Segundo a avaliação do CNJ, dos 150.532 processos que tramitam em 23 tribunais de justiça do país (com exceção dos tribunais de Rondônia, Roraima, Rio Grande do Norte e Paraíba, que não repassaram as informações ao CNJ), apenas 2% dos casos, ou seja, 1.801 casos geraram pena de prisão.
Em Minas, um dos caminhos encontrados para o trato da violência contra mulher e a violência familiar, que também é abrangida pela Lei Maria da Penha, passa por outras alternativas à pena de prisão.
Bons exemplos são os grupos reflexivos para homens – o grupo Andros – e para mulheres – o grupo V.I.D.A (Violência Interrrompida, Direito e Ação) – ambos realizados pelo Instituto Albam, ONG especializada em violência de gênero. Os grupos reflexivos tornaram-se possíveis graças a parcerias firmadas com o Tribunal de Justiça e a Promotoria de Defesa da Mulher para combate à violência de gênero e familiar.
O Andros existe há quatro anos – é anterior, portanto, à Lei Maria da Penha. Foi criado pelo Tribunal de Justiça e o Instituto Albam para tratar de crimes de menor potencial ofensivo que atingem sobretudo as mulheres, tais como lesão corporal leve, ameaça, violação de domicílio, entre outros, e que não tinham tratamento especial indo para os Juizados Especiais Criminais (Jecrim).
Segundo a psicóloga Fátima Pessali, sócia fundadora do instituto, a parceria com o Jecrim veio para tratar os casos de violência doméstica e intrafamiliar de forma diferenciada. "Os juizes decidiam por penas pecuniárias, pagamento de cestas básicas e prestação de serviços à comunidade que não resolviam os problemas de violência de gênero. Muito pelo contrário, acabavam por banalizar tão grave problema", conta.
Fátima lembra que foi a partir destas observações e de um projeto desenvolvido pelo departamento psicossocial do Juizado que nasceu o grupo. “Pensamos em um projeto em que o objetivo principal seria responsabilizar os homens que exercem violência contra mulheres através de intervenções grupais e com caráter psicoeducativo e reflexivo”, relembra.
O Andros trabalha com grupos de homens em Belo Horizonte, Neves e outras cidades, recebendo homens que praticaram tanto crimes de menor potencial ofensivo como os crimes abrangidos pela Lei Maria da Penha. Tudo depende do encaminhamento que os juízes e a promotoria dão aos acusados.
Segundo a promotora Laís Maria Costa Silveira (foto), 90% dos casos que chegam à Promotoria de Justiça são crimes de ameaça e lesões corporais leves, que poderiam ser tratados com outras penas e o grupo reflexivo é uma alternativa para o trato da violência.
A brecha na lei para justificar a medida para os homens foi encontrada no artigo (artigo 22, da Lei 11.340/2006) que propõe um rol de medidas de proteção às mulheres, que não é taxativo. “Na parte que permite o aplicador da lei obrigar o acusado a freqüentar determinados lugares, nós achamos a brecha para que os homens pudessem ser encaminhados para os grupos”, explica.
Tempo de refletir
Os homens chegam ao grupo reflexivo por duas vias: encaminhados pela Promotoria em cumprimento a uma medida cautelar enquanto o processo é julgado pelo juiz da vara especializada nos crimes da Lei Maria da Penha, ou através de uma medida sócio-educativa de um crime de menor potencial ofensivo, encaminhado pelo Juizado Especial Criminal.
É o caso do técnico adminstrativo A.J.S., que está cumprindo uma medida alternativa por crime de desacato. Segundo ele, por causa de uma briga com a ex-mulher quanto ao horário de visitas do seu filho, ela chamou a polícia e ele, muito nervoso, acabou brigando com os policiais e foi preso.
No Juizado, durante a audiência, para não prosseguir o processo ele acabou fazendo uma transação penal com o Ministério Público, preferindo juntar-se ao grupo reflexivo de homens a ter de suportar uma condenação processual e possível pena de prisão. Foram 16 encontros no grupo. Segundo ele, apesar de se sentir injustiçado por achar que a mulher também deu causa ao conflito entre eles, freqüentar o Andros foi positivo.
"Eu sou contra a violência. Mas as mulheres também são mais agressivas hoje do que há um tempo. Eu acho que deveria ter um grupo também pra elas", sugere. "Aqui a gente aprende pela experiência do outro. Pensamos: se ele agiu assim e aconteceu isto, eu posso fazer diferente", explica.
O segurança G.S., apesar de também se sentir injustiçado pois, segundo ele, a mulher também deu causa a sua prisão, gostou da primeira experiência com o grupo. “Achei gostoso. Eu pude falar, ouvir, pegar algumas orientações e ainda tirei base da experiência das outras pessoas”, conta.
G.S chegou ao grupo por causa do descumprimento de uma medida protetiva que o impedia de chegar próximo a sua ex-mulher, mas ele acabou a agredindo, pois se sentia impedido de ver o filho, culminando em mais uma medida cautelar, desta vez para o grupo reflexivo.
