domingo, 28 de março de 2010

Artigo: Notas sobre a reincidência penal

Vivemos um tempo de total repulsa aos chamados “criminosos”. A inclinação da sociedade não é só no sentido de punir pelo fato praticado. Querem o extermínio daqueles que cometem o crime. Ou pior, daqueles que são acusados em processo penal. 
Mas, felizmente, essa é a opinião pública. Não é a que povoa a mente dos aplicadores do Direito. Nem poderíamos imaginar se a resposta fosse verdadeira. Seria o caos. Volveríamos para tempos primevos de nossa história. Certamente assim não queremos e assim não permitiremos. 
“Responder” a processo criminal não pode ser encarado como juízo antecipatório de culpabilidade, nem tampouco como fundamento para pensamentos discriminatórios, que infelizmente sabemos existentes. 
A questão não é gostar ou não de “criminosos”, e sim, é a de gostar das regras estabelecidas pela Constituição da República. Já fomos indagados: Você gosta de “bandidos”? Nossa resposta? Certamente foi negativa, mas com algumas ressalvas. Pensamos que é necessário pagar um preço para viver em um Estado de Direito. E nossa Constituição estabelece um catálogo a que devemos obediência irrestrita: são os direitos fundamentais. Para quem não sabe (ou ignoram saber) os acusados em processo criminal são portadores desses direitos. 
A reincidência é um instituto penal descrito no art. 63 do Código Penal com repercussão em diversos outros institutos. Por vezes a reincidência exerce papel de filtro de aplicação de alguns direitos em matéria penal. É dizer, pode ela obstar a aplicação de alguns Direitos relacionados à despenalização. Cita-se, por exemplo, a vedação da substituição de pena aos reincidentes em crime doloso (CP, art. 44, II). 
O art. 63 do Código Penal conceitua a reincidência da seguinte forma: “Verifica-se a reincidência quando o agente comete novo crime, depois de transitar em julgado a sentença que, no País ou no estrangeiro, o tenha condenado por crime anterior.”. 
Já a Lei das Contravenções Penais: “Verifica-se a reincidência quando o agente pratica uma contravenção depois de passar em julgado a sentença que o tenha condenado, no Brasil ou no estrangeiro, por qualquer crime, ou, no Brasil, por motivo de contravenção.”. 
O conceito é autoexplicativo. A única ressalva fica a cargo do cometimento de contravenção penal. 
Vamos por partes. 
Pela disciplina normativa (CP, art. 63) é possível extrair-se os requisitos da reincidência, são: (i) trânsito em julgado de sentença penal condenatória por crime anterior; (ii) prática do novo crime. 
Quanto à  Lei de Contravenções Penais, a reincidência se verificará nos seguintes casos: (art. 63 do CP combinado com o art. 7º da Lei de Contravenções Penais): (i) crime (transitado em julgado) +contravenção penal (cometimento): trata-se da 1ª hipótese; (iii) contravenção penal (transitado em julgado) + contravenção penal (cometimento): trata-se da 2ª hipótese. 
Não se caracteriza a reincidência a contravenção penal transitada em julgado e o posterior cometimento de crime. Ressalta-se que esta hipótese é apta a gerar maus antecedentes penais, uma vez que o cometimento da contravenção penal é fato incontroverso e coberto pelo manto da coisa julgada criminal. 
Com efeito, o Código Penal brasileiro adotou o sistema da temporariedade da reincidência, nesse sentido é a redação do art. 64 do CP: “Para efeito de reincidência: I - não prevalece a condenação anterior, se entre a data do cumprimento ou extinção da pena e a infração posterior tiver decorrido período de tempo superior a 5 (cinco) anos, computado o período de prova da suspensão ou do livramento condicional, se não ocorrer revogação.”. Bem como afastou a sua consideração em face dos crimes militares próprios e políticos (inciso II do mesmo artigo). 
Ponto que merece ser salientado é que a transação penal não tem o condão de gerar a reincidência penal, muito menos maus antecedentes penais. Transação penal não é condenação. É bom que essa premissa seja dita. A aplicação da transação penal, proposta pelo órgão do Ministério Público, não tem natureza condenatória, não podendo carregar a pecha de “condenação imprópria”, tal termo merece ser banido do meio jurídico penal, e por razões simples. Não há condenação, porque não há processo, e ponto final. 
Por ser circunstância de caráter pessoal, a reincidência não se comunica aos demais co-autores e/ou aos participes do crime. Isso é decorrência lógica do art. 30 do Código Penal, que aduz: “não se comunicam as circunstâncias e as condições de caráter pessoal, salvo quando elementares do crime”. Considerando que a reincidência não é elementar de crime algum em nosso ordenamento jurídico, a aplicação desse comando normativo penal ao instituto da reincidência é medida que se impõe. 
Outro ponto fundamental é que a reincidência deve ser comprovada por certidão cartorária. Entretanto, a jurisprudência vem suavizando essa regra, admitindo a folha de antecedentes para comprovar a reincidência. Devemos analisar com cuidado essa “suavização”. É dizer, levando-se em consideração a má estrutura de alguns institutos de informação penal, isso pode levar a situações absurdas, como já tivemos o desprazer de presenciar quando éramos parte integrante do corpo de apoio jurídico da Defensoria Pública de Mato Grosso. Situações tais como, erro na aferição de trânsito em julgado, consideração de maus antecedentes como reincidência, etc. 
