O caso Motta Coqueiro, réu executado em 1855, tem sido considerado o último grande caso com pena de morte no Brasil. Descoberto o erro judiciário, nosso imperador ficou muito preocupado, tendo comutado sistematicamente todas as decisões posteriores que chegaram a seu exame. É verdade, também, que o escravo Pilar foi executado depois no Estado de Alagoas, em 1876, o que bem mostra dualidades desde sempre existentes no Brasil. Oficialmente abolida após a Proclamação da República, a pena capital nunca mais foi executada em civis. Posteriormente, a Ditadura de 64 a reviveu com a famigerada Lei de Segurança Nacional de 29/9/1969, embora não tenha sido oficialmente aplicada. No entanto, como se sabe, nessa época muitos foram mortos nos cárceres, sem o devido processo legal, tendo ainda o regime militar deixado um passivo de 426 desaparecidos.
O que isso tem a ver com os dias que correm?
Do Século XVIII até o final da Segunda Grande Guerra, começam a florescer no mundo as chamadas sociedades disciplinares. Trata-se de um período em que a sociedade vê no enclausuramento, com sua partição de espaço prisões, manicômios, hospitais, escolas etc., a operação fundamental para concluir o processo de controle social. Na pós-modernidade, no entanto, as sociedades disciplinarescedem espaço para as chamadas sociedades de controle. Estas são marcadas pela interpenetração de espaços, por uma pretensa ausência de limites definidos (a rede) e pela instauração de um tempo contínuo no qual os cidadãos não conseguem terminar coisa alguma, porquanto enredados numa espécie de dívida impagável com um período contínuo e sucessivo em que os eventos se sucedem e nos escapam. Trata-se da modernidade líquida aludida por Zygmunt Bauman.
O mundo dual da pós-modernidade convive com a sociedade de controle, mas continua a punir com a pena de morte. Os Estados Unidos, a China, Cuba e muitos países da África, Ásia e Oriente Médio, ainda têm a pena de morte como carro-chefe do sistema punitivo. Entre nós, embora não prevista em lei, salvo para casos de guerra declarada (art. 5º, XLVI, “a” da Constituição Federal), a pena de morte na prática persiste. Não são poucas as execuções policiais nos grandes centros urbanos, ou homicídios praticados em cárceres por internos que se prevalecem da ausência do Estado. De tempos em tempos surgem notícias da retomada das atividades de alguns esquadrões da morte O fato é que cidadãos se tornam vítimas de um processo social que não distancia muito o Brasil dos países que têm oficialmente a pena capital.
O 12º Congresso da ONU sobre Prevenção ao Crime e Justiça Criminal será realizado no Brasil, em Salvador, no próximo ano. O IBCCRIM, na retomada do quanto já manifestado em seu primeiro Boletim, quando tratou exatamente do cruento tema, pretende mobilizar operadores do direito, sociedade civil, organizações não governamentais, universidades e entidades de direitos humanos, para uma grande campanha contra a pena de morte, campanha já desencadeada internacionalmente pelo Instituto de Direito Penal Europeu e Internacional da Universidad de Castilla-La Mancha. Será constituída uma rede para discutir o sistema punitivo da nossa sociedade pós-moderna, de tal modo que possibilite grande empenho das nações na busca de alternativas a este tipo bárbaro de punição. Se não for possível uma imediata abolição da pena de morte, que se consiga, ao menos, um compromisso diplomático dos países que a aplicam, com uma moratória imediata e sua proibição taxativa para mulheres, menores de idade e incapacitados. É fundamental discutir um amplo temário que abranja o uso letal da forças de segurança em execuções extrajudiciais; a relação existente entre as religiões e a pena capital; seu pretenso efeito dissuasório; as experiências de abolição; o crescimento da criminalidade violenta.
O IBCCRIM, no próximo mês, iniciará uma série de discussões acerca do tema. Serão realizados seminários preparatórios do Congresso da ONU de 2010, bem como um Painel Especial sobre o assunto para o Seminário Anual do Instituto do próximo ano. Também serão confeccionadas publicações específicas sobre o tema para lembrarmos que — paradoxalmente — a pena de morte ainda está muito viva entre nós.
EDITORIAL: Sobre a pena de morte. Boletim IBCCRIM : São Paulo, ano 17, n. 203, p. 01, out., 2009.
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