sexta-feira, 2 de maio de 2008

Artigo: Análise histórica acerca das finalidades das medidas sócio-educativas

Há grande discordância doutrinária quando se discutem as finalidades das medidas sócio-educativas a que estão sujeitos os jovens em conflito com a lei. Alguns defendem sua ênfase primordialmente preventiva especial, de oferecimento ao adolescente de uma oportunidade de melhora comportamental, enquanto outros afirmam fortemente seu caráter penal e sua semelhança com as penas e suas finalidades.

É certo, entretanto, que não se pode chegar a nenhuma conclusão segura sobre a temática sem a observância histórica acerca do tratamento dispensado aos jovens infratores e das implicações do pensamento de cada doutrina que orientou a questão.

Assim, mister o estudo da influência correcionalista espanhola no trato da questão menoril, sob a égide da doutrina da Situação Irregular, bem como das mudanças ocorridas após a Segunda Grande Guerra em relação a consideração da pessoa humana e do valor de sua dignidade, culminando em diversos documentos internacio­nais de proteção e responsabilização de crianças e adolescentes.

As doutrinas moralistas de emenda do infrator são as mais antigas, relacionadas a poena medicinalis já defendida por Platão, ao mencionar a enfermidade da alma, e por São Tomás de Aquino.

Trata-se das mais puras concepções judaica, católica e religiosa em geral, informadoras do Direito Canônico Medieval, de acordo com o qual o castigo serviria co­mo instrumento de correção ao que a ele se submetesse.

Desse modo, “estas concepciones ven en la pena, más que un mal para el que la sufre, una medicina para el alma, algo benéfico para el delincuente, con una función pedagógica”.(1)

Nota-se, então, que a Igreja exerceu grande influência no trato da questão menoril, utilizando-se de uma metodologia filantropo-caritativa. Essa maléfica visão foi, mais tarde, abraçada pelo Estado, quando da instituição de políticas de intervenção destinadas a crianças e adolescentes.

Essas teorias de correção ressurgem e realmente se tornam uma escola de pensamento na primeira metade do século XIX, especialmente com os trabalhos de Carlos David Augusto Röeder, defensor da correção moral do apenado. Destacam-se ainda as teses de Grolmann, Henk, Abegg, Spangenberg e Stelzer, a favor da correção jurídica e Gross, defensor da correção intelectual.

Röeder considera que a pessoa tem livre vontade para agir e que o Direito é uma norma de conduta que deve permear seu comportamento interior e exterior. Seu desrespeito, portanto, enseja que seja o infrator seja tratado como objeto de uma segunda educação que vise sua adaptação à vida social e emenda interior.

A despeito de modernamente surgido na Alemanha, o Correcionalismo ganhou força na Espanha, através de Francisco Giner de los Ríos, tradutor de obras de Röeder, Luis Silvela, Concepción Arenal e Pedro Dorado Montero.

Esse último destacou-se por pretender erigir um direito protetor dos criminosos. Para ele a transformação radical das concepções penais e sociais deveria dar-se através da substituição da punição por medidas protetivas tutelares.

Desse modo, o entendimento de “proteção” dos infratores menores de idade, caracterizava-se pela “implantación de un amplio control social sobre los jóvenes y menores, a cargo de Tribunales Especiales — si bien no necesariamente integrados en el Poder Judicial — extendiendo su campo de actuación no sólo a aquellas conductas consistentes en la infración de las normas jurídico-penales, sino también a uma amplia gama de compor­ta­mientos irregulares o antisocia­les”.(2)

No Brasil, a Doutrina da Situação Irregular foi inaugurada no ano de 1927, com o Código Mello Matos, sendo também adotada pela Lei 6.697/79, o chamado Código de Menores.

Em nome da proteção e correção das crianças e adolescentes, eram cerceados seus mais fundamentais direitos, através da implantação de uma pedagogia correcional.

Não se punia o ato praticado pelo jovem, sendo essa análise inclusive secundária na decisão acerca da necessidade de intervenção estatal. O ato ilícito era considerado meramente sintomático de uma inadaptação social, que por si só ensejava a mencionada intervenção.

