sexta-feira, 26 de março de 2010

Artigo: Reforma deveria diminuir número de recusos


Tramita no Congresso projeto para um novo Código de Processo Penal. A iniciativa merece louvor, pois o código vigente, de 1941, precisa de atualizações. Espera-se, porém, que um novo código venha para aprimorar o sistema de Justiça criminal, tornando-o mais célere, mais eficiente e mais justo. Há dúvidas se esse é o caso do projeto.
Em primeiro lugar, o projeto aumentará a morosidade da Justiça. A causa principal da demora é o excesso de recursos, que faz com que um caso seja submetido a até quatro instâncias de julgamento. Seria de esperar, então, que qualquer reforma diminuísse o número de recursos.
Note-se que não se coloca em dúvida o direito de pleitear a revisão de uma condenação, o que diminui os riscos de injustiça. Mas outra questão é admitir recursos contra todas as decisões proferidas no processo, mesmo que não sejam finais e não tragam um prejuízo imediato à parte -as chamadas decisões interlocutórias. E o projeto amplia o cabimento de recursos contra essas decisões.
Pelo projeto, caberá agravo contra todas as decisões na fase de investigação e na de execução da pena. Além disso, prevê-se agravo em outras 16 hipóteses, o que é muito amplo. O procedimento proposto para o agravo é lento, tendo sido copiadas normas do processo civil que foram abandonadas em 1995. O processo ficará atravancado, e os tribunais serão sobrecarregados com recursos contra decisões interlocutórias, impedindo que decidam com rapidez e profundidade recursos contra decisões finais.
Em segundo lugar, o projeto retira do juiz o poder de instrução complementar. Atualmente, a iniciativa de apresentar provas é das partes, acusação e defesa, mas o juiz pode, a bem da reconstrução dos fatos mais próxima da verdade, complementar as provas.
Pelo projeto, partindo de uma tese radical e sem tradição do Direito brasileiro, o juiz só poderá suprir falhas da defesa. Se a acusação esquecer provas, não haverá remédio. O processo penal ficará refém das partes, uma espécie de "laissez-faire" na Justiça.
Em vários países, como Itália (artigo 507 do CPPI), França (artigo 283 do CPPF) e Estados Unidos (regra 614 da "Rules of Evidence"), resguarda-se a iniciativa probatória do juiz, sem exceções, o que deve dizer algo quanto à sua necessidade. Já pelo projeto, o resultado do processo será entregue inteiramente à sorte do duelo entre as partes.
Em terceiro lugar, o projeto nasce velho. No mundo atual da criminalidade complexa, têm um papel importante os métodos especiais de investigação, interceptação telefônica, escutas ambientais, ação controlada, infiltração de agentes e delação premiada.
Desses, o projeto trata apenas da interceptação, esquecendo os demais. O projeto também não regula a colheita de material biológico do acusado para a realização de exame de DNA, que é uma prova de grande importância no mundo contemporâneo em crimes cometidos com violência.
Em quarto lugar, o projeto tem vários pontos problemáticos, e aqui só é possível apontar alguns.
Por exemplo, estabelece prazos máximos de duração da prisão preventiva quando o processo já está em grau de recurso. Apesar da boa intenção, os prazos propostos estão distantes da realidade. Estimularão manobras protelatórias para retardar o julgamento e, com isso, lograr a liberdade pelo decurso do prazo. O projeto ainda restringe a cooperação internacional, confundindo os requisitos desta com os da extradição, com o risco de transformar o país em paraíso de criminosos e do produto de seus crimes.
Também impede a decretação da prisão preventiva com base somente na gravidade do crime, o que significa que mesmo pessoas acusadas de crimes bárbaros poderão permanecer livres durante o processo, e isso independentemente das provas que existirem contra elas.
Se o projeto agrava a morosidade da Justiça, torna o processo refém das habilidades das partes, não regula os métodos modernos de investigação e contém vários pontos problemáticos, é de refletir se não é melhor ficar com o código de 1941 ou se não é necessário maior amadurecimento antes de substituí-lo.


Sergio Fernando Moro é juiz da vara especializada em lavagem de dinheiro em Curitiba, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFPR.
 
Originalmente publicado no jornal Folha de São Paulo no sábado (20/3).

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