quinta-feira, 18 de março de 2010

Artigo: Desafios da advocacia criminal no brasil

Assim como na Alemanha, o sistema jurídico no Brasil tem na Constituição da República o seu ápice. Na famosa pirâmide das normas de Hans Kelsen, ela ocupa o ponto mais elevado.
E para que os senhores apanhem a concreta dimensão de qual seria hoje o grande desafio da advocacia criminal no Brasil, vejam o que, invocando o pensamento de Carl Schmitt, mas distorcidamente, disse um juiz federal sobre ela: “A constituição não é mais importante que o povo, os sentimentos e as aspirações do Brasil. É um modelo, nada mais que isso. Contém um resumo das nossas idéias. Não é possível inverter e transformar o povo em modelo e a Constituição em representado. A Constituição tem o seu valor naquele documento, que não passa de um documento. Nós somos os valores e não pode ser interpretada de outra forma. Nós somos a Constituição”.
Se um juiz criminal parte dessa premissa conceitual na condução de grande parte dos casos criminais mais relevantes do País, imaginem qual é o apreço que ele tem por tudo que a Constituição relaciona e consagra como direitos e garantias indivi­duais fundamentais com projeção no processo criminal; que valor um magistrado, que tem essa concepção, atribui à clausula do devido processo legal, à ampla defesa, ao contraditório, à inadmissibilidade das provas ilícitas, à necessidade de fundamentação concreta de todas as decisões judiciais?
Pois são esses, entre outros, os valores constitucionais que, incidentes sobre o processo criminal, impõem a conclusão de que nessa, especialmente nessa área de atuação do estado, os fins não justificam os meios. O combate à criminalidade não pode prescindir do respeito e da observância do devido processo legal; ou seja, os meios, as normas que regulam a atividade persecutória do estado é que condicionam a legitimidade da obtenção dos fins, da prevenção e do combate à criminalidade.
Mas o que se vê na prática – há exceções, julgadores sensatos, equilibrados, que não se deixam impressionar pela pressão da opinião pública, por este senso distorcido de impunidade e que conduzem os seus casos criminais com estrita observância das regras fundamentais do processo criminal – é que muitos, infelizmente, agem e pensam de forma diversa. Acabam transformando, por exemplo, e isto é corriqueiro no País, as prisões processuais, as prisões que são e devem ser necessariamen­te instrumentais, cautelares, como a prisão temporária e a prisão preventiva, acabam transforman­doas, embora disfarçadamente, em punição antecipada.
Prejulgam um caso, muitas vezes inflamados pela opinião pública, pelo clamor so­cial. Concebem, na íntima convicção, que o acusado ou mero investigado é culpado, que ele merece uma punição exemplar, mas, como não podem aplicá-la, no plano formal, sumariamente, usam a prisão preventiva. Invocando, em termos sempre genéricos, abstratos, retóricos, a necessidade de garantir a regular colheita de provas, a necessidade de assegurar, no futuro, a aplicação da lei penal, decretam uma prisão preventiva cuja essência, porém, não é senão a de antecipação de pena para aplacar a sensação de impunidade que a sociedade nutre, sim, mas que é insuflada pelo sensacionalismo. E por aquele surrado discurso de que “rico não vai para a cadeia”.
Hoje, grandes empresários, banqueiros, operadores do mercado financeiro, quando não já condenados e cumprindo pena, efetivamente respondem a processos. Muitos deles, ademais, submetidos a prisões preventivas, algumas revogadas, outras não.
É o ideal? Não. O Estado não conseguiu, ao longo da história, e jamais conseguirá, refrear a criminalidade. Diz o professor Miguel Reale Junior, da Universidade de São Paulo, que “o preço da liberdade é o eterno delito. O crime só desaparecerá quando findar a liberdade”. E a lógica desse pensamento é vigorosa, já que, segundo Durkheim, “uma vez que não pode existir sociedade em que os indivíduos não divirjam mais ou menos do tipo coletivo, é inevitável também que, entre estas divergências, existam algumas que apresentem caráter criminoso”. Logo, coexistência humana e extinção da criminalidade são fenômenos que, em qualquer parte do mundo, se repelem, se excluem. O que se deve perseguir e é possível conseguir, em termos reais, concretos, é reduzi-la a patamares, a índices socialmente aceitáveis. Mas “segurança absoluta” e “criminalidade zero” são verdadeiras utopias. E se no Brasil a criminalidade ainda é grande e a impunidade também, o fato é que significativas mudanças para melhor ocorreram.
