Recorrentes na mídia são as notícias de intervenção policial, inclusive com a lavratura do auto de prisão em flagrante, em atitudes praticadas principalmente por mães desorientadas ante a ausência de recursos financeiros e que acabam por optar, se é que há outra opção, por subtrair produtos alimentícios para ver saciada a fome própria e a de sua prole.
Casos como esses se acomodam na excludente de antijuridicidade consistente no estado de necessidade (artigo 24, CP). Por circunstâncias não desejadas, a cidadã, responsável pela manutenção familiar, vê-se impelida a investir contra patrimônio alheio para romper a lamentável e absurda privação e situação de penúria por que passa[1].
Tais condutas comumente ocorrem em grandes estabelecimentos empresariais dotados de modernos sistemas de vigilância que acabam por abarcar todo o complexo comercial. Torna-se, na maioria dos casos, impossível a perpetração da empreitada em tese delitiva, pois o monitoramento é de tamanha eficiência que a pessoa é vigiada desde o momento de sua entrada na loja. Dessa forma, sua conduta jamais desencadeará a consumação do crime.
A incapacidade de ludibriar o sistema de vigilância torna o meio elegido pela agente absolutamente ineficaz. Reside aí uma hipótese do que se convencionou chamar de crime impossível (artigo 17, CP) e a consequência legal imediata é a ausência de punição para a tentativa[2].
Ocorre que, conforme o sistema processual penal pátrio, não é dado à autoridade de Polícia Judiciária manifestar sua percepção intelectual sobre o Direito Penal material e formal, limitando-se a realizar mera verificação de adequação típica existente entre a conduta levada a seu conhecimento e algum tipo penal. ‘Deve’ ela então: 1º- lavrar o auto de prisão em flagrante, pois não se trata de infração de menor potencial ofensivo; 2º- remeter a pessoa conduzida ao cárcere, sendo que não poderá arbitrar fiança porque a pena cominada ao furto é de reclusão, portanto somente o juiz poderá fazê-lo (reside aí um paradoxo: se a pessoa não possuía condições financeiras favoráveis à subsistência familiar será que terá para o resgate da contracautela?!), e; 3º- como última providência, instaurar e presidir o inquérito policial respectivo.
Seguindo aquela ordem de atos, inicialmente, coloca-se em xeque a finalidade da clausura cautelar. A subtração foi motivada pela premente necessidade de satisfazer a apetência da perpetradora ou a de seu(s) filho(s). O recolhimento, então, mostrará à agente que ‘não se deve subtrair coisa alheia móvel para satisfação de necessidades básicas, ainda que de ínfima importância para seu titular, devendo esperar por um milagre ou comportar-se de maneira “socialmente aceitável” (ex: mendigando por alimento) e resistir ao pranto de uma criança que não consegue conceber por qual motivo veio a este injusto mundo civilizado’.
De acordo com o nosso sistema, é preferível o desencadeamento de atos destinados à formalização do inquérito policial e sua remessa ao Poder Judiciário para que, após a manifestação do Parquet, se conclua pela presença inarredável da figura do estado de necessidade ou da tentativa inidônea (crime impossível) e se determine o respectivo arquivamento dos autos e a soltura da pessoa indiciada.
Além dos custos de toda a movimentação das máquinas do Executivo, do Judiciário e do Ministério Público, restam patentes os desgastes e abalos psicológicos suportados, desarrazoadamente, pela mãe conduzida ao cárcere e por sua família.
Remanesce visível, outrossim, a insignificância de eventual prejuízo que a vítima possa vir a sofrer. Certamente a conduta atentatória ao patrimônio causar-lhe-á transtornos, contudo de significados inexpressivos, não sendo a seara criminal a via adequada para a solução do problema. Afinal a repreensão da conduta por intermédio de uma sanção de natureza penal, além de em nada contribuir para situação comiserativa daquela cidadã, apenas provocará ampla indignação da comunidade que sopesará o generalizado sentimento de impunidade em relação aos crimes do colarinho branco, por exemplo, com a resposta estatal dada ao caso motivado pela escassez alimentar.
