quarta-feira, 22 de outubro de 2008

Mulheres que fazem a paz contam a história

A paz – dizem – deve ser enraizada na comunidade; as pessoas devem superar desavenças e se encontrar, face a face. E, ainda mais importante, construir a paz significa não estar restrito a apenas alguns tipos de violência, e envolve um projeto que se entrelace com o futuro da comunidade. Como fazer isso?



Um bom exemplo vem de uma remota e violenta área da Papua-Nova Guiné. O distrito Kup – na região das highlands – é o cenário de três décadas de lutas tribais que quase fizeram cessar a prestação de serviços para a comunidade. E é também o lar da Kup Women for Peace (KWP – Mulheres Kup Pela Paz), que hoje trabalha em muitas frentes, desde o empoderamento das mulheres até o incentivo à adoção de um estilo de vida mais estável pelos jovens ou mesmo a melhora das condições de saúde e nutrição - tudo com o denominador comum da prevenção da violência.



"Foi um processo longo e difícil", dizem os membros da KWP, que há oito anos se engajam em uma luta por "mudança de mentalidades e comportamentos". Através do seu trabalho, os homens e mulheres da KWP querem que as pessoas "olhem para o desenvolvimento em vez de se concentrarem em lutas tribais. Nós sempre visamos jovens e comunidades nas quais há um alto risco de eclodirem lutas tribais". Eles também trabalham para o empoderamento das mulheres, para que elas participem das tomadas de decisão e desempenhem papéis de liderança, colaborando com líderes homens. "Todas as nossas atividades envolvem mulheres, como o policiamento comunitário, conselhos comunitários de justiça, conselhos de saúde etc".



Esta é apenas uma parte da história que começou quando quatro mulheres de tribos em guerra se encontraram em segredo para falar sobre como terminar o conflito. O Comunidade Segura entrou em contato com a KWP - com a ajuda da Oxfam. Mary Kini (membro executivo da organização) levou nossas perguntas para casa, para uma área sem eletricidade, sem linhas telefônicas ou água encanada. As respostas foram escritas em colaboração com seus colegas Angela Apa (Diretora), Jerry Kai e Agnes Sil, e isso é o que eles nos contaram sobre construção de paz nessa região remota e castigada:



Como começou a KWP?



Kup é um subdistrito da província de Simbu, nas regiões montanhosas (Highlands) da Papua-Nova Guiné. O povo de Kup enfrentava mais de trinta anos de violência tribal. Muitos homens morreram, nossos parentes próximos foram assassinados, e mulheres e crianças viviam com medo e sendo desalojados. Todos os serviços públicos se retiraram - estávamos realmente sofrendo. Como resposta, quatro mulheres de diferentes tribos se encontraram - primeiro em segredo - para discutir o que poderíamos fazer para pôr um fim ao conflito e começar a reconstruir nossas comunidades. Fizemos uma grande marcha em Kup, em 1999. Esta foi a primeira vez, por muitos anos, que mulheres dos diferentes lados do conflito se viram e trabalharam juntas pela causa da paz. Desde então, KWP tem sido uma defensora da paz e mudança social.



Fale-nos um pouco sobre os membros da KWP...



Somos uma organização liderada por mulheres, mas temos membros de ambos os sexos, além de um amplo apoio de líderes homens e membros de comunidades de toda a região. A KWP é constituída de uma executiva - três mulheres e um homem -, um comitê de gestão e o coletivo. Cada membro do comitê de gestão representa cada clã de Kup, e trabalha em campo para levar informação, despertar a consciência, mobilizar a comunidade e relatar os problemas locais de volta para os coordenadores estruturais - que constituem o "coletivo". O coletivo é composto de 12-15 pessoas, e funciona com uma equipe de coordenação de 4-5 pessoas. Participam dele representantes de cada grupo tribal, e eles trabalham com diferentes componentes estruturais da organização, como saúde - inclusive HIV - lei e justiça, subsistência, juventude, grupos femininos, violência contra a mulher, igreja etc.



Que atividades estão envolvidas num dia rotineiro de trabalho na KWP? Vocês estão espalhados ou concentrados geograficamente?



Nós estamos concentrados dentro do subdistrito de Kup, que tem uma população de 24 mil pessoas, divididas em 5 grupos tribais e, cada um desses é composto de cinco a seis clãs. Através dos comitês de gestão e dos representantes coletivos, KWP está presente em todo o subdistrito. As atividades são conduzidas de acordo com os objetivos e estrutura da organização, como atividades de mediação, conscientização e treinamento em direitos humanos e violência contra a mulher, treinamento em resolução de conflitos, grupos de observação das tribos, policiamento comunitário, incentivo à subsistência, treinamentos em saúde e direitos humanos nas escolas.



Como você vê a prevenção da violência?



Um dos nossos principais objetivos é reduzir a eclosão e escalada da violência tribal através de estratégias de mediação de conflitos e de mudança de mentalidades e comportamentos. Nós queremos que os homens, principalmente, compreendam as alternativas à violência - tanto em suas casas quanto nas suas comunidades -, e que percebam o valor da cooperação e da coexistência. Nossa agenda é muito mais ampla do que prevenir ou encerrar um conflito. Estamos tentando lidar com as causas estruturais do conflito e as relações com outros tipos de violência - como a violência contra a mulher, interpessoal e o abuso de álcool.



