesclavam desde a racionalidade técnico-científica de uma incipiente profissionalização e o respeito ao devido processo legal, com condutas inquisitoriais violentas que objetivavam não mais que a formação da culpa do suspeito através do inquérito policial. Dessa forma, a modernização da estrutura policial do período não foi suficiente para coibir condutas arbitrárias tradicionalmente enraizadas no cotidiano policial, situação que persiste na atualidade.
A obra está dividida em quinze capítulos subdivididos em três grandes temáticas, cada qual com cinco capítulos. A primeira trata da lei e da ordem na sociedade republicana. Nesse momento, é feita revisão bibliográfica sobre o tema polícia e sobre a Primeira República de modo a situar o leitor no contexto histórico da sociedade brasileira marcada pela exclusão e pela estigmatização social, em que a polícia era responsável por cercear liberdades de indesejáveis sociais como vadios, mendigos, ébrios, prostitutas, turbulentos, grevistas e anarquistas. A legislação constitucional e penal, bem como o sistema de administração da justiça e a função da polícia nesse conjunto, também passam pelo crivo do autor.
A segunda temática envolve a Polícia Civil e o policiamento cotidiano, em específico. Demonstra o vasto campo de atuação da polícia, desde a investigação e fiscalização municipal à coleta de impostos e aplicação de multas. Trabalha o processo de profissionalização que culminou na formação da polícia especializada em determinadas investigações, perícias, diligências, identificação criminal para a constituição do inquérito policial. Verifica, entretanto, junto aos procedimentos técnico-científicos, a perpetuação de subcultura policial ligada a práticas arbitrárias e violentas.
Aborda, ainda, as animosidades existentes entre a Polícia Civil e a Força Pública, pois, em certos casos, o destacamento da Força Pública, que deveria estar à disposição do delegado, resistia em acatar suas ordens, por exemplo. Nesse contexto, a falta de ações coordenadas e conjuntas entre as instituições fragilizava o sistema de segurança pública como um todo.
Além disso, mostra como certas artimanhas do inquérito dificultavam a formação de provas ou mesmo livravam policiais acusados de cometer crimes, pois era comum nas delegacias intimar soldados e policiais para deporem como testemunhas de defesa, quando o acusado era policial, ou como testemunhas de acusação, quando o acusado era um cidadão comum.
A terceira temática trabalha a tarefa de investigação para a realização do inquérito sobre os crimes que mais incomodavam a sociedade da época: homicídios, crimes sexuais, furto, roubo e vadiagem, para demonstrar como, em muitos casos, a técnica era substituída por ações inquisitoriais que prefiguravam a culpa do indivíduo e deixavam para trás o devido processo legal.
Dessa forma, havia uma verdadeira judicatura policialnas delegacias da Polícia Civil, devido à existência de um funil entre o número de inquéritos abertos, de denúncias acolhidas pelo Ministério Público e de sentenças proferidas pelo juiz, segundo o autor. Esse papel extralegal da polícia tinha por função resolver um caso através da violência, da corrupção, da fabricação de provas, por exemplo.
É interessante notar a confluência de valores entre a sociedade republicana urbana e a polícia, ambas queriam ver a cidade protegida contra focos de desordem. Como a Polícia Civil era a principal instituição do aparato repressivo, passou a ser remodelada, reaparelhada e profissionalizada, tendo seus poderes de atuação ampliados para ser efetivo instrumento de controle social e moral dentro da expansão e da riqueza urbana. Ao lidar com os indesejáveis não precisaria necessariamente ter de abrir mão dos tradicionais ilegalismos, já que o sistema de vigilância e de punição implantado pela polícia estava essencialmente voltado para as camadas mais baixas da população.
A profissionalização da Polícia Civil foi marcada por inconsistências, pois mesmo a exigência de bacharelado em direito para o cargo de delegado poderia ser quebrada com a existência do cargo de subdelegado leigo, nomeado por motivos políticos e que estavam quase sempre atrelados aos interesses de políticos locais.
Os inquéritos policiais da época revelam que as pessoas não eram consideradas portadoras de direitos fundamentais. A defesa apresentada pelo indivíduo era negligenciada, provas e testemunhos eram configurados de forma a dar coerência e embasamento legal a uma possível condenação judicial. Como no inquérito não havia o contraditório, o suspeito poderia ser envolvido no caso sem mesmo ter prestado declarações. Nos casos de vadiagem, furtos e roubos o inquérito tomava ares de instância julgadora e punitiva.
Nesse ponto, compreende-se melhor a convivência pacífica entre a busca pelo aprimoramento das técnicas investigativas e a prática de arrancara confissão. Assim, a existência desse descompasso entre a formalidade dos procedimentos legais e a prática policial cotidiana precisa ser analisada ao mesmo tempo pelas peculiaridades institucionais da polícia e também pelas particularidades da sociedade na qual está inserida, pois a sociedade brasileira tende a tolerar abusos. Portanto, a instituição policial foi e ainda é, em muitos momentos, reflexo das limitações democráticas e instrumento da violência ilegítima do Estado contra a população, os conhecidos suspeitos em potencial.
Como bem conclui Luís Antônio Francisco de Souza, “Na Primeira República, portanto, as autoridades policiais não resolviam crimes, ou desmascaravam criminosos; não inquiriam para encontrar a verdade, tendiam a fazer o suspeito cair numa armadilha. A polícia não investigava, fabricava confissões; não promovia justiça, justiçava. Os frequentadores habituais das delegacias de polícia eram, em sua grande maioria, pessoas que não dispunham de meios para fazer as pesadas rodas da justiça girarem. O baixo acesso à justiça dos tribunais e dos juízes togados corria de par com o uso discricionário do inquérito policial. A polícia era a justiça possível para parcelas consideráveis da população, seus maiores clientes, também suas maiores vítimas” (p. 455).
Esta obra, portanto, interessa não somente aos que trabalham especificamente com a Primeira República, mas também a todos os que desejam ver nosso sistema policial e de justiça reformados em suas práticas cotidianas.
NOTAS
(1) SOUZA, Luís Antonio Francisco de. Lei, Cotidiano e Cidade. Polícia Civil e Práticas Policiais na São Paulo republicana (1889-1930). São Paulo: IBCCRIM, 2009 (Monografia, 53). 


Thaís Battibugli, Doutora em Ciência Política (USP). Mestre em História Social (USP). Professora do Centro Universitário Padre Anchieta (UniAnchieta - Jundiaí)


BATTIBUGLI, Thaís. Lei, cotidiano e cidade. Polícia civil e práticas policiais na São Paulo republicana (1889-1930). Boletim IBCCRIM : São Paulo, ano 17, n. 203, p. 06, out., 2009.
 

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