São vários os julgados que reconhecem a incidência de institutos destinados a retirar da órbita criminal exemplos como esse. Delmanto (2000, p. 312/313) cita alguns:
“Quem tenta furtar um quilo de carne, não visa a aumentar seu patrimônio, mas age por fome, afastando a ilicitude pelo estado de necessidade (TACrSP, Julgados 86/425). Idem, no caso de uma pizza grande arrebatada pelo entregador (denúncia rejeitada) (TACrSP, RT 615/312), ou em supermercado, por agente gestante e família na penúria (TACrSP, Julgados 82/206), ou ainda, no caso de um galo e duas galinhas (também pelo princípio da insignificância) (TAPR, PJ 43/274).”
A inexpressividade do resultado, admitida, em tese, numa gama infinita de crimes contra o patrimônio praticados sem grave ameaça ou violência à pessoa, enquadra-se com perfeição na hipótese de furto famélico. Os subsequentes excertos, apesar de não tratarem especialmente da situação ora sob enfoque, retratam mais uma orientação prático-doutrinária regrada pelo princípio da intervenção mínima do Direito Penal:
“Valor inexpressivo: não é furto a subtração de bagatela, sem a menor repercussão no patrimônio (TACrSP, Julgados 75/229). Se o valor é juridicamente irrelevante, absolve-se pelo princípio da insignificância, que elimina a antijuridicidade (TARS, RT 582/386). Caracterizada a pequenez do valor do furto, há exclusão da tipicidade, concedendo-se habeas corpus de ofício (STJ, RT 721/537).” (DELMANTO, 2000, p. 315)
Interessante é que se costuma a identificar na pessoa do delegado de polícia a figura de uma autoridade. Se assim o é, tem, portanto, o “direito ou poder de ordenar, de decidir, de atuar, de se fazer obedecer” (primeira acepção do termo “autoridade” – Dicionário Houaiss). É, identicamente, um “especialista de reconhecido mérito em dado campo de conhecimento” (sexta acepção do termo), qual seja, no mínimo, em Direito Penal e Processual Penal, ao menos em tese. Contudo, o é também um delegatário do Estado com atribuições legalmente limitadas.
No Código de Processo Penal, as funções do delegado de polícia encontram-se sintetizadas no artigo 4º, caput: “A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria”.
O objetivo da atuação da autoridade policial é de colher elementos suficientes a embasarem eventual ação penal. Contudo, quando a inviabilidade desta é patente e resulta de um simples processo de verificação da existência de uma subtração, “de coisa alheia móvel”, para a satisfação da carência de alimentos, corroborada por outros dados fático-jurídicos (ex: elementos consubstanciadores do crime impossível), o desempenho da atividade policial na forma limitada pelo artigo 4º supracitado consistiria em verdadeira claudicação moral e absurdo apego ao legalismo literal que em nada contribui para a “pacificação social”.
O Estado se faz presente por intermédio de uma grandiosa estrutura organizacional responsável pela segurança pública (artigo 144 da Constituição Federal). O dispêndio decorrente do exercício funcional dessa estrutura somente se justifica quando há possibilidade de séria e fundada retribuição ao fato cometido, baseada na necessidade e proporcionalidade o que, ab initio, não se identifica no furto famélico.
O bom senso não deve ser afastado da atividade persecutória. Esta, presidida por um ser dotado de atributos intelectuais, é reinada por princípios e propósitos que somados estruturam o comportamento racional da autoridade. Em um Estado Democrático de Direito fundamentado na dignidade da pessoa humana é inadmissível a automatização do exercício do ‘poder-dever’ delegado, pois seres humanos devem ser tratados como tais pelos únicos capazes de laborar com a compreensão exigida pela situação de miséria, abandono e humilhação que motivou a subtração, isto é, por seus semelhantes, ainda que encarnados como representantes de um ente despersonificado.