Mulheres são fundamentais para a KWP. Como vocês trabalham a questão de gênero?



Nós temos grandes problemas com a desigualdade entre gêneros e abusos de direitos humanos. Nós adotamos uma abordagem integrada para o nosso trabalho de construção de paz. Daí que tudo o que fazemos se foca no enfrentamento do desequilíbrio de gênero na nossa sociedade. Mulheres passam por casamentos precoces, sofrem restrições à sua locomoção, não são incluídas nas estruturas formais de tomada de decisão, carregam o fardo de uma pesada carga de trabalho e ainda enfrentam violência em seus lares. A lei e os sistemas judiciários, a polícia e as cortes exacerbam essas desigualdades. As estruturas tradicionais de lideranças também erodiram e novos tipos de líderes estão emergindo - através do uso da violência, intimidação e medo.



E como isso tem sido recebido pela comunidade?



Nós conduzimos workshops, campanhas e treinamentos para conscientizar sobre a inaceitabilidade da violência contra a mulher, para aumentar o respeito e a consciência para os direitos humanos. Nós percebemos agora que a violência está sendo discutida mais abertamente, e há mais consciência sobre as diferentes formas pelas quais ela tem impacto sobre os homens, mulheres e crianças - sobre a comunidade como um todo. A justiça de gênero e a igualdade são o nosso objetivo, e, em todas as nossas atividades, mulheres estão envolvidas na tomada de decisão.



Como essa tentativa foi implementada nas tribos e lares de Kup?



Nós formamos comitês de violência contra a mulher; existem, hoje, 60 comitês na região. Eles estão lá para lidar com o problema dentro dos seus próprios grupos tribais. Conduzimos treinamento com homens e mulheres em direitos humanos e guiamos jovens mulheres a serem líderes no futuro. Estamos fazendo o empoderamento das mulheres para que estejam nos papéis de liderança e tomada de decisão, em colaboração com líderes homens. Todas as atividades envolvem mulheres, desde o policiamento comunitário, os conselhos comunitários de justiça, conselhos de saúde etc. No passado, os homens hesitavam em ter mulheres envolvidas em atividades que implicavam em retirá-las das suas responsabilidades com o lar. Numa performance recente, as mulheres apresentaram um drama sobre como elas estavam confinadas ao lar e restritas pelos maridos em relação à locomoção. Muitos dos homens que estavam presentes reconheceram seus erros. Foi uma grande revelação para eles e um grande feito das mulheres e da KWP.



O programa de fomento à subsistência com jovens também gerou muito interesse...



Esse programa é parte da abordagem de construção de paz da KWP. Nós estamos fazendo isso para que as pessoas olhem para o desenvolvimento em vez de se concentrarem em lutas tribais. Essa é a nossa abordagem. Nós sempre visamos jovens - homens e mulheres - e comunidades nas quais há um alto risco de eclodirem lutas tribais. Dessa forma, as pessoas podem manter-se ocupadas e, como resultado, ter menos tempo para jogar, brigar etc. Isso tudo é parte de um processo de oito anos de mudança de mentalidade e comportamento. As atividades de subsistência foram somente introduzidas recentemente, quando as condições permitiram.



Você mencionou como manter os jovens ocupados foi importante para eleições pacíficas...



Especificamente, ocupar homens jovens com atividades de subsistência ajudou durante as recentes eleições nacionais. No passado, jovens se envolviam em práticas relativas às eleições corruptas e violentas, que levaram a violência tribal em larga escala. Por causa disso, nós quisemos realmente motivar e engajar os jovens, para mantê-los ocupados durante o período das eleições. Isto, combinado com outras atividades, levou a uma eleição pacífica.



À parte o gasto inicial, para a compra de diferentes recursos para as atividades de subsistência, todos os grupos agora são responsáveis por suas próprias atividades. Em alguns casos, um grupo passa seus excedentes para outros em outras comunidades e grupos tribais, para ajudar outros jovens que estão começando a manterem-se ocupados.



E os resultados?



Nós temos visto uma mudança real no comportamento e na atitude de muitos jovens. Eles são capazes de concentração em um projeto, sua dieta tem melhorado e vemos também mudanças físicas. Tem havido uma melhora real no seu bem-estar geral e padrão de vida. Os benefícios do programa estão chegando também a outras comunidades, que são capazes de comprar os excedentes (como peixes, coelhos etc) e melhorar a sua própria dieta.



Nós visamos os grupos de alto risco, e por isso muitos não estão mais envolvidos em atividades criminais. Na verdade, alguns foram escolhidos como líderes em suas comunidades - eles são membros dos conselhos comunitários de justiça. Nós temos visto alguns jovens se estabelecerem de fato, comprometerem-se com suas famílias e trabalharem sua terra para seu próprio sustento. O componente de subsistência é apenas um aspecto de nosso programa de construção de paz. Ele foi implementado por meio de um longo e difícil processo de aplicação de diferentes e integradas atividades, que tiveram um foco subjacente em direitos humanos, e que visaram os fatores determinantes da violência e do conflito. Nesses anos todos, nós temos sido capazes de criar condições de paz para apoiar a introdução do programa de subsistência e outras atividades de desenvolvimento. Essas atividades, por sua vez, são uma parte integrada da nossa abordagem, sendo usadas como ferramentas para a construção de paz e uma forma de superar as desavenças e conflitos.



Tradução: Bernardo Tonasse



No Comunidade Segura

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