sábado, 25 de outubro de 2008

Artigo: Drogas: A irracionalidade da criminalização

Surgindo entre os efeitos do desequilíbrio e da potencial desestruturação econômico-social presentes nas formações do capitalismo pós-industrial, a intensificação do controle social, através da ampliação do poder punitivo do Estado, alimenta-se dos sentimentos de medo e insegurança, instalados em nossas sociedades contemporâneas, encontrando campo extremamente fértil no pouco compreendido e temido fenômeno da criminalidade, que, como vendo e assustando o conjunto dos participantes de nossas sociedades contemporâneas, o medo da criminalidade provoca a busca dos rigores da repressão, da maior intervenção do sistema penal – alternativa tão palpável quanto irreal de solução de problemas, de satisfação de desejos de proteção, tranqüilidade e segurança.

É especialmente no tema das drogas qualificadas de ilícitas, onde, hoje, mais fortemente atua a enganosa publicidade que consegue "vender" o sistema penal como o produtor destinado a fornecer aquelas almejadas proteção, tranqüilidade e segurança, fazendo deste instrumento – na realidade, estimulante de situações delitivas e criador de maiores e mais graves conflitos – o centro de uma política supostamente destinada a conter, ou até mesmo acabar, com a irracionalmente temida circulação de tais mercadorias, ao mesmo tempo que ensejando uma intensificação do controle do Estado sobre a generalidade dos indivíduos.

Trabalhando com o mistério e a fantasia que cercam estas drogas qualificadas de ilícitas, com as falsas informações que apressadamente as associam às ameaças reais ou imaginárias do mal definido fenômeno da chamada criminalidade organizada, com o superdimensionamento das eventuais repercussões negativas da disseminação de suas oferta e demanda, esta política centrada na repressão traduz-se em legislações cuja irracionalidade se manifesta nas inúmeras contradições que nela despontam.

A irracionalidade da pretensão de controle da oferta e da demanda daquelas determinadas drogas, qualificadas de ilícitas, através da proibição, atinge seu ápice, na vertente do consumo, com a criminalização da posse de tais substâncias para uso pessoal.

A criminalização da posse de drogas para uso pessoal, seja para punir tal conduta com pena privativa de liberdade, como, em nosso país, prevê a Lei nº 6.368/76 ainda em vigor, seja para impor penas de outra natureza – multa ou prestação de serviços á comunidade – como sugerem projetos aparentemente mais liberais, é claramente incompatível com os postulados de racionalidade que devem informar os autos de governo em um Estado Democrático de Direito.

A posse de drogas para uso pessoal é conduta que, se situando na esfera individual, não atinge a terceiros, assim se inserindo no campo da intimidade e da vida privada, em cujo âmbito é vedado ao Estado – e, portanto, ao Direito – penetrar. Assim como não se pode criminalizar e punir – como, de fato, não se pune – a tentativa de suicídio e a auto-lesão, não se pode criminalizar e punir a posse de drogas para uso pessoal, que, menos danosa do que aquelas, pode encerrar, no máximo, um simples perigo de autolesão. Enquanto houver destinação pessoal, estar-se-á diante de uma conduta privada. E, a nocividade individual de uma tal conduta poderá ser uma boa razão para ponderações ou persuasões, mas nunca para que o supostamente prejudicado seja obrigado a deixar de praticá-la. Há mais de um século, já assim alertava Stuart Mill, ao discorrer sobre a liberdade.

Se, sob este ângulo, a descriminalização é um imperativo nascido do indispensável respeito à liberdade individual, é ainda na vertente do consumo que se encontra outra das mais fortes razões para o rompimento com a irracional política legislativa, que, explicitando a intenção de proteger a saúde pública, contraditoriamente cria, com a proibição, maiores riscos à integridade física e mental dos consumidores daquelas substâncias proibidas.

