Com 665 mil presos, sendo 221 mil (34%) à espera de julgamento, o Brasil terá de encarar, em breve, o problema dos presos injustamente. Um grupo de advogados, pesquisadores e voluntários se prepara para trazer ao país o Innocence Project, uma iniciativa mundial de estudo de errosdo Judiciário e de defesa de condenados sem culpa.
Cerca de 30 pessoas já participam de reuniões de coordenação, como os advogados Dora Cavalcanti Cordani e Rafael Tucherman, da banca Cavalcanti & Arruda Botelho Advogados, e Flávia Rahal Bresser Pereira, do escritório Rahal Carnelos Vargas do Amaral Advogados.
Dora Cavalcanti esteve nos Estados Unidos, onde o projeto começou em 1992, para conhecer a proposta. “Era um plano antigo de vários colegas. Outros países da América Latina já possuem sedes do Innocent Project e pensamos que o Brasil precisa urgentemente agir sobre isso”, comenta.
Uma das metas do Innocent Project Brasil é criar no futuro um banco de dados sobre as principais causas das condenações equivocadas. O trabalho também será feito junto com o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), universidades e com a seleção de casos para a defesa.
A coordenadora do Innocence Project Brasil é Ana Luiza Bandeira, pesquisadora, mestranda em Antropologia Social na USP e membro do IDDD. Ela explica que o Innocence Project atua exclusivamente nos Estados Unidos. Cada país pode ter um projeto ou mais — todos eles formam a Innocence Project Network, junto com outras organizações parceiras fora dos EUA. O projeto já libertou 349 pessoas condenadas injustamente e trabalha pela aprovação de leis sobre a questão e para implementar políticas que evitem condenações injustificadas.
Outra iniciativa de defesa de condenados injustamente é a RED Inocente, que é uma parceria entre o Innocence Project da Califórnia e organizações com objetivos similares na América Latina.
“No Brasil, nosso projeto possui o apoio tanto na Innocence Project Network quanto da RED Inocente”, afirma Dora.
Um dos casos norte-americanos que ganhou notoriedade recente foi de Timothy Bridges – acusado de estupro e roubo ele ficou preso 25 anos na Carolina do Norte. Sua condenação em 1991 foi baseada em um testemunho errôneo de um analista treinado pelo FBI, que alegou que seu cabelo o ligava a dois pelos encontrados na cena do crime.
Também foi descoberto pelo Innocence Project e a North Carolina Prisoner Legal Services, após a condenação, que a polícia pagou informantes e fez outras ameaças ou promessas aos informantes que prejudicaram os depoimentos. Bridges foi considerado inocente em 2016 aos 48 anos. Depois de seu caso vir à tona o jornal Washington Post mostrou que depoimentos falhos de agentes do FBI ou analistas de laboratórios criminais treinados pelo FBI provavelmente afetaram cerca de 2,5 mil casos em todo o país.
Modo de trabalho
O modelo de trabalho do projeto no Brasil seguira a lógica de ter equipes pequenas e vários voluntários. O financiamento por enquanto é dos próprios fundadores, mas no futuro cada iniciativa pontual envolverá a busca por instituições financiadoras.
Um dos métodos de trabalho mais usados nos EUA são as parcerias com universidades. Por exemplo, a Cardozo Schoolof Law atua junto com o Innocence Project e tem um projeto de capacitação – a escola de Direito da Universidade de Yeshiva, em Nova York. Assim, o projeto prepara os advogados para atuarem nos casos de revisão, chegando a abrigar 20% de seu corpo jurídico com estudantes concludentes da Universidade.
Dora Cavalcanti afirma que já foi procurada por algumas universidades interessadas em participar e espera fechar neste primeiro semestre uma parceria semelhante. “Obviamente os alunos estarão sob supervisão de um advogado, farão análises dos casos e apresentarão para a equipe do projeto, que toma decisões sobre os melhores encaminhamentos”, explica.
Uma coordenadora da RED Inocente na Califórnia, a advogada Ruby Anaya, já disponibilizou o treinamento para os alunos aprenderem como se portar, que diálogos ter e como apresentar o projeto.
A seleção dos casos
O Innocence Project Brasil vai começar sua atuação pelo estado de São Paulo, onde já estuda três casos. Rafael Tucherman afirma que a proposta inicial é analisar casos com trânsito em julgado e com condenações que não estejam no fim, porque o trabalho de revisão penal é longo.
Deverão ser usados questionários para os presos ou seus familiares e representantes preencherem. O conteúdo desse questionário está sendo criado.
“Em linhas gerais o questionário terá perguntas sobre o caso, se a pessoa pode relatar provas que eventualmente tenham ficado de fora do caso, onde essas provas podem ser obtidas, se a prova se trata de um documento ou pessoa, se o processo pode ter tido algum tipo de falha, se houve algum tipo de coação para obter testemunho falso, entre outros aspectos.
“Será feita uma análise detalhada para verificar fundamentos nos argumentos e a leitura dos autos. Essa é uma dificuldade que talvez seja menor para nós em relação aos EUA, porque lá muitos casos são resolvidos no modelo plea bargain [um acordo entre um réu e um procurador], então muitas vezes não existem autos, é só acordo e alguns detalhes de investigação”, relata Dora.
