Mulheres estrangeiras em conflito com a lei equivalem a cerca de 2,3% da população carcerária feminina do Brasil. Desse contingente, 90% estão presas devido ao tráfico internacional de drogas. Norah foi mais uma a compor essa estatística
Conheci Norah* em julho de 2016. Naquele dia, fazia sol e ela estava sentada na única faixa de sombra que cobria um dos bancos de cimento do pátio do Pavilhão 3 da Penitenciária Feminina da Capital, no Carandiru, Zona Norte de São Paulo. Um corpo magro, encolhido e tímido, contornado por cabelos loiros, que aguardava ansiosamente a chegada dos agentes da Pastoral Carcerária. Fomos apresentadas e ela logo me deu seu primeiro sorriso de muitos.
Era a primeira vez que eu visitava aquele que é conhecido como o Pavilhão das Estrangeiras, mas não pareceu. Fui recebida com muito entusiasmo por mulheres que estão longe de muito do que as compõem: sua pátria, sua família e seus amigos. “Como não temos visita, vocês da igreja são como se fossem nossa família”, me contou uma sul-africana.
Nesse dia, Norah e eu conversamos pouco, mas consegui perceber seu desespero por estar presa e sem contato com o mundo. Ela repetia sem parar o quanto odiava aquele lugar e como só queria sua liberdade. “Eu não gosto daqui. Fico quieta no meu canto, assim me mantenho longe de problemas. Eu só quero ir embora”, desabafou.
Nas semanas seguintes, entretanto, vi Norah desabrochar. A cada sábado seu sorriso se abria um pouco mais e seu corpo encolhido deu lugar a braços que passaram a esperar, sempre abertos, a minha chegada. Aos poucos, conheci sua história, a história de mais uma “mula” do tráfico internacional de drogas, e descobri dentro dela a força que uma mulher precisa ter para suportar o cotidiano da prisão.
Norah nasceu em Singapura, mas passou boa parte de sua vida fora do país, que ela descreve como “caro e chato”. Aos 25 anos foi morar na Holanda, onde viveu ao lado do ex-marido holandês por 21 anos, até descobrir que ele a traía. Divorciada e sem possibilidade de se sustentar, a singapurense retornou a seu país de origem.
De volta a Singapura, Norah não conseguiu conviver em paz com sua família devido a desentendimentos religiosos: todos os familiares são islâmicos e têm dificuldade de aceitar sua crença luterana, uma religião ocidental. Foi assim que, de maneira rápida, ela conseguiu emprego como garçonete em um restaurante coreano e logo estava morando sozinha, em um apartamento do qual ela tem muito orgulho de falar e também muito medo de perder, uma vez que depois de presa não pôde mais pagar o aluguel.
Norah trabalhou como garçonete durante seis meses, até que o empreendimento faliu. Sem cogitar a possibilidade de voltar para a casa de seus familiares, ela voltou a procurar emprego e logo foi contratada por uma empresa multinacional que fabricava objetos pessoais, como chinelos e bolsas, para exportação. Nesse momento, ela estava feliz. Havia conseguido uma ocupação menos precária, estabilidade financeira, e sua vida se ajustaria de uma vez por todas.
Foi trabalhando nesta empresa americana que Norah teve seu destino como “mula” do tráfico escrito. Quando seu patrão pediu que ela fizesse uma viagem ao Brasil para levar amostras de alguns produtos, Norah estranhou. Afinal, por que uma empresa tão grande e importante confiaria suas produções mais recentes a uma funcionária que trabalhava no lugar há apenas dois meses? Ainda assim, cumprindo as ordens do patrão e com passagem, hotel e todas as burocracias bancadas pela companhia, a singapurense embarcou rumo ao Oceano Atlântico.
Trinta e quatro horas de viagem depois, Norah finalmente chegou ao aeroporto de Congonhas, em São Paulo. Sem que tivesse tempo de entender o que estava acontecendo, suas primeiras horas habitando o Brasil foram acompanhadas pela Polícia Federal: assim que passou pelo desembarque, a polícia revistou sua bagagem e encontrou cocaína escondida entre os objetos da mala.
Norah tentou explicar que não tinha conhecimento da droga e que estava apenas cumprindo ordens, mas não obteve sucesso. Depois de dar todas as informações sobre sua situação e seu emprego, ela descobriu que a empresa em que trabalhava era fantasma e não havia qualquer traço dela pelo mundo. A singapurense recebeu ordem de prisão e passou a noite em custódia no aeroporto. No dia seguinte, foi transferida para a Penitenciária Feminina da Capital, conhecendo pela primeira vez os muros do sistema carcerário feminino brasileiro.
