terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Artigo: ½ calabresa, ½ garantia fundamental

Em artigo publicado no mês de maio de 2006(1), demonstrávamos preocupação com os rumos dados pelos órgãos julgadores à aplicação da Lei 9.296/96, responsável por definir o procedimento a ser seguido pelo juiz para determinar a quebra dos sigilos telefônicos e telemáticos de cidadãos investigados.

Naquela oportunidade, chegamos a dizer que a lei possui um cunho claramente garantista que, contudo, vinha sendo desvirtuado pelos órgãos oficiais responsáveis pelo controle da máquina repressora estatal, valendo destacar o seguinte trecho contido naquele artigo: “em meio ao emaranhado de leis arcaicas e mal elaboradas que reinam na legislação penal pátria, partindo-se de uma interpretação literal dos dispositivos contidos na referida Lei 9.296/96, é possível vislumbrar uma luz no fim do túnel. Isto porque se trata de uma lei que nasceu sob uma orientação claramente garantista, preocupada em preservar ao máximo os direitos e garantias fundamentais contidas em nossa Carta Magna, salvo em nome da estrita necessidade de sua mitigação e dentro de limites razoáveis.”

A luz ao fim do túnel ali referida veio com o julgamento, pela Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, do famoso e histórico Habeas Corpus de número 76.686, realizado no dia 9 de setembro de 2008, pelo qual restou consignado de forma expressa que as prorrogações das quebras anteriormente decretadas só podem ser efetuadas em atenção ao disposto no artigo 5º, da Lei 9.296/96, ou seja, “não poderá exceder o prazo de quinze dias, renovável por igual tempo uma vez comprovada a indispensabilidade do meio de prova”.

O acórdão do referido julgado sequer foi publicado, mas o entendimento ali esposado já havia ecoado pelos quatro cantos do país e, muito provavelmente, servido de alerta e lição para que todos os magistrados pensassem melhor antes de decretar a mitigação de um direito fundamental consagrado constitucionalmente de forma meramente burocrática e descuidada. Os pingos pareciam ter sido efetivamente colocados nos “Is” e o fim dos abusos freqüentemente cometidos pelas autoridades persecutórias parecia estar a caminho.

O que não se esperava, porém, era que o Supremo Tribunal Federal, guardião maior da nossa Constituição, pouco mais de dois meses depois — dia 20 de novembro de 2008 —, ao apreciar o recebimento da denúncia oferecido no Inquérito 2424, onde como um dos acusados figurava o ministro do Superior Tribunal de Justiça Paulo Medina, jogasse por terra toda a lição emanada do Superior Tribunal de Justiça e definitivamente rasgasse a Lei 9.296/96. Foi exatamente o que foi feito pela maioria do Plenário daquela Corte Suprema.

Ao se debaterem sobre a análise da preliminar destinada a obter a anulação da prova devido ao excessivo período de monitoramento — no caso concreto de nove meses —, o posicionamento da Corte foi no sentido de que as prorrogações podem se dar indefinidamente, desde que devidamente fundamentadas cada uma das decisões que as deferem. E impõe-se ressaltar que o entendimento perfilhado pela maioria dos ministros nesse ponto foi o de que a correta leitura do artigo 5º, da Lei 9.296/96 — “não poderá exceder o prazo de quinze dias, renovável por igual tempo uma vez comprovada a indispensabilidade do meio de prova” — não seria a mais adequada frente à redação da lei, indiscutível e clara como a luz solar no sentido de limitar eventuais prorrogações a uma apenas, e por igual período, mas sim que o lapso temporal de quinze dias pode ser inúmeras vezes renovado.

Já com relação à outra preliminar relativa às interceptações telefônicas e telemáticas ali argüidas, a ausência de transcrição das ligações interceptadas no período monitorado, foi mais além o Plenário daquela Corte Suprema e seguiu o voto condutor do ministro Cezar Peluso para decidir que embora o artigo 6º, § 1º, daquela lei, expressamente disponha que “no caso de a diligência possibilitar a gravação da comunicação interceptada, será determinada a sua transcrição” a mesma se faz dispensável quando os áudios são entregues à defesa, sob a justificativa de que a transcrição seria mera imposição legal formal e sem qualquer razoabilidade, que impossibilitaria o julgamento final do processo devido ao grande volume de diálogos captados — no caso dos autos nada mais nada menos do que quarenta mil horas.

