“A comissão mostrou que é muito difícil, do ponto de vista geopolítico, modificar as convenções internacionais sobre drogas. Mas mostrou também que há mais espaço para que cada país trabalhe suas próprias políticas. Enxergo uma porta para o futuro, mas uma porta que não deve levar a mudanças nas políticas da ONU”.
A afirmação é da doutora em Direito e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Luciana Boiteux, que participou da mesa de debate "A ONU e a política de drogas”, realizada pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (Ibccrim), em São Paulo. Integrava também a mesa o advogado Cristiano Avila Maronna, doutor em direito penal e diretor-executivo do Ibccrim.
Ambos estiveram presentes na última reunião da Comissão de Narcóticos da ONU, que ocorreu no mês de março, em Viena, na Áustria. O evento reuniu 52 nações que assinaram a Declaração Política que traça a política internacional de combate às drogas para os próximos 10 anos.
Para uma plateia formada majoritariamente por juristas, os dois trouxeram resultados, impressões e avaliações do evento que definiu a postura das Nações Unidas em relação ao controle e combate às drogas para os próximos anos.
“Havia pessoas otimistas, e eu me incluo. Mas não foi lá que as decisões foram tomadas. Todas as decisões fazem parte de uma retórica muito bem articulada, que buscam a manutenção do sistema”, resumiu Luciana. “A ONU transformou o fracasso em novos impulsos para a proibição”, completou Maronna.
Decisões
O documento resultante da conferência indica que o objetivo final da estratégia até 2019 é "minimizar e eventualmente eliminar a disponibilidade e o uso de drogas ilícitas". Para isso, foi traçado um plano de ações que envolve a redução do uso e dependência das drogas, o desenvolvimento de estratégias de diminuição da criminalização do uso, ações de redução da produção ilegal de estimulantes, como as anfetaminas, a cooperação internacional para a erradicação do cultivo e produção de drogas, o combate à lavagem de dinheiro e a cooperação judicial.
Mas para analisar e conseguir clarear os impactos reais de tais decisões, Maronna apresentou o discurso do diretor da Agência da ONU sobre Drogas e Crime (UNODC), Antonio Maria Costa. Na declaração, o dirigente admitiu o fracasso das políticas implementadas pela ONU e colocou que tal resultado provocou uma consequência não intencional do controle: um mercado criminoso que movimenta US$ 300 bilhões por ano. Mesmo assim, salientou que o fracasso e seus consequentes efeitos foram motivados pela implementação inadequada das convenções anteriores e pela ausência de vontade política.
O dirigente da ONU ainda tentou mostrar que, diante das ações de combate às drogas, o mercado acabou se estabilizando, não havendo crescimento do consumo.
Como alternativa, Costa disse que é preciso evitar posições extremas. Um meio termo entre posições de países como a Indonésia que condenam à morte pessoas que portam drogas e o outro extremo que, segundo ele, realiza lobby pró-droga, a favor da legalização.
Para isso, segundo o dirigente da ONU, a saúde deve ser colocada no centro das ações, integrando ações de diversas áreas, resistência comunitária e uso de instrumentos legais. Além disso, a responsabilidade deve ser compartilhada entre todas as nações, todas as ações de combate às drogas devem respeitar os direitos humanos, devem buscar reduzir o uso, a dependência e a produção e precisam combater a lavagem de dinheiro.
Mudanças?
Deixar de utilizar a expressão “guerra às drogas”, falar em colocar a saúde como centro e não transferir a discussão para a Organização Mundial da Saúde (OMS), não incluir no texto final da convenção a redução de danos e tratar de maneira rasteira o uso terapêutico das drogas. Diante de tudo isso, Maronna disse: “A mudança foi cosmética. Na prática continua igual: tolerância zero”.
Segundo Luciana, o modelo definido pela ONU até a última conferência, que ocorreu em 1998, seguia alguns pontos-chave: modelo uniforme, que colocava a droga como ilícita sem levar em consideração a diversidade cultural e adotava em todos os casos o proibicionismo; a repressão por via penal, que normalmente pouco considerou a proporcionalidade; a rejeição de medidas alternativas; e a não priorização do tratamento.
Tal postura levou a ONU a aprovar em 1998 metas como eliminar todo o consumo de drogas até 2008. O slogan final da conferência de 10 anos atrás foi: “Um mundo sem drogas em 2008”.
A não adoção de mudanças objetivas, utilizando-se apenas recursos de discurso, segundo Luciana, não é uma questão de moralismo. “É geopolítica”. Para a advogada, enquanto grandes naçõe, como Estados Unidos, Rússia e China, não mostrarem interesse na mudança de rumo, pouco acontecerá.
Apesar dessa realidade, Luciana lembrou que, mesmo com a aprovação por parte de todas as nações de uma convenção que não rompe com as anteriores, não existe mais consenso entre os países. Uma nota assinada por 26 países, entre os quais Alemanha, Portugal, Espanha, Austrália, Bolívia, Espanha, Bulgária e Suiça, e que foi anexada à Declaração Política, registra que os governos interpretarão o trecho "serviços de apoio relacionados" - que está incluido na Declaração - como "redução de danos".
Redução de danos é como está sendo chamado o conjunto de políticas e programas da saúde pública que visa a reduzir os danos à saúde em conseqüência de práticas de risco. No caso do usuário de drogas injetáveis, por exemplo, busca reduzir os danos daqueles usuários que não podem, não querem ou não conseguem parar de usar drogas injetáveis, e, portanto, compartilham a seringa e se expõem à infecção pelo HIV, hepatite e outras doenças de transmissão parenteral.
“A Europa sempre teve uma posição fechada. Dessa vez, diante de posturas como da Itália, que voltou a apoiar medidas proibicionistas e de repressão, o continente não fechou um bloco. Os latino-americanos também não conseguiram fortalecer as articulações anteriores”, lembrou Luciana.
Apesar de não assinar a nota, o Brasil já adota medidas de redução de danos e, segundo Luciana, tem uma legislação mais avançada do que a de outros países. “O Brasil, por exemplo, sempre internalizou e adotou as decisões de cada convenção. Hoje, se observamos a situação internacional, veremos que a nossa lei é muito melhor. Ela só precisa ser aplicada e aprimorada”, disse.
Movimento da sociedade civil
Muitas mudanças conquistadas decorrem da participação e mobilização da sociedade civil no debate. “Representantes das organizações não-governamentais estavam lá e graças às novas tecnologias, conseguiam transmitir online tudo o que estava se discutindo”, lembrou Luciana.
Além dessa participação política, Maronna colocou que hoje as ONGs têm um papel muito importante no campo da pesquisa. “Um dos argumentos da linha proibicionista é que a flexibilização das regras de consumo geraria uma epidemia global. Isso não se sustenta cientificamente. Além disso, foi colocado que as ações de repressão contiveram o consumo nos últimos anos. Isso é manipulação de dados”, disse.
“A solução está na sociedade civil. Devemos nos mobilizar para realizar mais pesquisas, melhorar as estatísticas, levar a discussão para o âmbito da saúde, aprimorar a ação do judiciário e chamar para a discussão os próprios usuários, adotando medidas de redução de danos”, concluiu Luciana.
Comunidade Segura.
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