Para Alessandro Vinícius, psicólogo e coordenador do grupo, o sentimento de injustiça dos homens que chegam para cumprir a medida é normal. “Eles chegam fragilizados, custam a entender a responsabilidade deles no ato que os trouxe aqui”, afirma. “Nossa função é fazer que eles vejam a situação pelo outro lado, daquele sofreu a violência. Se eles entenderem a sua responsabilidade no fato que aconteceu, podem mudar de conduta”, explica.
Para Alessandro, a culpabilização do indivíduo não leva necessariamente a uma mudança. O processo psico-pedagógico pode ser mais eficaz nesses caos. "Aqui há espaço para trocas de informações, orientações e tem ainda o viés psicológico. Mexemos com padrões, outros pontos de vista e sentimentos", conta.
A promotora Laís vai além. Segundo ela, os grupos reflexivos são condições de eficácia concreta da Lei Maria da Penha, uma vez que a lei não tem condições de vigorar somente pelo lado jurídico. "Nós juízes, promotores, policiais e demais operadores do direito somos incapazes de aplicar a lei”, acredita. “É preciso que uma equipe multidisciplinar dê conta disso", defende.
Mulheres agressivas?
O que não pode faltar em qualquer reflexão é o outro lado da questão. Pensando nisto, a Promotoria de Defesa da Mulher criou num grupo espelho ao de homens, o V.I.D.A, para onde as mulheres vítimas de agressão são encaminhadas caso queiram tratar do seu lado na violência.
Segundo a psicóloga Lucy Diniz, coordenadora do grupo, a abordagem no grupo para mulheres é um pouco diferente já que a participação é voluntária. “As mulheres chegam muito fragilizadas, com auto-estima baixa e se sentem incapazes de nenhuma ação”, afirma Luzy.
A professora Zélia Lúcia é uma das muitas que freqüenta o grupo por causa de agressões sofridas pelo filho. Ela conta que foi a primeira vez que ela o denunciou e o tirou de casa, em 30 anos de sofrimento. “Com o grupo, eu tenho me sentido mais forte pra lidar com as minhas decisões. Sozinha você pensa que não é capaz. Aqui, todas nós temos problemas parecidos”, declara.
A dona de casa Beatriz do Carmo, agredida pelo marido, não consegue abandonar o grupo. Começou em Contagem e quando as sessões de lá terminaram, veio freqüentar o grupo de Belo Horizonte. Ela conta que foi agredida pelo marido após 20 anos de casamento. “O meu pai também agredia a minha mãe. Hoje, vejo que também tive participação na agressão que sofri”, reflete.
Para a psicanalista Malvina Muskat, a violência de gênero deve ser vista sob múltiplos pontos de vista. "Será a mulher totalmente passiva diante da violência?", polemiza. Ela acredita na eficácia em grupos reflexivos tanto para mulheres como para os homens. "A punição não é suficiente. Muitos homens são violentos e acham que tem o direito de ser. A violência pra eles, muitas vezes é uma forma de por fim ao conflito", acredita. "Os homens precisam ser compreendidos e ouvidos. Isto não quer dizer que os estamos desculpando pela violência. Mas, que é preciso uma oportunidade de escuta para esses homens", defende.
Resultados
Segundo Amanda Alcântara Peixoto, assistente social do Programa Central de Penas Alternativas (Ceapa) da Secretaria do Estado de Defesa Social (Seds), responsável por monitorar o cumprimento das medidas sócio-educativas dos homens encaminhados pelo Jecrim, ainda não existem números oficiais que comprovem, ou não, a eficácia dos grupos reflexivos de homens no trato com a violência de gênero e intra-familiar, no estado.
Ela explica que os juizes do Juizado Especial, no final do cumprimento da medida pelo acusado, marcam a audiência de multitransatores, que consiste num encontro entre 20 homens que passaram pelos grupos reflexivos, os psicólogos do Instituto Albam e um técnico do Ceapa, a fim de analisarem os resultados dos grupos.
Nesta audiência,segundo ela, os homens costumam ficar muito arredios por causa da presença do juiz, mas quando se dirigem aos técnicos que acompanharam a sua medida-educativa, eles costumam se abrir mais, demonstrando que tiveram benefícios. "A postura, as reflexões que alguns homens nos trazem, mostram que eles aprenderam que a conversa é melhor que a agressão, ou seja, que a violência começa a ser desnaturalizada", avalia.
Segundo Silveira, a promotoria também não dispõe de números ou cruzamento de dados para saber se os homens que passaram pelos grupos voltaram a delinqüir. Mas ela explica que um dos benefícios concretos, é que o juiz pode diminuir a pena caso o acusado tenha tido boa freqüência no grupo reflexivo.
No entanto, o que a promotora julga mais importante nesta iniciativa, é a oportunidade promovida pelos grupos reflexivos a homens e mulheres. "Do mesmo modo que as mulheres reproduzem a violência sofrida para filhos e filhas, entendemos que os homens também são repetidores de condutas das quais eles são herdeiros. Ambos precisam tomar consciência do ciclo do qual são parte", conclui.
Comunidade Segura.
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