O que deixaram os eminentes ministros de notar é que este último posicionamento, absolutamente desprovido de qualquer suporte na lei, anda de mãos dadas com o primeiro e nada mais é do que o resultado final de uma verdadeira bola de neve que chegou agora ao seu ápice de crescimento, criada pela benevolência da jurisprudência pátria, e que parece ter acarretado, quiçá definitivamente, o sepultamento da Lei 9.296/96.

Tal assertiva é facilmente comprovada se confrontado o texto seco da lei com o desenvolvimento jurisprudencial acerca do tema.

Trata-se de uma lei que trata as interceptações telefônicas e telemáticas como uma exceção a ser utilizada quando, e somente quando, não houver outros meios de prova que possam obter sucesso, mas que, na verdade vem sendo utilizada, em regra, como o único meio de prova a subsidiar as cada vez mais fantasiosas e absurdas denuncias oferecidas pelo Ministério Público; trata-se de uma lei que veda a quebra dos referidos sigilos quando não houver indícios de autoria, mas que é utilizada exatamente para se chegar a ela, depois de quebrados sigilos de determinados números telefônicos, sem sequer se saber quem é o proprietário dos mesmos; trata-se de uma lei que exige fundamentação concreta para que sejam decretadas as quebra dos sigilos telefônicos e telemáticos, mas que na verdade não é respeitada, pois as quebras, suas prorrogações e extensões para outros números se dão de forma genérica e como mera continuação burocrática da devassa estatal à intimidade das pessoas; trata-se de uma lei que restringe a quebra dos sigilos por ela mitigados a um prazo certo e determinado de quinze dias, renováveis por igual período, mas que vem sendo admitida por anos a fio; trata-se, por fim, de uma lei que exige a transcrição das ligações gravadas, a fim de que à defesa seja oportunizada a escolha das ligações que aos seus olhos interessem ao bom andamento do processo, mas que agora, infelizmente, com o aval do Supremo Tribunal Federal, dispensa-se em nome do excessivo volume de ligações gravadas.

Depreende-se daí, portanto, que se a lei fosse cumprida, se o prazo nela expresso fosse respeitado, não existiriam, como no caso concreto aqui tratado, quarenta mil horas de ligação a serem ouvidas pela defesa, esta, diga-se de passagem, sem qualquer conhecimento técnico que ao menos possibilite identificar de quem são as vozes gravadas ou a inteireza e legalidade dos diá­logos interceptados.

A lei foi feita para trinta dias, e não meses ou anos ininterruptos. Por isso o grande volume de ligações e impossibilidade de transcrições. Os questionamentos que ficam são: é certo que fiquemos a mercê das interpretações feitas pelos hermeneutas anônimos da Polícia Federal, tidas por indiscutíveis pelos juízes, sem ter direito ao acesso às transcrições das ligações gravadas? É certo que garantias fundamentais sejam mitigadas, em desacordo com a lei que rege a matéria, e em nome tão somente da dificuldade estatal de cumprir a lei? As respostas, embora nos pareça óbvio que devessem ser negativas, caminham em sentido oposto. Torçamos para que a ressalva feita mais de uma vez pelo ministro Eros Grau durante o julgamento aqui comentado, ao destacar que seu entendimento acerca do assunto só se aplicava a “este caso”, se sobressaia e o posicionamento seja revisto doravante. Assim, quem sabe o evidente desconforto demonstrado pelos ministros mais antigos e experientes da Corte — Marco Aurélio, Celso de Mello e Gilmar Mendes — naquela mesma assentada seja suavizado e as garantias fundamentais voltem a ter o tratamento que vinha lhe sendo dispensado pelo Supremo Tribunal Federal em seus últimos julgados.

É o que esperam todos os cidadãos de bem que prezam pelo direito de poder pedir uma pizza sem que as autoridades policiais saibam o sabor.

Nota

(1) “Dez anos da lei de interceptações telefônicas: ainda há salvação para o cunho garantista de sua redação?”, Boletim IBCCRIM, fasc. 162, vol.14, maio de 2006, pp. 2/3.


Délio Lins e Silva Júnior, Advogado em Brasília; mestre em Ciências Jurídico-Criminais e especialista em Direito Penal Econômico e ambos pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Boletim IBCCRIM nº 194 - Janeiro / 2009

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