O presente artigo tem por objetivo traçar um panorama estrutural do fenômeno de cometimento de atos infracionais e as peculiaridades das respostas que a sociedade oferece a ele. Analisar-se-ão as estruturas sociais que contribuem como estímulo ao comportamento desviante, e como a sociedade se estrutura em torno desses adolescentes de modo a contribuir com uma personalidade, por sua própria natureza, ainda em formação.
É sabido que, embora não se possa associar com qualquer segurança científica as ideias de crime e pobreza, a maior parte dos atos infracionais cometidos pelos adolescentes no país são contra o patrimônio (conforme se faz ver a reportagem do Correio Brasiliense, de 2002, intitulada “Jovens Assassinos”(1)) e, no que tange a esse tipo particular de comportamento desviante, é inegável a contribuição dos fatores criminógenos relacionados à miséria e à pobreza.
Esse, então, seria o primeiro estágio da repressão escalonada a que se refere o título deste artigo, uma vez que quando se discute repressão, imagina-se unicamente a repressão institucionalizada, esquecendo-se das formas de repressão velada e ideológica.
De Giorgi chama a atenção para o fato de que “pobres, desempregados, mendigos, nômades e migrantes representam certamente as novas classes perigosas, ‘os condenados da metrópole’, contra quem se mobilizam os dispositivos de controle”(2). Essa seleção exposta por Giorgi diz respeito às classes que, dentro de um sistema capitalista de produção, não seriam capazes de contribuir produtivamente com a sociedade, e que por isso mereceriam ser neutralizadas. Ele então afirma, quanto à base ideológica das novas técnicas de controle social, que “trata-se, pois, de neutralizar a ‘periculosidade’ das classes perigosas através de técnicas de prevenção do risco, que se articulam principalmente sob as formas de vigilância, segregação urbana e contenção carcerária”(3).
Dentro dessa lógica, há de se considerar a posição da criança e do adolescente fruto dessas classes, que já sofrem uma marginalização primária, dentro de uma família deteriorada e “neutralizada” pelas instâncias de controle social.
Não se pode olvidar também o papel determinante que o consumo exerce no imaginário coletivo de nossa sociedade. De um lado ele “ocupa um espaço privilegiado, formando opiniões e estabelecendo parâmetros para a composição das identidades dos sujeitos”(4), e de outro temos uma classe de pessoas, em processo de formação de identidade, a quem são negados os meios lícitos para se obter tais parâmetros mínimos estabelecidos pela sociedade. Tal contradição é resolvida facilmente através dos meios ilícitos, indo ao encontro com o que diz Juarez Cirino, quando afirma que a criminalidade individual, em certas condições, se configura como uma resposta pessoal, não política, das classes subalternas em situação de desorganização e ausência de consciência de classe — “resposta inevitável às condições estruturais adversas da sociedade”(5).
Diante de uma estrutura familiar desestruturada, “neutralizada” e improdutiva, e inserido numa estrutura social que lhe impõe objetivos e metas, sem oferecer os meios lícitos para obtê-los, o jovem está diante de uma repressão ideológica típica de uma sociedade capitalista excludente, e busca no ato infracional a solução aparentemente rápida e fácil para a solução de seus problemas.
O resultado é perceptível diariamente nos meios de comunicação. E antes da repressão institucional, eles ainda enfrentam a repressão midiática. Estes funcionam tanto como um reflexo da indignação social, quanto como um estímulo a uma cultura de ódio. As nuances do dito “jornalismo investigativo” vão implantando paulatinamente no inconsciente coletivo a ideia de que a morte de um jovem das classes inferiores é explicável por suas condutas, enquanto um jovem de uma classe mais abastada foi uma vítima da criminalidade urbana. O próprio tratamento desprendido à morte de um adolescente é um exemplo claro disso. Numa pesquisa feita com o jornal Zero Hora durante um período, viu-se que as manchetes transpareciam a ideia da vingança privada como solução para os jovens infratores, alguns exemplos são: “Vendedor reage e mata ladrão de veículos”, “Jovem agressor é linchado na rua”. No outro lado, quando algum garoto de classe social alta morre, não só os termos mudam (“Menino morre ao tentar evitar roubo de bicicleta”) como seu caso tem repercussão por dias até o seu ofensor ser capturado (“Preso suspeito da morte de menino”)(6).
