sábado, 14 de fevereiro de 2009

Artigo: A constituição do crédito tributário, a consumação do crime tributário e a extinção da punibilidade pela prescrição

Assunto polêmico o referente à relação existente entre a constituição do crédito tributário e a persecução penal dos crimes contra a ordem tributária.

Com raras exceções(1), durante muito tempo, prevaleceu o entendimento de que, com a ocorrência do fato gerador, havendo indícios da prática de crime contra a ordem tributária, a persecução penal não precisaria aguardar a constituição do crédito tributário, ou seja, o término do procedimento administrativo fiscal. Multiplicaram-se decisões judiciais alardeando a total independência das esferas fiscal e criminal.

Em contrapartida, debatiam-se os doutrinadores para mostrar que a constituição do débito seria prejudicial à ação penal, por constituir condição de procedibilidade, condição objetiva de punibilidade, ou elemento do tipo.

Mais recentemente, consolidou-se o entendimento de que a persecução penal, pela suposta prática de crime contra a ordem tributária, deve aguardar o término de eventual procedimento administrativo fiscal com a constituição do crédito tributário, diretamente ligado à tipicidade penal, uma vez que a supressão e a redução do imposto devido integram o tipo.

Em outras palavras, como só é possível saber se houve redução ou supressão de tributo com o término do procedimento administrativo fiscal, a tipificação, e, por conseqüência, a consumação do delito, só ocorre quando a Administração decide definitivamente a questão.

Como conseqüência lógica desse entendimento — de que o crime tributário somente se consuma quando da constituição do débito — vêm sendo prolatadas decisões no sentido de que o prazo prescricional somente começa a correr com o término do procedimento administrativo fiscal(2).

Apesar do respeito ao entendimento esposado, alguns pontos nos inquietam.

É muito discutível defender que a redução ou supressão de tributo ocorre somente com a constituição do crédito tributário se, para fins de incidência de encargos, multa e juros moratórios, o tempo da supressão ou redução é o momento da infração, atestada no auto de infração fiscal.

Na mesma linha, não há como considerar que o crime se consuma apenas com a decisão definitiva no âmbito administrativo se o próprio Código Tributário Nacional, no artigo 144, diz expressamente que “o lançamento reporta-se à data da ocorrência do fato gerador da obrigação e rege-se pela lei então vigente, ainda que posteriormente modificada ou revogada”.

A decisão definitiva na esfera administrativa está sim relacionada à tipicidade, não sob o enfoque da consumação, mas sob o da materialidade.

Fazendo um paralelo com o crime de homicídio, tem-se que se Tício atira em Caio e esse vem a morrer, sendo submetido a exame necroscópico um mês depois: a ação de matar alguém se deu no dia do disparo, a consumação no dia da morte e a constatação da materialidade delitiva na data do exame.

Ou seja, o fato de a perícia atestar a morte vários dias após sua ocorrência não altera o dia em que se deu, ou consumou, o homicídio.

Da mesma forma, o fato de o Fisco atestar a existência do tributo devido apenas quando da prolação da decisão administrativa definitiva não altera o momento da consumação do crime. A decisão definitiva funcionaria como um exame de corpo de delito(3).

O entendimento de que a consumação (e não a constatação da materialidade delitiva) se dá apenas com a decisão definitiva no âmbito fiscal tem gerado situações bastante teratológicas.

A título de exemplo, relata-se que um cidadão, processado criminalmente, durante treze anos, por suposta omissão de informação de rendimentos à Receita, recebeu habeas corpus, de ofício, anulando toda a persecução, uma vez que o feito fora inicia­do antes da decisão fiscal definitiva.

Pois bem, como ressarcimento pelo constrangimento ilegal sofrido, o mesmo cidadão viu-se novamente denunciado, pelos mesmos fatos, dado o entendimento de que a consumação do delito se dera apenas com a constituição do crédito tributário e que, somente então, teria tido início o curso prazo prescricional.

É compreensível o esforço de evitar a impunidade, procurando transportar a consumação do crime para o momento da decisão definitiva na esfera administrativa, que passaria a ser o termo inicial do prazo prescricional.

No entanto, por mais importante que seja a política criminal, por maior que seja sua valorização acadêmica em sede nacional e internacional, não se podem colocar de lado princípios caros ao Direito Penal.

Até os crimes mais graves e mais atentatórios à lei e à moral prescrevem. Não se concebe lutar contra a prescrição de um homicídio, aduzindo que o corpo foi encontrado muitos anos após os fatos e que o prazo prescricional somente correria da data da perícia que constatou a morte por causas externas. Ademais, justamente por força do reprovabilidade que circunda, e deve circundar, o homicídio, o Código Penal prevê outras causas exclusivas de interrupção de seu prazo prescricional (pronúncia, confirmação da pronúncia).

Se gera impunidade o reconhecimento de que a decisão administrativa definitiva está relacionada à materialidade e não à consumação do crime tributário, que se legisle, prevendo, expressamente, a suspensão do curso do prazo prescricional, o qual, não há como fugir, deve começar com a consumação do crime, muito anterior à constatação de sua materialidade.

O que não se pode admitir é qualquer tipo de interpretação analógica ou extensiva que prejudique o imputado.

Notas

(1) Pode-se citar precedente relatado por Sylvia Steiner, em que restara assentado: “Enquanto pendente de julgamento recurso administrativo que pretende comprovar a inexistência de débito, não existe justa causa para a ação penal, pois não demonstrada a materialidade delitiva...” (TRF 3ª Região, HC 98.03.041097-0, relatora Sylvia Steiner, j. 14/09/1999).

(2) “... Enquanto não se constituir, definitivamente, em sede administrativa, o crédito tributário, não se terá por caracterizado, no plano da tipicidade penal, o crime contra a ordem tributária, tal como previsto no art. 1º da Lei nº 8.137/90. Em conseqüência, e por ainda não se achar configurada a própria criminalidade da conduta do agente, sequer é lícito cogitar-se da fluência da prescrição penal, que somente se iniciará com a consumação do delito (CP, art. 111, I). Precedentes” (STF, 84092/CE, 2ª T., min. Celso de Mello, j. 22/06/2004, DJ 03/12/2004, p. 50) (destacamos).

(3) Ainda assim, passível de revisão por ser unilateral.


Janaina Conceição Paschoal e Jorge Coutinho Paschoal, Advogados, sendo a primeira professora-doutora de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).

PASCHOAL, Janaina Conceição; PASCHOAL, Jorge Coutinho. A constituição do crédito tributário: a consumação do crime tributário e a extinção da punibilidade pela prescrição. Boletim IBCCRIM, São Paulo, ano 16, n. 194, p. 2-3, jan. 2009.

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