DNA
A fama internacional dessa iniciativa de defesa de condenados injustamente vem também por causa da solução de vários casos com o uso de exames de DNA forense.
No Brasil,na avaliação dos participantes do projeto, esse é sim um artifício importante de investigação, mas falta no país uma organização melhor nas investigações criminais para guardar corretamente as possíveis provas e amostras. “E não temos uma cultura ainda para saber em que ocasiões o DNA é relevante”, destaca Dora.
Um caso desvendado pelo DNA nos EUA que se tornou famoso foi de Kennedy Brewer. Em 1992, então com 21 anos, ele foi preso no Mississippi e acusado de abusar sexualmente e matar a filha de três anos de sua namorada. Ele foi condenado por assassinato e enviado para o corredor da morte do Mississippi. Uma amostra de sêmen foi recuperada do corpo da vítima, mas foi considerada insuficiente para o teste de DNA no julgamento.
Apenas em 2001, testes mais avançados tecnologicamente de DNA provaram que ele não cometeu o crime, derrubando a condenação. Em 15 de fevereiro de 2008, após a investigação do Innocence Project, um suspeito alternativo no caso foi encontrado – um pedido foi enviado ao Procurador-Geral do Mississippi e os dados do teste de 2001 foram cruzados com todos os originais suspeitos de 1992. Um deles era mesmo o real criminoso, que acabou sendo preso.
Após sete anos no corredor da morte, Brewer tornou-se a primeira pessoa a ser libertada por meio de teste de DNA pós-condenação no Mississippi.
O projeto brasileiro vai custear os exames periciais que forem possíveis de execução em cada caso, mas Rafael Tucherman esclarece que eles não são a única maneira de resolver um caso. “Há uma estatística interessante do Innocent Project nos EUA. Dos casos de condenação injusta só um pouco mais da metade o erro do Judiciário foi desvendado com o DNA. Cerca de 55% com DNA e 45% sem. O programa não depende só de DNA”, ressalta.
Falsas memórias
Segundo Janaina Homerin, da Rede Justiça Criminal (formada por sete organizações não governamentais que promovem ações de advocacy), não há no país estatísticas sobre prisões causadas por erros em processos ou julgamentos criminais.
Por exemplo, o último Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) é de dezembro de 2014 e mostrava 622.202 presos no país. Segundo a assessoria de imprensa do Ministério da Justiça não há uma estimativa oficial atual, mas uma próxima edição do Infopen deve ser publicada em cerca de 60 dias.
O Conselho Nacional de Justiça fez um levantamento e divulgou no fim de fevereiro que o número atual total de presos é de 654.372, mas informou que tribunais de Justiça de 16 estados não enviaram dados, o que levou o órgão a usar números antigos n a pesquisa.
Uma pesquisa brasileira recente tenta entender algumas dessas causas enfoca os métodos de reconhecimento e depoimentos da investigação criminal, os quais muitas vezes se baseiam apenas nas memórias de vítimas ou testemunhas. Lilian Stein, professora titular do programa de pós-graduação de psicologia da PUC-RS, foi a coordenadora do estudo “Avanços Científicos em Psicologia do Testemunho Aplicados ao Reconhecimento Pessoal e aos Depoimentos Forenses”. Ela também é uma das participantes do Innocence Project Brasil.
O trabalho, encomendado pelo Ministério da Justiça com financiamento do Ipea, foi feito em 2014 e publicado em 2015. Foram entrevistadas 87 pessoas, entre policiais militares e civis, defensores públicos e privados, promotores de justiça e juízes, nas cinco regiões brasileiras na primeira instância e em varas criminais. As entrevistas mostraram, por exemplo, que o reconhecimento é tido como de “muita importância” para 69,2% dos entrevistados. Já os testemunhos são considerados de “muita importância” para 90,3% dos ouvidos.
O estudo aponta que basear as investigações criminais em testemunhos e reconhecimentos têm certos riscos no Brasil porque são usados métodos de “mais de 50 anos”. “A investigação criminal no Brasil tende a acreditar que a memória humana é fotográfica, mas a psicologia já mostra há muito tempo que isso não é verdade e que diversos fatores influenciam”, afirma.
Além disso ela critica o fato que os testemunhos ou reconhecimentos no Brasil são feitos sem se preocupar em como as perguntas devem ser formuladas, seu momento ou local. “É comum pessoas serem chamadas meses ou anos depois para prestar depoimentos em juízo. É evidente que a memória pode falhar, mas muitos juízes aceitam isso”, diz.
Ela sugere técnicas mais modernas de depoimentos, como a entrevista cognitiva, usada na Inglaterra. Nesse modelo a pessoa tem que ser ouvida o mais rápido possível e buscar livremente em sua memória os máximos de detalhes do caso, com uma interferência mínima do entrevistador e tudo tem que ser gravado.
Já o reconhecimento de suspeitos no Brasil ainda é feito com livros de fotos, apenas com um suspeito para olhar ou em momentos inadequados, como quando uma vítima tem que reconhecer um suspeito algemado dentro de um carro.