Impondo a clandestinidade à distribuição e ao consumo, a criminalização favorece a ausência de um controle de qualidade das substâncias comercializadas, aumentando as possibilidades de adulteração, impureza e encobrimento de sua potência, com os riscos maiores daí decorrentes. A clandestinidade também favorece a falta de higiene, questão especialmente preocupante, nestes tempos de disseminação da Aids, isto sem falar nas resistências e oposições à implementação de programas de trocas de seringas, entre aditos, fundadas na absurda, mas corrente, interpretação de que tais programas se constituiriam em hipótese da criminalizada contribuição para o incentivo e a difusão do uso indevido de drogas. As condições clandestinas em que se realiza o consumo geram, ainda, maiores tensões, podendo acentuar a problemática original sintomatizada por uma eventual adição, assim, freqüentemente, funcionando como um realimentador na busca da droga. A isto se somam as limitações ao controle terapêutico-assistencial, a clandestinidade do consumo sendo um complicador à procura do tratamento.

Na outra vertente – a da produção e distribuição, configuradoras do tráfico – as contradições embutidas na opção pela proibição igualmente recomendam o rompimento com a política criminalizadora. Somando-se à ineficácia da intervenção do sistema penal na contenção do mercado, os pesados ônus que a ilegalidade traz revelam-se nos altos custos sociais que em muito superam os raros e isolados êxitos que eventualmente possam advir desta irracional forma de controle.

A ineficácia da repressão é inevitável. Suprindo as limitadas oportunidades oferecidas empregados das empresas produtoras e distribuidoras das drogas ilícitas, quando presos ou eliminados, são facilmente substituíveis por outros igualmente desejosos de oportunidade de emprego ou de acumulação de capital, oportunidades que, por maior que seja a repressão, subsistirão enquanto presentes as circunstâncias sócio-econômicas favorecedoras da demanda criadora e incentivadora do mercado. Mas, acaso se esgotasse apenas na ineficácia, talvez não fosse tão grave a irracionalidade da criminalização. Despejando-se sobre os consumidores, que, além de atingidos pelos maiores riscos à saúde, sofrem a superexploração decorrente dos preços artificialmente elevados, a, freqüentemente, levá-los a se empregar no tráfico ou a adotar a prática de outros comportamentos ilícitos para obter a droga, os altos custos sociais da criminalização se espraiam pelo conjunto das sociedades que, sem perceber a irracionalidade de suas reivindicações, clamam pela solução penal – na realidade, a própria criadora dos problemas que, enganosamente, anuncia poder resolver.

A criminalização introduz uma variável na estrutura do mercado, que, provocando a artificial elevação dos preços, irá gerar enormes lucros, assim paradoxalmente funcionando como um dos mais poderosos incentivos à produção e ao comércio de tais mercadorias.

Estes enormes lucros, estabelecendo uma relação funcional com a circulação legal do capital, trazem imenso poder de corrupção: o mercado das drogas ilícitas vai produzir graves desvios perigosamente contaminando órgãos do aparelho estatal e do sistema financeiro.

Mas, há outro efeito ainda mais grave. Ao tornar ilegais determinados bens e serviços, como ocorre também em relação ao jogo, o sistema penal funciona como o real criador da criminalidade e da violência. Ao contrário do que se costuma propagar, não são as drogas em si que geram criminalidade e violência, mas é o próprio fato da ilegalidade que produz e insere no mercado empresas criminosas – mais ou menos organizadas – simultaneamente trazendo, além da corrupção, a violência como outro dos subprodutos necessários das atividades econômicas assim desenvolvidas, com isso provocando conseqüências muito mais graves do que eventuais malefícios causados pela natureza daquelas mercadorias tornadas ilegais.

Nestes tempos de medo e insegurança, de pânico em torno das ameaças vindas da criminalidade, talvez esteja aí o argumento decisivo para a recuperação da racionalidade. Basta olhar e seguir o exemplo da história: quem derrotou a violência da Chicago dos anos 30 não foram os Intocáveis de Eliot Ness – foi, simplesmente, o fim da Lei Seca.

Maria Lúcia Karam Juíza-auditora da Justiça Militar da União, membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e da Associação Juízes para a Democracia

KARAM, Maria Lúcia. Drogas: a irracionalidade da criminalizaçäo. Boletim IBCCRIM. São Paulo, n.45, p. 09-10, ago. 1996.

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