Conhecendo o Brasil através do cárcere
As mulheres estrangeiras em conflito com a lei equivalem a aproximadamente 2,3% da população carcerária feminina do Brasil, ou seja, são ainda mais invisíveis aos olhos do Estado. Desse contingente, 90% estão presas devido ao tráfico internacional de drogas e Norah foi mais uma a compor essa estatística. Organizações de direitos humanos denominam essas mulheres como “mulas do tráfico”: uma pessoa em situação vulnerável que foi aliciada para realizar transporte transnacional de substâncias ilícitas. Chegando ao Brasil, essas mulheres são presas e condenadas como traficantes, configurando mais um exemplo de que o sistema ignora as complexidades das pessoas que encarcera.
Devido à vulnerabilidade dessas mulheres, existem iniciativas que lutam para que as presas estrangeiras possam ser consideradas vítimas de tráfico humano. A ideia é corroborada pela assinatura do Brasil ao Protocolo Facultativo à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em especial Mulheres e Crianças, tratado que enxerga tráfico humano quando há um ato, um meio e uma finalidade que configure exploração. Esse conjunto pode ser, por exemplo, um recrutamento por meio de engano para atividade delitiva, como foi o caso de Norah. Nesse cenário, o eventual consentimento da vítima torna-se irrelevante para caracterização do tráfico, uma vez que contextos econômicos e sociais precários também configuram como situações de vulnerabilidade.
Estar na prisão foi um choque para Norah. Ela, que sempre foi acostumada a tomar conta de sua própria vida, agora estava nas mãos de um sistema que insiste em ignorá-la, mas também não a deixa livre. Pouco tempo depois de sua prisão, ela foi sentenciada a sete anos de regime fechado. Mesmo sabendo que o bom comportamento e o trabalho no prisão podem significar remissão de pena, Norah sentiu seu mundo ruir, afinal, seu caso estava nas mãos da Defensoria Pública, o que pode significar uma demora ainda maior na concessão de qualquer benefício para ela.
Durante 11 meses, a singapurense morou no Pavilhão 1, onde 90% das mulheres são brasileiras. Nesse tempo, Norah fez poucas amigas, porque estava deprimida e não fazia questão de ter muitas pessoas por perto. Hoje, ela mora no pavilhão das estrangeiras por vontade própria, mas ainda assim prefere se manter distante das outras presas para não se envolver em nenhum tipo de problema e possui apenas uma amiga muito próxima, a também singapurense Anik. Elas passam juntas todo o tempo que têm livre, exceto as noites de sono, porque não dividem a mesma cela.
Lá dentro, Norah trabalha na Embramed, empresa que produz artigos hospitalares, fabricando sondas, catetéres e ferramentas para exames de sangue e aplicação de medicamento intravenoso. “É o melhor salário aqui dentro, mas é muito chato e cansativo. Chego a fabricar 3500 peças em um dia e elas [as funcionárias responsáveis pela supervisão do trabalho] estão sempre pedindo mais. É estressante”, conta. Sua rotina consiste em acordar entre 5h30 e 6h. Às 8h, ela já está dentro da fábrica, onde fica até às 16h30, horário que marca o fim do expediente.
Eles não ligam pra você
Depois de muitos meses trabalhando na Embramed, Norah chegou a pedir afastamento do cargo porque estava se sentindo sobrecarregada e estressada devido à pressão e à tarefa mecânica que exerce. Durante duas semanas, ela não exerceu nenhuma atividade remunerada na prisão, mas afirmou que esse período foi ainda pior. “É melhor se manter ocupada aqui dentro, se não você acaba enlouquecendo. Mas eles não ligam. Se você pede algum remédio porque não se sente bem ou está deprimida, eles sempre te dão Paracetamol. Eles não ligam pra você”, desabafa.
Norah não poupa críticas ao falar da vida entre muros. Além do descaso dos funcionários da instituição, ela também reclama que a prisão é muito fria, as camas são desconfortáveis, a comida é ruim, as coisas são caras e tem muitas brigas. É exatamente por isso que ela não faz questão de se aproximar de muitas pessoas – ela arrisca dizer que a hostilidade daquele lugar desperta o lado ruim de quem está ali dentro e por isso as brigas são constantes.
Quando pergunto se a prisão modificou algo dentro dela, ela me responde, sem hesitar, que seu caráter mudou muito. “Quando eu cheguei aqui, eu era uma pessoa muito boba. Acreditava em todo mundo e fazia qualquer coisa para quem me pedisse. Aos poucos, fui percebendo que as pessoas podem ser ruins. Algumas meninas aqui dentro estavam me usando, me decepcionei com muitas delas, e então me tornei mais dura. Passei a escolher para quem eu devo me doar e eu escolhi quem está perto de mim e retribui minhas ajudas”.
