No dia que Oswaldo Martinez estuprou e estrangulou Brittany Binger, de 16 anos, ele deixou um rastro de provas por onde passou. No corpo da vítima, ao lado da estrada Pocahontas Trail, em Virgínia, a polícia colheu sêmen e pedaços de pele em suas unhas, que foram levados para exames de DNA.
Ao lado do corpo, a polícia encontrou uma lata de suco de maracujá com morango. O número de lote no rótulo da lata levou a polícia ao Miller Mart, um mercadinho nas redondezas, onde câmeras de segurança filmaram Martinez entrando na loja, pegando a bebida, pagando por ela e saindo.
Do lado de fora, testemunhas viram Martinez indo em direção à Pocahontas Trail. Um cão farejador levou os investigadores até o mercadinho e, depois, até a moradia de Martinez, um barraco de um cômodo ao lado de um trailer, que servia de depósito de ferramentas, com um colchão no chão e um fogareiro de acampamento.
Os exames de DNA comprovaram que o material colhido pertencia a Martinez. Em 18 de fevereiro de 2005, a polícia prendeu Martinez, um imigrante ilegal que trabalhava como diarista na cidade de Williamsburg.
Os promotores pensaram que, com tantas provas, seria uma condenação fácil. Iriam pedir prisão perpétua para Martinez, por estupro e homicídio, de acordo com os jornais The Charlotte Observer, The Washington Post e outros.
Mas haviam nós no caso que não seriam facilmente desatados. Além de surdo-mudo, Martinez não sabia ler e escrever, não conhecia a linguagem dos sinais e só se comunicava por pantomimas, grunhidos e desenhos grosseiros.
Em suma, o caso de Martinez era de incapacidade para ir a julgamento (unable ou unfit for trial). Por algum tempo, pensou-se em entregar Martinez às autoridades de imigração, para que ele fosse deportado para El Salvador, de onde veio, como seus irmãos informaram à polícia.
Mas a imigração não aceitou o caso porque, para deportá-lo, seu caso teria de ser julgado por juiz de imigração. Mas isso seria impossível, exatamente por ele ser considerado incapacitado para ir a julgamento.
Código Penal
Dispositivos do Código Penal americano estabelecem que um réu precisa ter “capacidade para ir a julgamento” (“competency to stand trial) para ser julgado, em respeito a seu direito ao devido processo e a um julgamento justos.
O réu tem o direito inalienável de entender os procedimentos contra ele (isto é, precisa entender as acusações contra ele e o julgamento), poder se ajudar em sua própria defesa (o que implica poder se comunicar com seu advogado). Sobre a incapacidade para ir a julgamento, o Código Penal diz, mais especificamente:
- O réu não é capaz de entender que está em uma sala de julgamento, quem são as pessoas presentes (juiz, promotor, advogado, etc.) e por que estão ali;
- O réu não é capaz de entender as acusações feitas contra ele, o significado de se declarar culpado ou não culpado, o que acontece se declara que é culpado ou se não falar a verdade na corte;
- O réu não é capaz de se comunicar com seu advogado e dizer a ele, mesmo em termos básicos, o que quer fazer em seu caso.
Um réu incapaz para ir a julgamento pode cometer um homicídio a luz do dia, em frente a inúmeras testemunhas, ser preso, acusado. Mas se o juiz concluir que ele não preenche um desses requisitos, ele determina a suspensão do processo e ordena uma avaliação da saúde mental do réu.
Martinez não preenchia qualquer dos três requisitos. Por isso, o advogado Timothy Clancy, que o representa, pediu ao juiz para trancar o processo. Alegou que os direitos de seu cliente a um julgamento rápido, devido processo e igualdade de proteção da lei estavam sendo violados.
Porém, o promotor Nathan Green recorreu a um dispositivo de uma lei estadual para impedir o trancamento do processo. A “Lei de Competência” do estado diz que um suspeito pode ficar detido indefinidamente, sem julgamento, quando acusado de um crime capital. O prisioneiro pode ser detido “sem limitação”, enquanto se submete a tratamento “medicamente apropriado”.
Martinez está “detido” já há mais de 12 anos em um “hospital de segurança” estadual, tempo em que o estado fez o possível para torná-lo capaz de ir a julgamento. As autoridades estaduais pediram ajuda de psiquiatras, psicólogos, universidades e especialistas de diversos campos, para ver se colocavam Martinez em condições de ser julgado.
Profissionais fizeram um grande esforço para ensinar a Martinez a linguagem dos sinais, sem sucesso. No final das contas, um especialista determinou que, por sua idade, jamais iria aprender a linguagem dos sinais, porque isso só é possível na infância ou no início da juventude, quando o cérebro ainda não eliminou os neurônios que ajudariam em tal aprendizado.
Dentro de mais ou menos um mês, o tribunal vai examinar, mais uma vez, o caso de Martinez. O advogado de defesa vai alegar que a “Lei da Competência”, que permite sua detenção por tempo indeterminado, é inconstitucional. Na opinião de alguns juristas consultados pelos jornais, Martinez será libertado.
João Ozorio de Melo é correspondente da revista Consultor Jurídico nos Estados Unidos.
Revista Consultor Jurídico, 19 de março de 2017.
Nenhum comentário:
Postar um comentário