Na visão de Gonçalo Nicolau Bandeira “o modelo proteccionista ajuda a empurrar os menores para fora da família, misturando crianças em perigo com menores praticantes de um facto qualificado pela lei penal como crime, ao restringir, precisamente, os direitos dos progenitores como o direito a manutenção dos filhos e à sua educação, o que põe em causa, também aqui, a legitimação do Estado”.(3)

Evidencia-se, pois, a finalidade eminentemente preventiva especial das reprimendas, em seus aspectos negativo e positivo, sem olvidar, entretanto, da prevenção geral, uma vez que, relembrando as lições de Miguel Reale Jr. não se pode estabelecer uma única finalidade para a pena, o que vale aqui para as medidas tutelares.(4)

Como as medidas eram consideradas benéficas, ou seja, uma oportunidade dada ao jovem de reeducar-se, afastavam-se de sua aplicação quaisquer garantias, utilizando-se o jovem como mero instrumento da vontade Estatal.

Cabe ainda recordar que a prevenção especial não levava em conta a conduta praticada pelo infrator, nem sua vontade de ser reeducado, apenas visava a prevenção de um futuro ato delituoso, o qual poderia ser cometido por um sujeito criado sob condições sócio-econômicas vulneráveis.

A mudança se inicia a partir da década de setenta, na Europa, com base nos fundamentos de um Estado Democrático de Direito, quando passa a ser desenvolvido um modelo diferenciado de disciplina dos jovens em conflito com a lei, marcado por um critério de responsabilidade, em substituição ao modelo de proteção.

Vale ressaltar que após a Segunda Guerra Mundial se erigem as democracias ocidentais, baseadas na especial valorização da dignidade da pessoa humana e dos direitos humanos, cujos reflexos serão percebidos nas legislações destinadas as crianças e adolescentes.

É também na concepção de um Estado Democrático de Direito que se projetam os fins da pena. Qualquer limitação à liberdade do indivíduo deve estar justificada pela lei para ser autorizada.

Assim, passam a ser inadmissíveis as medidas pré-delituais, fundadas em um critério de prevenção da criminalidade, tal qual ocorria no modelo anterior.

O novo modelo pressupõe a incorporação de quatro textos internacionais: Convenção sobre os Direitos da Criança, Diretrizes de Riad para a Prevenção da Delinqüência Juvenil, Regras das Nações Unidas para os Menores Privados de Liberdade e Regras de Bëinjing ou Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça de Menores.

No Brasil, a escola foi introduzida pelo artigo 227 da Constituição Federal de 1988, sendo a primeira vez que nossa Carta Maior abordava a questão dos menores. Posteriormente, em 13 de julho de 1990, foi promulgada a Lei Federal 8.069, denominada de Estatuto da Criança e do Adolescente, a qual operacionalizou toda a mudança de referências e paradigmas, explicitamente adotando a nova doutrina.

A pedra angular de todos esses documentos internacionais é a responsabilidade, por óbvio, específica para a fase de desenvolvimento em que se encontram crianças e adolescentes. Os jovens passam a ter a dignidade de serem respeitados e até responsabilizados por seus atos, desmistificando-se o estigma que carregavam de seres incapazes, necessitados de uma segunda educação.

Ressalvadas suas inúmeras qualidades, os instrumentos internacionais não são precisos em relação a denominação das conseqüências jurídicas dos atos infracionais (se medidas, medidas sócio-educativas ou sanções juvenis). Na maioria das legislações, inclusive no Brasil, fala-se em medidas sócio-educativas visando afastar a carga negativa da palavra sanção, tratando-a, pois, como se benéfica fosse.

No entanto, esse é fator que dificulta a determinação das finalidades das reprimendas destinadas aos jovens infratores, aproximando-as, no mais das vezes, das medidas tutelares que só causaram prejuízos aos que a elas foram submetidos, e escondendo seu caráter repressivo.

É certo, porém, que o novo sistema de justiça é mais benéfico aos jovens em conflito com a lei, uma vez que se pretende que sejam transpostos a eles todos os direitos e garantias disciplinados pelo direito penal, além daqueles específicos da fase desenvolvimental e melhor interesse do jovem. Além do que, objetiva-se também o reconhecimento da natureza penal das medidas sócio-educativas, cujas finalidades são as mesmas das penas.