Mas, em matéria de respeito pelos direitos individuais fundamentais, sobretudo os que se entrelaçam com as prerrogativas da advocacia, o sistema ainda claudica demais.
Há dispositivos constitucionais essenciais para raciocinar com desenvoltura sobre a questão: a dignidade da pessoa humana, fundamento mesmo da República Federativa do Brasil; a liberdade individual como bem essencial do ser humano; a proibição de sua supressão ou do patrimônio do cidadão sem o devido processo legal; a necessidade de que todas as decisões judiciais, principalmente as que impõem restrições aos direitos fundamentais, sejam concretamente fundamentadas; a inadmissibilidade das provas obtidas por meios ilícitos, a demonstrar, e com a clareza do sol mediterrâneo, que os fins realmente não justificam os meios, pois, do contrário, o fim (combate à criminalidade) autorizaria a obtenção da prova por qualquer meio, inclusive ilicitamente.
Relativamente a esses e outros dogmas constitucionais, o que se vê na realidade da persecução criminal no Brasil?
Graves e reiteradas transgressões. A começar, por se impedir o advogado de ter acesso aos autos, ao conteúdo do procedimento penal, sob a invocação de que ele tramita em sigilo. O juiz manda prender preventivamente o cidadão, manda realizar diligência de busca e apreensão na sua residência, no seu escritório, na sua empresa e, mesmo depois de executadas todas essas medidas, mesmo depois de o cidadão estar preso, veda-se ou dificulta-se muito o acesso do advogado, que ele constituiu para assisti-lo juridicamente, aos autos, inviabilizando-se, portanto, o necessário conhecimento do objeto, dos fundamentos e do desenvolvimento da respectiva persecução criminal. E isto ocorre com uma frequência tão impressionante, que dia após dia Supremo Tribunal proclama que o sigilo do procedimento não se opõe ao advogado regularmente constituído pelo investigado, exceto no que concerne às diligências ainda em curso ou futuras, para que não sejam frustradas pelo conhecimento antecipado. Ainda assim, há juízes que insistem em negar aos advogados acesso a procedimentos criminais “sigilosos”.
Outra: interceptação de comunicações telefônicas. Essa medida, que deveria ser, pela clara dicção da Constituição da República, excepcional, transformou-se, no Brasil, em regra. Hoje, interceptação telefônica, principalmente em crime financeiro, é a primeira providência. Logo de saída, as autoridades policiais, alegando a existência de indícios de que fulano pode ter praticado evasão de divisas, operações de câmbio não autorizadas, lavagem de dinheiro, pedem aos juízes autorização para interceptar as suas comunicações telefônicas. E, com ela, sua irmã: a busca e a­preen­são. É a receita básica da investigação criminal hoje no Brasil, sobretudo em matéria de crimes financeiros. Os juízes as autorizam. E, muitas vezes, sem fundamentação concreta. Limitam-se a dizer: “a autoridade policial representa pela interceptação das comunicações telefônicas e pela busca e apreensão em relação a fulano ou beltrano, afirmando haver indícios de que eles podem ter praticado tal ou qual crime. Apesar de a Constituição garantir a inviolabilidade das comunicações, esse direito não é absoluto. Ele cede ao interesse público. Assim sendo, defiro a representação da autoridade policial e autorizo a interceptação e a busca e apreensão”. Essa, na essência, a “fundamentação”!
