Em 20 de fevereiro do presente ano foi expedida, pela Corregedoria-Geral da Polícia Federal, a Orientação Normativa nº 27, com o objetivo de servir de guia aos “dirigentes, corregedores regionais, chefes de delegacias e demais autoridades policiais” de como proceder em relação aos pedidos de vista e extração de cópias dos autos de inquérito policial formulados por advogados, “considerando (...) o procedimento relativo ao pedido de vista de inquéritos policiais previsto no Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei 8.906, de 04 de julho de 1994) e a atual jurisprudência do STF e do STJ”.
Analisando o teor dos oito incisos do referido ato normativo, patente é a violação justamente aos dispositivos que enuncia observar, quais sejam, o próprio Estatuto da OAB, a jurisprudência vinculante do Supremo Tribunal Federal e a Constituição Federal.
Os incisos I e III demandam a apresentação de procuração para o exercício do “direito de consultar o inquérito policial em cartório”. Ao estabelecerem a procuração como requisito para vista dos autos, os dispositivos exigem condição que o art. 7º, XIV da Lei nº 8.906/94 expressamente dispensa, sendo patente, portanto, a ilegalidade daquela exigência(1).
Na mesma linha de desrespeito às prerrogativas profissionais dos advogados, bem como ao exercício do direito constitucional da ampla defesa, os incisos II, III, IV e V da orientação normativa afrontam flagrantemente o enunciado da Súmula Vinculante nº 14 do Supremo Tribunal Federal, ao disporem sobre as medidas a serem adotadas pela autoridade policial para assegurar o sigilo da investigação criminal.
Preveem os referidos dispositivos que ao escrivão do feito será determinado o desentranhamento de despacho e de documentos que façam menção a diligências ainda não cumpridas ou em andamento (II), sendo tais elementos colocados em autos apartados, e somente incorporados depois de finalizadas as diligências (V). Os advogados, mesmo com procuração, terão acesso somente aos dados e documentos já produzidos relativos a seus clientes (III), não sendo concedido acesso a diligências em curso, nem a informações que digam respeito exclusivamente a terceiros, investigados ou não (IV).
Tais dispositivos configuram verdadeira teratologia jurídica, sendo absolutamente inconcebíveis dentro de um Estado Democrático de Direito, cujo texto constitucional assegura o princípio da ampla defesa, da publicidade dos atos da Administração Pública, do postulado do reconhecimento da Advocacia como função essencial à Justiça e a disposição legal das formas dos procedimentos de investigação criminal no Código de Processo Penal.
A previsão de desentranhamento de despacho e de documentos que façam menção a diligências ainda não cumpridas ou em andamento e sua transposição a “autos apartados”, fere evidentemente o disposto no art. 9º do Código de Processo Penal, que expressamente dispõe que “todas as peças do inquérito policial serão, num só processado, reduzidas a escrito ou datilografadas (...)”.
A prevalecer a regra da orientação policial se estará diante de um procedimento amorfo, sem previsão legal, com autos principais e subsidiários, autos de “diligências cumpridas” e “diligências a cumprir”, autos “do passado” e “do futuro”, autos para o “advogado ver” e autos da “investigação em curso”. Na prática, caberá à autoridade policial a livre escolha dos elementos que deseja disponibilizar para a vista do defensor e os que deseja sonegar, não se sabendo ao certo quais diligências estão ainda pendentes de cumprimento, pois haverá inquérito “A” (com vista franqueada a defesa) e o inquérito “B” (com diligências a cumprir, o qual a defesa sequer terá acesso).
Apesar do ato normativo não apresentar os motivos de tal disposição (limitando-se a enunciar a garantia do sigilo da investigação, sigilo esse que não pode ser oposto ao defensor), vislumbra-se a ideia de que caso o investigado tenha ciência de diligências futuras, poderá vir a comprometer seus resultados.
Não se discute que a efetivação de alguns atos investigatórios, por sua própria natureza, dependem da ignorância do investigado acerca de sua existência e andamento, sendo imperioso destacar as medidas cautelares de busca e apreensão e interceptação telefônica. Mas tais diligências somente poderão ser alcançadas através de medidas cautelares já processadas em autos apartados, dispensando-se, portanto, para garantia de seu sigilo e integral cumprimento, qualquer orientação normativa da Corregedoria-Geral da Polícia Federal.
A disposição de que advogados, mesmo com procuração, terão acesso somente aos dados e documentos já produzidos relativos a seus clientes, não sendo concedido acesso a diligências em curso, nem a informações que digam respeito exclusivamente a terceiros, viola frontalmente o princípio da ampla defesa (art. 5º, LV, CF), da publicidade (art. 37, caput, CF) e o próprio enunciado da Súmula Vinculante nº 14 do Supremo Tribunal Federal.
Ultrapassando antiga discussão acerca do reconhecimento ou não da ampla defesa em sede pré-processual, o verbete do Pretório Excelso expressamente enunciou que:”É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa”.