Convicções errôneas
Globalmente, o Innocence Project também lista outros motivos para erros em julgamentos criminais como o fato de policiais muitas vezes serem as únicas testemunhas de um crime, a carência do uso de tecnologia nas investigações, alguns maus policiais que forjam provas, casos de réus que são coagidos a confessar e que a qualidade da defesa feita por advogados e defensoria é falha algumas vezes.
Dora Cavalcanti e Flávia Rahal, pelas suas experiências profissionais, afirmam concordar que essas causas também são encontradas no Brasil e acrescentam que a falta de um registro único de documentos no Brasil ainda também leva a prisões e condenações de homônimos. Outro ponto citado é a falta de mais juízes, promotores e policiais para a quantidade de processos no país.
Flávia faz questão de ressaltar que o Innocence Project não parte do princípio que alguém cometeu um erro de propósito: “É um projeto de estudos de erros do Judiciário, do diagnóstico da condenação do inocente, ele não parte do princípio que alguém cometeu um erro de propósito. Então pretendemos contar com o apoio do Ministério Público, da polícia, da magistratura, da Defensoria, com todos pensando em aperfeiçoamentos. Errar é humano. A própria defesa pode ser muitas vezes ser ineficiente. Um descuido pode resultar numa condenação sem volta”.
Revisão e busca por provas
Ainda sobre os motivos de erros em julgamentos criminais, o presidente do IDDD, Fábio Tofic Simantob, afirma que não há uma definição legal de erro judiciário no Brasil, mas ele é vulgarmente conhecido como a condenação de um inocente. Para ele no Brasil o instrumento adequado para reconhecer um erro judiciário é a revisão criminal.
“E ainda é muito precária a tabulação de dados nesta área para se saber o motivo da condenação injusta e as causas que levaram a ela. Pela nossa experiência, contudo, empiricamente, podemos intuir que as maiores causas de erro Judiciário são os reconhecimentos pessoais ou fotográficos positivos [o falso positivo] e o falso testemunho, incluído aí o perjúrio policial”, diz.
Para Simantob, o grande problema brasileiro é o que se vê na grande quantidade de processos iguais, pelo mesmo crime, com policiais como testemunha, nos quais o juiz acaba criando um molde para poder condenar. “E para poder caber no maior número de situações este molde precisa conter um standard probatório muito pouco exigente, e é nesta massa de processos onde certamente estão os grandes erros judiciários”, afirma.
Processo preso
Outra dificuldade para a defesa que a equipe do Innocence Project Brasil aponta é o excesso de prisões provisórias no país. Segundo o levantamento do CNJ, em 2017 a população carcerária era de 654.372 presos e destes 221.054 eram presos provisórios, ou 34%. Segundo a Rede Justiça Criminal, mais da metade dos presos provisórios estão custodiados há mais de 90 dias.
Há uma pesquisa independente sobre o tema que analisou o ano de 2013 na cidade do Rio de Janeiro. O estudo foi feito pelo Instituto Sou da Paz em parceria com o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), da Universidade Cândido Mendes, e mostrou que naquele ano foram presas 7.734 pessoas, que ficaram em média encarceradas 101 dias antes do julgamento.
Esse tipo de situação poderia diminuir muito se as audiências de custódia fossem mais largamente usadas no país, diz Fávia Rahal.
As audiências de custódia nasceram em 2015 de uma parceria do Conselho Nacional de Justiça(CNJ) com o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP). A prática garante que pessoas presas em flagrante sejam levadas a um juiz em até 24 horas após a prisão.
A ideia é que o acusado seja apresentado e entrevistado pelo juiz, em uma audiência em que serão ouvidas também as manifestações do Ministério Público, da Defensoria Pública ou do advogado do preso.
Durante a audiência, o juiz analisa a prisão sob o aspecto da legalidade, da necessidade e da adequação da continuidade da prisão ou da eventual concessão de liberdade, com ou sem a imposição de outras medidas cautelares. O juiz poderá avaliar também eventuais ocorrências de tortura ou de maus-tratos, entre outras irregularidades.
Até dezembro de 2016 foram feitas 174.242 audiências de custódia. Os casos que resultaram em liberdade foram de 80.508 (46,20%).
O passivo das perícias
Na revisão de casos o Innocence Project Brasil vai analisar as possíveis provas não analisadas em processos que os presos, seus familiares ou amigos relatarem
“O que dificulta no Brasil é que não temos perícias no número adequado e muitas vezes não se sabe onde as provas estão guardadas. E as provas técnicas são muito abrangentes, não é apenas o DNA. Tem o croqui da dinâmica de um homicídio, exames do local, preservação do local, conteúdo suco gástrico, exames balísticos”, comenta Dora Cavalcanti.
Enquanto o site do Innocent Project Brasil não fica pronto, os interessados no projeto podem ligar para o IDDD: (11) 3107-1399 ou mandar e-mail para iddd@iddd.org.br.
Reinaldo Chaves é jornalista.
Revista Consultor Jurídico, 8 de março de 2017.
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