Nesse sentido, García Méndez relata que “quien pro­duce sufri­mi­en­tos reales en nombre de la ley, y quien pro­du­ce restricciones a la libertad personal, está trabajando en el campo del derecho penal... en el derecho en general la diferenciación ha servido históricamente para perjudicar a los sujetos más débiles”.(5)

Assim, as medidas destinadas aos jovens não podem mais ser consideradas um bem que o Estado faz ao seu sujeito.

Mister seja reconhecida sua natureza penal, com todas as garantias disso advindas, tais como observância dos princípios da legalidade, do contraditório, ampla defesa etc.

Ademais, a mera intervenção do Estado em um conflito é considerada inatural e enseja uma gama de garantias em sua oposição.

Vislumbra-se, diante de todo o contexto histórico apresentado, que a proteção jurídica ofertada aos jovens percorreu um longo caminho de desproteção.

Não havia limites a intervenção estatal e em nome do melhor para as crianças e adolescentes lhes eram impostas severas medidas de restrição de liberdade e supressão de sua dignidade.

Exaltava-se a necessidade de prevenção especial das medidas tutelares, com se fossem elas a cura ao menor doente de socialização.

Por isso é que hoje não se pode mais negar o caráter repressor das reprimendas destinadas aos jovens e fazê-lo significa regredir a um período no qual a autonomia das crianças e dos adolescentes foi suprimida e negligenciada. No entanto, a experiência demonstra que o modelo tutelar ainda permeia a execução das medidas sócio-educativas, em um quase regresso do direito penal do autor. Os pobres precisam ser afastados, segregados em nome da proteção social.

É preciso oferecer aos jovens em conflito com a lei um tratamento digno, garantista, ofertando-lhes as oportunidades que o Estado negligenciou, uma vez que se sabe que a miséria social é fator estimulador da criminalidade.

Deve-se privilegiar uma intervenção que, embora tendo presente a idéia de defesa social, é orientada pelo interesse do menor.

As finalidades das sanções juvenis devem abarcar as prevenções geral e especial, efetivamente implementando políticas públicas de execução das reprimendas, visando ofertar ao jovem, que deseje, a oportunidade de trilhar por caminhos de conhecimento e labor.

Assim, sua “recuperação” nunca pode ser condicionante da cessação da reprimenda.

Evidente que se da reprimenda surge algum benefício para o adolescente isso é apenas um valor agregado a sanção e não mais seu fundamento ou justificação, tal qual ocorria no modelo anterior.

A finalidade preventiva especial, isoladamente, não pode mais fundamentar a aplicação de uma medida, uma vez que mister o respeito ao princípio da legalidade e o reconhecimento dos estigmas relacionados à intervenção do controle social formal sobre o jovem.

Notas

(1) TELLA, Maria José Falcón; TELLA, Fernando Falcón. Fundamento y Finalidad de la Sanción: . Madrid: Marcial Pons, 2005, p. 195.

(2) CABALLERO, Juan Carlos López. “La legislación reformadora de menores en Espana y Brasil: un análisis comparativo”. Revista de Derecho Penal y Criminologia. Universidad Nacional de Educación a distancia – Facultad de Derecho. Madrid, 1994, n. 4, p. 495.

(3) BANDEIRA, Gonçalo Nicolau Cerqueira Sopas de Melo. “O direito de intervenção junto de menores infratores como: direito do facto, direito do autor, ou direito do autor e do facto, direito penal ou direito não penal”– acórdão da 1ª Instância, Tribunal de Menores de Coimbra, de 6 de fevereiro de 1989 (jurisprudência comentada). Revista Portuguesa de Ciência Criminal. Coimbra, v. 13, n. 4, outIdez, 2003. p. 615.

(4) REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de Direito Penal Parte Geral. v. 1, 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2006.

(5) MÉNDEZ, Emílio García. Jornadas de Reflexión sobre la Ley de Justicia Penal Juvenil: 4 años de Vigencia. Memória – 1 era. Ed. – San José, C.R: Unicef, 2001. p. 48.

Fernanda Carolina de Araujo
Bacharel em Direito pela PUC-Campinas e mestranda em Direito Penal pela USP



Boletim IBCCRIM nº 185 - Abril / 2008

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