segunda-feira, 20 de abril de 2009

Artigo: O decreto de indulto e o papel do executivo na política criminal

Em sua edição de fevereiro/2009, Alberto Silva Franco publicou, neste Boletim, o artigo intitulado “Cláusula inadmissível no indulto natalino”, com algumas críticas ao Decreto nº 6.076, de 22 de dezembro de 2008, por meio do qual o Presidente da República concede indulto e comutação de penas ao condenado em condições de merecê-los, por ocasião das festividades comemorativas do Natal.

O autor direciona suas críticas, mais especificamente, ao art. 8º, inciso I, do Decreto nº 6.076/2008, que inova ao autorizar a concessão do benefício de indulto aos condenados pelos crimes do art. 33 da Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006, não só para as condutas dispostas nos §§ 2º (“induzir, instigar ou auxiliar alguém ao uso indevido de droga”) e 3º (“oferecer droga, eventualmente e sem objetivo de lucro, a pessoa de seu relacionamento, para juntos a consumirem”), mas também na hipótese do § 4º, que prevê a redução da pena no caso de condenação pela prática das condutas do caput e § 1º do art. 33, quando o agente for “primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa”, desde que não configurada a prática de mercancia.

Segundo Alberto Silva Franco, o Presidente da República não estaria autorizado, por meio de decreto, a alargar ou restringir tipologias penais porque “a incidência da causa de diminuição do § 4º do art. 33 da Lei 11.343/2006 não estava subordinada à prévia rotulação do agente como traficante ou não” e essa separação acaba por afrontar a regra da isonomia na aplicação da norma penal, referindo-se, especificamente, à necessidade de configuração da prática de mercancia para concessão do benefício de indulto, não prevista no texto da Lei nº 11.343, de 2006.

Em que pese a clareza com que o autor tece suas críticas e a relevância de sua preocupação com a proteção dos direitos do condenado pelos crimes previstos na Lei nº 11.343 de 2006, torna-se necessário esclarecer que, na verdade, a intenção do Presidente da República, ao promulgar o decreto de indulto, não foi restringir os direitos do condenado, mas ampliar o âmbito de concessão do benefício, sem desrespeitar as normas constitucionais e legais que consideram insuscetível de anistia, graça e indulto o crime de tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins.

A previsão, para a concessão de indulto natalino no caso de condenação pela prática das condutas do art. 33, caput e § 1º, da Lei nº 11.343/2006, de que não haja prática de mercancia, em nenhuma medida pretende criar mais um requisito novo para a concessão do benefício de redução da pena, mas sim ampliar as hipóteses de concessão do indulto. Sendo assim, seu âmbito de incidência está restrito à aplicação do indulto e, nessa esfera, há ampliação e não restrição dos direitos do condenado.

Justamente por se tratar de benefício de redução da pena, o § 4º do art. 33 complementa os núcleos verbais do caput e do § 1º do art. 33, ou seja, pode ser aplicado, quando houver condenação por aqueles crimes, desde que presentes os requisitos que o autorizam às condutas ali descritas, dentre as quais a de tráfico de entorpecentes. Para que o decreto não fosse considerado inconstitucional, só seria possível conceder o indulto também para o condenado primário, de bons antecedentes, que não se dedica às atividades criminosas nem integre organização criminosa, se o crime praticado por ele não fosse o de tráfico de entorpecentes. Trata-se de um requisito a ser observado pelo juiz apenas para a concessão do indulto, nunca para a aplicação do benefício de redução da pena.

De fato, o decreto separou a figura do traficante e do não-traficante porque, se não o fizesse, seria considerado inconstitucional. Ao fazê-lo, buscou consolidar uma discussão antiga sobre as condutas que podem ser consideradas crime de tráfico de drogas(1). Como não há, no art. 33, o nomen iuris “tráfico de entorpecentes”, não é possível tratar todas as situações ali previstas com o mesmo rigor, tanto é que não se imputa a condição de equiparadas a hediondos às condutas previstas nos §§ 2º e 3º, cujas penas cominadas são bem mais brandas do que as previstas para as condutas dispostas no caput e no § 1º do art. 33, as quais, por sua vez, são mais graves do que as penas aplicadas quando o condenado preencher os requisitos do § 4º.

Deve-se, portanto, na falta de uma identificação nominal do que venha a ser tráfico, examinar cada um dos núcleos verbais previstos no art. 33 para verificar quais deles traduzem a idéia de mercancia, de comércio, e, assim interpretar restritivamente o dispositivo legal, com o intuito de assegurar os direitos do condenado.

O decreto de indulto não é uma medida isolada do Poder Executivo na política criminal relativa às drogas. O tratamento do tráfico de drogas no direito brasileiro tem provocado profundas distorções e uma revisão se faz necessária. As severas restrições constitucionais e legais impostas a con­denados — e até a acusados — pelo crime de tráfico evidentemente não podem se direcionar àqueles que não participam ou participam apenas marginalmente do comércio de drogas. A Secretaria de Assuntos Legislativos, no âmbito do projeto Pensando o Direito, financiou uma pesquisa realizada pela UFRJ justamente para construir um tipo penal que abarque essas situações e as trate de maneira diferente do tráfico de drogas. Nossa intenção é ainda este ano elaborar projeto de lei neste sentido.

O decreto também reforça a postura crítica que o Brasil assumiu no plano internacional no que se refere às políticas sobre drogas. Em março deste ano a Organização das Nações Unidas, no âmbito da UN­GASS, realizou a revisão da política internacional sobre drogas. Diferentemente do ocorrido na reunião anterior, em 1998, não houve consenso entre os países para a assinatura de um documento final. Se há uma década não foi possível enfrentar o discurso de “war on drugs”, em 2009 vários países apresentaram forte oposição a esta política. O Brasil foi um desses países e propôs — citando especificamente o decreto de indulto —, no discurso apresentado pelo chefe de sua delegação, o tratamento não prisional de todos aqueles que não participam diretamente do comércio de drogas.

Assim, afirmamos que o decreto de indulto é parte de uma política criminal coerente que entende não mais ser possível enxergar na prisão a resposta adequada para aqueles que não têm envolvimento profundo com o comércio de drogas. O Poder Executivo tem implementado esta política de várias maneiras, a consolidação de uma interpretação restritiva sobre quais as condutas, entre as previstas no artigo 33 da Lei 11.343 de 2006, podem ser consideradas como tráfico de drogas, representa mais um passo nesta direção.

Nota

(1) O tema foi abordado em artigo intitulado “A lei de drogas e o crime de tráfico”, de Sérgio Salomão Shecaira e Pedro Luiz Bueno de Andrade, publicado nesse Boletim, ano 15, n. 177, pp. 2-3, ago. 2007.

Carolina Dzimidas Haber
Mestre e doutoranda pela USP, é coordenadora da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça

Pedro Vieira Abramovay
Mestrando pela UNB, é secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça


Boletim IBCCRIM nº 197 - Abril / 2009

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