Com efeito, primário é aquele que não é reincidente, e vice versa, sendo este último aquele que cometeu novo delito nos cinco anos depois da extinção da sua última pena. Nesse sentido, descabe considerarmos a expressão “tecnicamente primário”, em alusão àquele que ostenta inquéritos policiais e/ou ações penais em andamento. E a razão é simples. Não existe esse situação intermediária, isso pelo fato de a Constituição da República admitir apenas duas figuras: o inocente e o culpado. 
E se o cometimento do novo crime se der exatamente no dia do trânsito em julgado da sentença penal condenatória pelo cometimento do crime anterior? Bom, tal fato não terá o condão de gerar a reincidência, e a razão é óbvia. A lei penal é expressa em mencionar “depois” do trânsito em julgado. Assim, o advento do trânsito em julgado é condição de existência da possibilidade de surgimento da reincidência penal, não só o advento, mas a passagem do dia do trânsito em julgado. Exemplificando: se o trânsito em julgado (pelo cometimento de crime) ocorrer em 13 de março de 2010, o agente só será reincidente se cometer novo crime a partir do dia 14 de março de 2010. 
A reincidência tem, também, o condão de afastar a aplicação de determinados regimes de cumprimento de pena. É que o art. 33, em seu § 2º, do Código Penal, estabelece alguns critérios de aplicação de regime inicial de cumprimento de pena, em análise conjunta com a quantidade de pena privativa de liberdade efetivamente aplicada por ocasião de sentença penal condenatória. 
Assim é  a redação do art. 33 do Código Penal: 
“Art. 33 – (...)
§ 2º - As penas privativas de liberdade deverão ser executadas em forma progressiva, segundo o mérito do condenado, observados os seguintes critérios e ressalvadas as hipóteses de transferência a regime mais rigoroso:
a) o condenado a pena superior a 8 (oito) anos deverá começar a cumpri-la em regime fechado;
b) o condenado não reincidente, cuja pena seja superior a 4 (quatro) anos e não exceda a 8 (oito), poderá, desde o princípio, cumpri-la em regime semi-aberto;
c) o condenado não reincidente, cuja pena seja igual ou inferior a 4 (quatro) anos, poderá, desde o início, cumpri-la em regime aberto.
(...)”. 
Assim, se reincidente o agente, mesmo se o crime cometido comportar a aplicação dos regimes semiaberto, ou aberto, o regime será, pela visão do Código Penal, o fechado. Isso por pura aplicação mecânica.
Esse entendimento perdurou por algum tempo. Atualmente esse rigor punitivo não tem mais lugar, e isso pela visão constitucional do Direito penal moderno. 
O Supremo Tribunal Federal em repetíveis julgados assentou que a reincidência não deve ser o único vetor capaz de determinar o regime de cumprimento inicial de pena (STF, HC n. 94.045 e 97.424). 
A análise deve recair conjuntamente no § 3º do art. 33 do Código Penal, que aduz: “A determinação do regime inicial de cumprimento da pena far-se-á com observância dos critérios previstos no art. 59 deste Código”.
Ou seja, as circunstâncias judiciais são sopesadas para, em consideração com a quantidade imposta da pena, fixar o regime de cumprimento inicial de pena. 
Esse entendimento se baseia em duas premissas: 
A primeira está prevista na Súmula n. 719 do Supremo Tribunal Federal, que aduz: “A imposição de regime de cumprimento mais severo do que a pena aplicada exige motivação idônea”. Tal enunciado é de extrema importância pelo fato de colocar “uma pá de cal” sobre o assunto de que só bastaria a pena aplicada para se fixar o regime inicial de cumprimento de pena. Já não era sem tempo desse pensamento cair no esquecimento. 
Tanto isso é verdade que no próprio Supremo Tribunal Federal desponta entendimento tranqüilo no sentido de que é lícita a adoção de regime inicial de cumprimento de pena mais severo do que a pena aplicada, desde que desfavoráveis as circunstâncias judiciais e a decisão seja devidamente fundamentada. 
A segunda premissa está contida na Súmula 269 do Superior Tribunal de Justiça, que aduz: “É admissível a adoção do regime prisional semiaberto aos reincidentes condenados a pena igual ou inferior a 4 (quatro) anos se favoráveis as circunstâncias judiciais”. 
Retira-se uma conclusão: os Tribunais Superiores entendem que a reincidência, por si só, não é suficiente para determinar cumprimento de pena em regime mais gravoso. 
Em conclusão, há quem não compatibilize a reincidência com a não aplicação da dupla punição (ne bis in idem). Ressalta-se que há forte entendimento no sentido da não recepção do art. 63 pela atual ordem constitucional, um Tribunal característico dessa posição é o do Rio Grande do Sul. 
A tese de dupla punição é sedutora, entretanto não coadunamos com esse entendimento. Se assim fosse, poderíamos cogitar que até a análise das circunstâncias pessoais (a exemplo a personalidade) também seria uma dupla valoração, se fosse utilizada em mais de um processo crime. 


O autor.
Fernando Cesar Faria é graduado em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso. Especializando em Direito Penal e Processo Penal pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Estado de Mato Grosso. Servidor efetivo do Ministério Público do Estado de Mato Grosso. Blog: www.fernandofaria.com.br 

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