Não se pode ignorar a distorção ideológica provocada por esse tipo de mídia na sociedade. Muito se fala que ao cometer um ato infracional, o adolescente está isento de ser responsabilizado pelos seus atos, quando na verdade ele é responsabilizado segundo legislação própria, neste caso, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Tal diploma possui regras que orientam os caminhos para essa responsabilização, fundamentada em um arcabouço ideológico de proteção da criança e do adolescente e do respeito a sua peculiar condição de pessoa em desenvolvimento.
O Processo Infracional e a aplicação de uma medida socioeducativa são o cume de toda a estrutura repressiva que circunda o adolescente em conflito com a lei, e como tal, devem ser analisados contextualmente. A existência do processo como análise unicamente do ato infracional ou de seu infrator mostra-se equivocada a partir da constatação que esse ato infracional está inserido num contexto muito maior. Isso se mostra muito claramente no Estatuto da Criança e do Adolescente quando, ao falar das medidas socioeducativas, diz que elas devem ser aplicadas levando em consideração a capacidade do autor de cumpri-las, as circunstâncias e a gravidade da infração, e sempre em respeito a sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.
A estrutura carcerária do nosso país enfrenta crises diárias e se distancia cada vez mais de seu objetivo ressocializante para se firmar como um depositário de párias e excluídos, largando-os a própria sorte e permitindo que se formem verdadeiras universidades do crime dentro dos internatos.
Diante do exposto, vê-se que o ato infracional, em regra, não é algo instantâneo, descontextualizado, e sim algo que passa por um constante renascimento e fortalecimento na vida de um jovem de classes menos favorecidas. As Medidas Socioeducativas hão de ser orientadas e aplicadas de forma a inibir esse fortalecimento e quebrar esse círculo vicioso.
A criança, ou o adolescente, é alguém com personalidade, instintos, noções e cultura em formação. A sociedade deve ponderar que valores ela pretende difundir para esse jovem, quem ela acha que deve participar ativamente na formação dessa personalidade, passando por uma reflexão transversal em todas as formas de repressão discutidas anteriormente. Que tipo de família esse jovem há de ter para que ele possa aprender valores e noções em seu crescimento? Que tipo de sociedade ele deve fazer parte de forma a adquirir uma cultura de paz, respeito às normas e convivência harmoniosa? E, acima de tudo, o papel primordial do Estado nessa necessária reformulação social.
Notas
(1) Segundo a reportagem, em 2001 foram apurados 439 furtos, 665 roubos, 46 latrocínios contra 118 homicídios. Correio Brasiliense. “Jovens Assassinos”, 18 de Abril de 2002.
(2) GIORGI, Alessandro de. A Miséria Governada Através do Sistema Penal. Rio de Janeiro: Editora Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2006, p. 28.
(3) GIORGI, Alessandro de. Op. cit.
(4) PIMENTEL, Elaine. “Juventude e tráfico de drogas na sociedade de consumo”, Revista de Estudos Sócio-Jurídicos da SEUNE, v. 3, pp. 59-76, 2006.
(5) SANTOS, Juarez Cirino. A Criminologia Radical. Curitiba: Lúmen Júris, 2006, p. 58.
(6) OLIVEIRA, Carmen Silva. O Hiperdimensionamento da Criminalidade Juvenil no Noticiário. Disponível em: http://www.observatorioseguranca.org/pdf/2003NP12oliveira carmencrimesadolecentes1.pdf . Acesso em 31 de março de 2008.
Paulo Gustavo Lima e Silva Rodrigues
Acadêmico do 5º ano de Direito da Universidade Federal de Alagoas e estagiário da Promotoria Coletiva Criminal do Ministério Público de Alagoas
RODRIGUES, Paulo Gustavo Lima e Silva. Construção e resposta ao ato infracional: a repressão escalonada do jovem infrator. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 196, p. 17, mar. 2009.
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