Sobre o prazo da interceptação, embora haja interpretações divergentes, diz a lei atualmente em vigor: quinze dias, mais quinze. Já se entendeu que essa prorrogação de quinze dias pode ocorrer tantas vezes quantas for necessária e que, portanto, o prazo máximo não seria o de quinze dias mais quinze e sim o de quinze dias mais tantas prorrogações de quinze quantas necessárias ao esclarecimento do fato. Pois bem, há casos de interceptações ao longo de um ano, um ano e meio, dois anos, quase três. Para que ouvir as conversas de uma pessoa por tanto tempo? Para apurar prova de um crime pretérito, passado, já que este seria e deveria ser o fim, o escopo da interceptação? Ou uma permanente devassa na vida do cidadão à procura de todo e qualquer fato que ele esteja praticando presentemente e que possa constituir crime? Isso é transformar a investigação criminal num permanente “Big Brother”, é colocar uma câmera sobre o cidadão para capturar o que ele está fazendo e, se eventualmente ele fizer algo que possa caracterizar infração penal, persegui-lo criminalmente. Não é retrospectiva a busca, é prospectiva. É monitoramento de conduta, não é busca de prova de fato pretérito. No meu modo de ver, escandalosa a inconstitucionalidade de interceptação telefônica com esse perfil. Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça considerou ilícita a escuta telefônica realizada em um caso do Paraná, por haver ela perdurado por dois anos. A Corte entendeu que houve extrapolação, em larga medida, dos limites da lei, a invalidar essa prova.
Há mais. Prisões processuais que apenas no rótulo têm função cautelar, mas que, na essência, na substância, pelas razões que os juízes relacionam para decretá-las, são prisões que representam antecipação de pena como resposta ao clamor social. Visceral antagonismo com um dos princípios constitucionais mais caros do processo penal: “ninguém será considerado culpado enquanto não transitar em julgado a sentença penal condenatória”, isto é: ninguém pode ser tratado como culpado enquanto não houver uma condenação definitiva e, portanto, não pode sofrer prisão proces­sual como resposta à opinião pública, como forma de o Estado mostrar à sociedade que não há impunidade, como manifestação de severidade da justiça criminal para inibir outros possíveis delitos. Prisão preventiva não é e não pode ser punição. Punição é a pena criminal depois da condenação definitiva; aí, sim. Se o devido processo penal houver sido observado, ela será justa, será inafastável, será expressão autêntica e fiel do estado democrático de direito. Agora, a pretexto de responder à ânsia social de combate à criminalidade, inverter a ordem lógica, natural e incondicional das coisas para permitir que os fins justifiquem os meios, é um grande primeiro passo para a implantação de regimes como aqueles derivados da concepção de que a Constituição é um “mero documento” e o que interessa são os anseios e as aspirações do povo ou o que o juiz acha da Constituição!
O grande desafio da advocacia criminal no Brasil reside em lutar incansavelmente pela observância do devido processo legal, que não é favor, não é indulgência do Estado; é o estrito cumprimento da legislação, que ele próprio, Estado, editou. Embora a maioria dos juízes e tribunais diga não existir contraditório no inquérito poli­cial, nele conserva ao investigado direitos fundamentais: pode manter-se em silêncio, não é obrigado a produzir provas contra si, o seu advogado pode e deve ter acesso aos autos, cabendo-lhe, sim, requerer ao judiciário que corrija os abusos, as ilegalidades e os desvios do procedimento investigatório.
Em linhas gerais, esse é o cenário atual do sistema penal brasileiro e, na confrontação entre os direitos e garantias e o que na prática acontece, o que panoramicamente se pode ver sobre os desafios da advocacia criminal no Brasil, os quais resumo numa palavra ou numa expressão: devido processo, não apenas legal, mas devido processo penal.

Notas

* Transcrição resumida de palestra proferida na Conferência Anual Internacional promovida pela Associação Germânico-Brasileira de Advogados em Colônia (Köln), Alemanha, nos dias 14 e 15 de novembro de 2008.


Leônidas Ribeiro ScholzAdvogado criminal. Conselheiro Instituto de Defesa do Direito de Defesa – IDDD. 


Boletim IBCCRIM nº 207 - Fevereiro / 2010.

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