segunda-feira, 20 de abril de 2009

Artigo: Transparência e direito de defesa

“(...) Pois é disso que se trata, na raiz, quando cogitamos do Estado de direito: direito de defesa.”
Min. Eros Grau(1)

Foi imbuído de esperança que o Instituto de Defesa do Direito de Defesa – IDDD decidiu juntar-se ativamente à luta pela garantia de acesso aos autos de inquérito policial por parte dos defensores dos convocados, entendendo que se trata de parte essencial do direito de defesa.

A luta a que aderimos teve início muito antes, por meio da atuação individual de muitos advogados que, no exercício de sua profissão, encontravam óbices no acesso a informações essenciais à defesa dos interesses de seus representados.

Não é nenhuma novidade a dificuldade encontrada pelos que militam na área criminal em ter vista dos autos de inquérito policial, mesmo quando o cliente esteja preso ou intimado para prestar esclarecimentos.

Tal qual Josef K., célebre personagem de Kafka, deparamos, frequentemente, com situações em que não se sabe o teor das investigações, o objeto da busca, o motivo ensejador da prisão e, por vezes, sequer em que condições se é chamado a comparecer perante a autoridade policial.

Diante das sucessivas recusas de vista dos autos, os advogados têm impetrado ordens de habeas corpus, ou mandados de segurança, na tentativa de garantir o direito de defesa do cidadão através do respeito a suas prerrogativas profissionais.

Nem sempre os tribunais acolhiam esses pedidos, o que impunha ao prejudicado a necessidade de recorrer à Corte Suprema para garantir direito expresso no texto constitucional e regulamentado em lei ordinária (art. 7º, XVIII e XIV, do Estatuto do Advogado). Para que os cidadãos e advogados tivessem assegurado direito inconteste, era necessário aguardar que a mais alta Corte do Brasil se pronunciasse.

Os argumentos contrários fundam-se, com frequência, na falaciosa dualidade entre direitos individuais e segurança da sociedade, invocando-se quase sempre o bordão “não há direitos absolutos”, sobre o qual disse o Supremo Tribunal Federal que “tal como tem sido em nosso tempo pronunciada, dessa máxima se fez gazua apta a arrombar qualquer garantia constitucional”(2). Alega-se que a transparência das provas produzidas e dos documentos juntados comprometeria a luta contra o crime e colocaria a sociedade em risco. Os que se utilizam de tal dialética invocam a luta contra o crime, trazendo à memória os tempos obscuros das Ordenações do Reino.

Diante da infeliz constatação de que tais alegações vinham sendo acatadas como razão de decidir por algumas Câmaras e Turmas de nossos Tribunais, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, por iniciativa do presidente da Comissão Nacional de Prerrogativas, advogado Alberto Zacharias Toron, houve por bem formular, com fundamento na Lei 11.417/06, Proposta de Súmula Vinculante ao Supremo Tribunal Federal. Foi em tal procedimento que o IDDD, em razão de suas previsões estatutárias e das convicções de seus membros, requereu sua admissão como interessado, compondo o pólo ativo na luta pelo respeito ao direito de defesa, em sua esfera mais singela e precípua, qual seja o acesso às informações que compõem a investigação(3). Nossa manifestação recebeu gentil referência no voto do ministro Marco Aurélio.

A junção de forças foi vitoriosa e, em 2 de fevereiro deste ano, o Supremo Tribunal Federal, por expressiva maioria, acolheu a proposta de edição de súmula vinculante 14 e aprovou o seguinte enunciado: “É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.”

Entretanto, uma questão ainda paira no ar. Mesmo com o sucesso alcançado pela publicação da súmula, qual a razão de tamanho contentamento se o assunto tratado é tão claro e tão amplamente protegido pelo texto constitucional e pela legislação ordinária? Como podemos ficar tão satisfeitos com a validação de uma regra que nunca deixou de existir?

Para responder tal pergunta, ainda que tristemente, temos que admitir que estamos diante de tempos sombrios, como bem definiu o ministro Eros Grau(4): “Não vivemos ainda um tempo de guerra, um tempo sem sol, embora de quando em quando o sintamos próximo a nós.”

É certo que o prestígio do direito de defesa aumenta ou diminui proporcionalmente ao respeito às regras do Estado de Direito. Quanto mais rígidos somos com as exceções à regra democrática e às violações dos direitos e garantias individuais, mais se aceita e se reconhece a relevância dos direitos atinentes à defesa. Mas há um preocupante fenômeno que se observa em escala mundial, que é o de governos legítimos e democráticos, a pretexto de que é necessário combater o terrorismo e o crime organizado, relegarem o Estado de Direito a um plano secundário.

Temos visto na história alternarem-se tempos de maior ou menor violência estatal, de maior ou menor controle das atividades repressivas do Estado. Desde o primeiro Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei 4.215/63), entretanto, o exame dos autos de inquérito por advogado encontra guarida na lei, não tendo sido excluído do texto legal sequer pela ditadura militar.

Após a promulgação da Constituição de 1988, não restaram mais dúvidas sobre ser a vedação de acesso de convocados aos autos contrária aos direitos individuais ao devido processo legal e à ampla defesa (incisos LIV e LV do artigo 5º), além de atentar contra a disposição constitucional de ser a advocacia função essencial à administração da justiça (art. 133).

Nos acordos e tratados internacionais ratificados pelo Brasil, o assunto encontra igual relevância, sendo garantido o acesso às razões que motivaram a prisão, bem como de todas as acusações formuladas (art. 9º, item 2, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e art. 7º, item 4, da Convenção Americana de Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa Rica).

Não se vislumbra, portanto, respaldo legal nas legislações modernas e democráticas à vedação de acesso às provas e documentos existentes em procedimento investigativo por parte da pessoa investigada, através de seu advogado constituído ou defensor nomeado.

Caso contrário, é de se perguntar qual poderia ser a função desempenhada pelo profissional do direito na defesa de seu cliente. Quiçá deva ser aquela mencionada pelos advogados Alexandra Lebelson Szafir e Alberto Zacharias Toron: “Advogados cegos, blind lawyers, poderão, quem sabe, confortar afetivamente seus assistidos, mas, juridicamente, prestar-se-ão, unicamente, a legitimar tudo o que no inquérito se fizer contra o indiciado.”(5)

Em suma, não podemos deixar de comemorar uma vitória do direito de defesa e do Estado de Direito, mas devemos continuar atentos às reiteradas tentativas de retrocesso e de aniquilamento de conquistas decorrentes de anos de luta, que salvaguardam direitos de todos e não apenas de alguns.

Notas

(1) STF, HC 95.009/SP, j. em 06/11/2008.

(2) Ibidem.

(3) Da mesma forma e na mesma direção, a Associação dos Advogados de São Paulo–AASP requereu sua admissão como interessado e, em sentido contrário, a Associação Nacional dos Procuradores da República-ANPR.

(4) Mesmo voto já citado.

(5) Prerrogativas Profissionais do Advogado, 2ª ed., Brasília: Editora do Conselho Federal da OAB, 2006, p. 86.


Flávia Rahal
Advogada criminal, presidente do IDDD, mestre em Direito Processual Penal pela USP, coordenadora e professora do Curso de Especialização em Direito Penal Econômico da FGV/SP.

Ludmila de Vasconcelos Leite Groch
Advogada criminal, Diretora do IDDD, mestre em Direito Penal pela USP, presidente da Comissão de Direito Penal Econômico do IBCCRIM

Boletim IBCCRIM nº 197 - Abril / 2009

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