Portanto, ou se realiza uma releitura do artigo 4º do Código de Processo Penal, ou corre-se o risco de continuar a ratificar o simbolismo representado pela presença da autoridade policial na presidência de atos investigativos e que acarretará, como tem acarretado, em consequências devastadoras para os envolvidos diretamente no caso noticiado, para a sociedade e para a comunidade jurídica.
Não se pretende afastar do conhecimento da autoridade judicial e tampouco do controle pelo representante do Parquet de qualquer notitia criminis baseada em dados fáticos indicativos de suposto furto famélico. Dotar a autoridade policial de poderes suficientes para deliberar sobre o desencadeamento dos tradicionais atos inquisitoriais em casos tais não significa que permanecerá a sua orientação como a “palavra final”. Qualquer postura deverá ser motivada. Se verificada a hipótese de furto famélico, é imprescindível todo o registro dos dados e elementos consubstanciadores e posterior envio ao órgão judicante para que a autoridade respectiva, após manifestação do Ministério Público, decida pelo “arquivamento” ou não das peças informativas.
Notas:
[1] Evidente que é tratada no presente estudo a hipótese de verdadeiro furto famélico, isto é, presentes todos os requisitos imprescindíveis à sua configuração, tais como, a premente necessidade e a inexistência de forma diversa para sua satisfação. Contudo, sabe-se o quão recorrentes são as tentativas da defesa em ver reconhecida a mencionada situação comiserativa em casos de subtração de produtos alimentícios, e até de outros gêneros, mas que não apresenta qualquer indicativo de necessidade alimentar. É o que motiva, inclusive, a diversidade de julgados não identificando hipóteses de furto famélico: TJ-GO, 2ª Câmara Criminal, Apelação Criminal n. 30161-9/213, Processo n. 200602949534, DJ 14934 de 05/02/2007; TJ-MG, Processo n. 1.0079.04.122872-1/001(1), Publicação de 04/11/2008; TJ-MG, Processo n. 1.0702.05.197198-5/002(1), Publicação de 31/05/2008.
[2] Se identificada a relatividade da eficácia do meio elegido, em que não há um sistema de vigilância plenamente apto a monitorar todo o complexo empresarial, como em pequenos e médios estabelecimentos, não há falar em crime impossível. O caso concreto fornecerá elementos para a análise da possibilidade de sucesso na empreitada. Sobre a ineficácia absoluta do meio, transcreve-se o subsequente julgado: “APELAÇÃO. FURTO EM LOJA. CRIME IMPOSSÍVEL. INEFICÁCIA ABSOLUTA DO MEIO. CARACTERIZAÇÃO. Se a res que o acusado pretendia furtar permanece protegida, tornando-se absolutamente ineficaz o meio adotado pelo agente, surge a figura da tentativa impossível. DECISÃO ABSOLUTÓRIA CONFIRMADA". (TJ/GO, Primeira Câmara Criminal, Apelação Criminal nº 19837-3/213, Rel. Des. Elcy Santos de Melo, acórdão de 11/04/2000, DJ 13287 de 28/04/2000)
Referências bibliográficas:
BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Vade mecum. São Paulo: Saraiva, 2008.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Vade mecum. São Paulo: Saraiva, 2008.
DELMANTO, Celso et al. Código Penal comentado. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.
HOUAISS, Antônio. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Versão 1.0. Editora Objetiva. 2001.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE GOIÁS. Jurisprudência. Disponível em:
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS. Acórdãos. Disponível em: < http://www.tjmg.jus.br/juridico/jt_/juris_resultado.jsp?numeroProcesso=&complemento=&acordao Ementa=acordao&palavrasConsulta=furto%20famélico&relator=&dataInicial=&dataFinal=&dataAcordaoInicial=&dataAcordaoFinal=&resultPagina=10&pagina=10&todas=&expressao=&qualquer =&sem=&radical=>. Acesso em: 18.6.2009.
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