terça-feira, 7 de abril de 2009

Decisão aborda direito à vida versus liberdade de crença

Quando os direitos se cruzam, o que prevalece? Medicina e religião volta e meia se veem diante deste conflito. Essa questão foi enfrentada pelo juiz da 7ª Vara Cível da Comarca de Campo Grande, Ricardo Gomes Façanha, diante da propositura de uma ação pela Associação Beneficente de Campo Grande – Santa Casa em desfavor da paciente M.N.D de K., a qual, mesmo diante da grande possibilidade de transfusão de sangue, no decorrer de uma cirurgia marcada para tratamento de câncer, recusava-se expressamente a se sujeitar a tal procedimento, baseada em convicções religiosas.

O impasse originou-se quando a equipe médica alertou a paciente sobre a possibilidade de haver complicações durante a realização do procedimento cirúrgico, em especial, no que diz respeito ao “risco de grande sagramento”, o que implicaria a necessidade de transfusão sanguínea.

Todavia, em virtude de sua crença religiosa, a paciente não aceitava submeter-se à transfusão de sangue, apresentando para a equipe médica, até mesmo, um documento que autorizava os médicos a não proceder à reposição volêmica, caso fosse necessário, mesmo havendo risco de morte. E, ainda, o documento isentava o grupo médico de qualquer responsabilidade caso o procedimento levasse à óbito em decorrência da ausência de transfusão. Por esta razão, o hospital recorreu ao Poder Judiciário para determinar que a paciente “suporte/tolere” eventual transfusão sanguínea, no caso de complicações pré e/ou pós operatórias.

Conforme o juiz Ricardo Façanha, a questão posta à apreciação do Juízo não seria novidade, entretanto, segundo ele, “trata-se de discussão das mais tormentosas, na medida em que recai sobre esse tema acalorada discussão acerca da possibilidade de sobreposição do direito fundamental à liberdade de crença religiosa sobre o direito à vida ou vice-versa”.

Nesse sentido, o magistrado que proferiu a decisão ressaltou, inicialmente, que o interesse de agir do hospital decorre da nítida necessidade de "resguardar os direitos dos médicos integrantes da equipe técnica designada para o caso, bem como o próprio direito da entidade hospitalar que poderia responder civilmente por ato de seus prepostos, caso haja conclusão pela não prestação de um serviço que lhe competia levar a efeito – seja por imposição legal ou por vinculação contratual".

O dilema imposto foi, no entanto, resolvido ao se entender que “[...] o direito à vida (CR/88, art. 5º) é o direito individual primordial, de cuja existência dependem os demais direitos fundamentais, dentre eles a liberdade de crença (CR/88, art. 5º, inciso VI), pois aquela figura como o bem jurídico de maior relevância na ordem vigente, sendo, assim, inviolável e irrenunciável, não podendo ser transgredido por terceira pessoa e, menos ainda, por seu próprio titular”.

Assim, como explicou o juiz, entende-se que a liberdade de crença não é absoluta, uma vez que pode encontrar limites em outros direitos fundamentais, sobretudo no próprio direito à vida.

Ademais, fazendo uma correlação com o caso apreciado, o juiz esclareceu que "prevalece, entre nós, o entendimento de que a eutanásia não é juridicamente/constitucionalmente, moralmente ou religiosamente aceitável, seja qual for a justificativa", de modo que não se poderia fazer valer a opção da paciente, diante da indisponibilidade de seu direito à vida.

Por fim, a decisão deixou claro que a intervenção judicial somente se fez necessária porque havia risco de morte à paciente, pois, do contrário, prevaleceria a primeira parte do artigo 46 do Código de Ética Médica (Resolução CFM nº 1.246/88), que veda ao médico "efetuar qualquer procedimento médico sem o esclarecimento e o consentimento prévios do paciente ou de seu responsável legal".

Diante dessa interpretação e com base na jurisprudência já existente sobre o tema é que o juiz autorizou, com fundamento no art. 5º, caput, Constituição da República e art. 46 do Código de Ética Médica, que a equipe de médicos responsáveis pela paciente procedesse, se necessário, à reposição volêmica, bem como a outros procedimentos que se fizerem necessários para o êxito da intervenção cirúrgica.


TJMS

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