O ato normativo opera uma inegável e indevida restrição de acesso aos elementos de prova pelo advogado que, de acordo com o texto sumular, deverá ser amplo a elementos que digam respeito ao exercício de defesa.
Acesso amplo só pode ser entendido como alcance a todos os elementos produzidos no âmbito da investigação criminal. E diante do conjunto probatório coligido, somente o defensor poderá afirmar e classificar quais elementos serão necessários ou não, e quais serão utilizados para o desempenho e exercício do direito de defesa de seu constituinte. Por esse motivo constitui prerrogativa do advogado o amplo e irrestrito acesso aos autos da investigação criminal, independentemente da existência de elementos concernentes a terceiros.
Os incisos VII e VIII (pedidos de extração de cópias à autoridade deprecante, em caso de precatória, e à autoridade judiciária em caso de segredo de justiça) configuram verdadeiro embaraço ao desempenho da ampla defesa. Criam obstáculos burocráticos à atuação do advogado de forma a desnecessariamente (ou intencionalmente) dificultar-lhe o acesso às informações, buscando em verdade reduzir ou até mesmo inviabilizar a efetividade de sua atuação profissional.
Além de todas essas violações apontadas, há de ser feita menção à manifesta inconstitucionalidade formal da referida orientação normativa, visto que estabelece disposições afetas à lei processual penal que, de acordo com a Constituição Federal em seu art. 22, I, somente poderá ser procedida mediante lei federal.
A orientação normativa configura verdadeira tentativa de burla e, portanto, desrespeito ao enunciado da Súmula Vinculante nº 14 do Supremo Tribunal Federal. Formulada a partir de maldosa e tendenciosa interpretação literal das expressões utilizadas no texto sumular (tais como “no interesse do representado”, “elementos de prova já documentados” e “digam respeito ao exercício do direito de defesa”), a Corregedoria-Geral da Polícia Federal buscou deturpar seu sentido e criar inaceitáveis barreiras e obstáculos ao exercício da ampla defesa e das prerrogativas do advogado.
De maneira primária, tenta aproveitar-se do texto da súmula editada para escancaradamente contrariar todo o comando nela contido. Bate mais forte diante da ordem de não bater. Afronta mais uma vez o Pretório Excelso, tal qual no episódio do abusivo uso de algemas que resultou na edição do enunciado da Súmula Vinculante nº 11 do Supremo Tribunal Federal. Essa malfadada orientação normativa configura eloquente prova da pertinência da iniciativa do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, requerente da edição da súmula, bem como da necessidade de luta cotidiana por sua efetividade, pois afinal a mentalidade policial – e sua visão torta das garantias individuais – continua a mesma.
Nesse ponto, vale lembra as palavras do ministro Celso de Mello em seu voto pela aprovação do verbete:”Ninguém ignora, exceto os cultores e executores do arbítrio, do abuso de poder e dos excessos funcionais, que o processo penal qualifica-se como instrumento de salvaguarda das liberdades individuais. Daí porque se impõe, às autoridades públicas, neste País, notadamente àquelas que intervêm no procedimento de investigação penal ou nos processos penais, o dever de respeitar, de observar e de não transgredir limitações que o ordenamento normativo faz incidir sobre o poder do Estado. (...) O fascínio do mistério e o culto ao segredo não devem estimular, no âmbito de uma sociedade livre, práticas estatais cuja realização, notadamente na esfera penal, culmine em ofensa aos direitos básicos daquele que é submetido, pelos órgãos e agentes do Poder, a atos de persecução criminal (...)” (voto do min. Celso de Mello, PSV 1/DF, aprovação da Súmula Vinculante nº 14, Plenário 02.02.2009, DJ 27.03.2009, DJe 59/2009).
Diante da absoluta incompatibilidade da referida orientação normativa com os princípios constitucionais e infraconstitucionais citados, e a evidente afronta ao enunciado vinculante do Supremo Tribunal Federal, se faz necessária firme atuação de todos os advogados e, especialmente, do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – órgão requerente da proposta resultante na Súmula Vinculante nº 14 – no sentido da imediata revogação do ato da Corregedoria-Geral da Polícia Federal.
NOTA
(1)art. 7º: “São direitos do advogado: (...) XIV - examinar, em qualquer repartição policial, mesmo sem procuração, autos de inquérito, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos”.
Carlos Eduardo Machado, Mestre em Criminologia e Justiça Criminal pela London School of Economics. Membro da Comissão Permanente de Direito Penal do IAB. Advogado criminal
Diogo Tebet, Mestre em Ciências Penais pela Universidade Cândido Mendes/RJ. Membro da Comissão Permanente de Direito Penal do IAB. Advogado criminal.
MACHADO, Carlos Eduardo. TEBET, Diogo. Polícia Federal e a súmula vinculante nº. 14 do STF. Boletim IBCCRIM : São Paulo, ano 17, n. 203, p. 04-05, out., 2009.
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