É por isso que Norah passa boa parte do tempo com Anik – elas têm muito em comum: as duas eram quase vizinhas em Singapura, costumavam tomar café da manhã no mesmo lugar, mas só se conheceram dentro da PFC. Ambas têm muita fé – apesar das religiões diferentes – e são muito carinhosas. Anik também foi enganada e transportou cocaína para o Brasil sem ter conhecimento. Agora, são parceiras em todos os momentos ali dentro e se consideram sortudas por terem se encontrado, apesar do infortúnio.
Além da amizade com Anik, eventualmente Norah troca cartas com sua sobrinha Lori, que está em Singapura. Lori é o membro da família de quem Norah é mais próxima e é fácil de entender o motivo: Lori faz questão de continuar pagando o aluguel da tia, para que ela tenha um lugar pronto para recebê-la quando voltar a Singapura.
A fé de Norah é outro pilar para suportar os dias na prisão. Ela diz que se tornou ainda mais dependente de Deus desde que foi encarcerada. “Todos os dias eu oro, eu oro muito pelas pessoas que eu gosto e principalmente pela minha liberdade. Quando eu preciso relaxar, eu oro também. Eu oro até por você e sua família todos os dias”, me conta, o que me deixa feliz e um pouco envergonhada pela minha falta de fé.
Sonhos não cabem entre muros
A existência de grades e muros não faz nenhum sentido para Norah, alguém que tem tanta alegria e uma imensa vontade de conhecer o mundo. Desde a primeira vez que a vi, ficou claro para mim que qualquer lugar que a prenda – física ou mentalmente – não é suficiente para ela. Por isso, Norah não deixa que a cadeia controle também seus sonhos. Quando ganhar sua liberdade, quer sair do Brasil o mais rápido possível, mas não pretende ficar em Singapura. “Quero viver na América. Eu amo os Estados Unidos”, ela me conta, com o olhar vago.
Além do sonho americano, Norah cultiva outra paixão dentro de si: seu ex-noivo John que, por acaso, mora nos Estados Unidos. Eles se conheceram em 2014, se encontraram pessoalmente apenas duas vezes e no próximo encontro iriam oficializar o noivado. No meio do caminho, entretanto, Norah foi presa e o contato com John foi interrompido por mais de um ano, porque ele não respondia suas cartas.
No dia em que ela teve notícias do ex-noivo pela primeira vez desde que veio para o Brasil, chorou muito. Achou que ele a tivesse esquecido, que estaria bravo pela falta de notícias. John ficou muito confuso com toda a situação, mas escreveu que pensava em Norah todos os dias e que seus momentos juntos nunca seriam esquecidos. Um mês depois, entretanto, parou de responder suas cartas e não deu mais notícias. O coração de Norah está aflito novamente.
Apesar disso, ela continua me recebendo cada vez mais feliz, chegando até a soltar pequenos gritos de alegria. Sempre ao Lado de Anik e no mesmo lugar do pátio, ela não deixa de me dar um abraço, perguntar como foi minha semana, como estão meus estudos, meu trabalho e minha família. Também sempre me questiona sobre alguma mudança na lei que possa beneficiar as estrangeiras – Norah não conversa com seu defensor público há mais de um ano – e eu constantemente me desculpo por não ter nada a dizer. “O melhor presente que você pode nos dar é continuar nos visitando”, ela fala para eu me sentir melhor. Funciona.
Da última vez em que encontrei Norah, ela me disse que havia recebido a visita de um funcionário do consulado dizendo que ela deveria ganhar sua liberdade em pouco tempo. Como seu inglês possui um sotaque diferente do que estou acostumada, custo a entender exatamente de que procedimento legal ela está falando, mas é fácil ler seus olhos: eles brilham ante qualquer possibilidade de se livrar da vida entre muros. Anik também havia recebido boas notícias recentemente. Se elas estavam felizes, eu também estava.
Me despeço avisando que nas duas semanas seguintes eu não poderia visitá-las e a resposta de ambas é a mesma: “esperamos não estar aqui da próxima vez que você vier, mas não deixe de vir”. Abraço as duas e Norah, com uma voz doce, aperta minha mão e pede que eu me cuide. Eu devolvo o pedido, que de minha parte pode parecer vazio, afinal ela está nas mãos de um sistema que não lhe dá muitas alternativas. Saio de lá esperando que mais notícias boas cheguem para as duas amigas singapurenses. Afinal, nenhum sonho cabe entre muros.
* Nome fictício
** Texto originalmente publicado no livro-reportagem “Metamorfose entre Muros”, TCC (Trabalho de Conclusão de Curso) de Andressa Vilela para a PUC-SP em dezembro de 2016.
Fonte: Carta Capital.
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