* Reportagem especial do Anuário da Justiça São Paulo 2017, que será lançado nesta quarta-feira (8/3) no Tribunal de Justiça de São Paulo.
Na passagem de 2016 para 2017, em Campinas, um homem invadiu a festa em que uma família comemorava a chegada do ano novo e matou a tiros sua ex-mulher, o filho do casal e mais nove pessoas. Em seguida se suicidou.
Episódios como esse, com diferentes graus de violência, se repetem aos milhares no estado de São Paulo. Em 2016, o Judiciário paulista recebeu mais de 90 mil acusações de agressão praticadas por homens contra mulheres ou familiares marcadas pela submissão decorrente do gênero e de relação de afeto. Foi para combater esse tipo de crime que, há 10 anos, foi editada a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006).
Desde a edição da lei, a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, do Ministério da Justiça, criou a Central de Atendimento à Mulher por meio do Ligue 180. Nestes 10 anos, o serviço prestou mais de 5 milhões de atendimentos. De janeiro a junho de 2016, foram 68 mil relatos de violências em todo o país. Em comparação com o mesmo período de 2015, houve aumento de 142% nos registros de cárcere privado, com média de 18 por dia. Registrou-se, também, crescimento de 147% nos casos de estupro, média de 13 por dia. A maioria das denúncias se refere a casos de violência física e psicológica.
Juízes de varas especializadas ouvidos pelo Anuário da Justiça afirmam que, nestes 10 anos, não foi a violência contra a mulher que aumentou. Para eles, o que mudou foi a percepção dessa problemática pela sociedade – aí incluindo a própria mulher vítima de agressão. Com o tempo, acreditam, cresceu a consciência e a coragem para denunciar homens violentos em casa. Ou seja: os casos sempre existiram, mas não chegavam ao conhecimento do Judiciário.
Sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 7 de agosto de 2006, a Lei 11.340 surgiu com o intuito de criar mecanismos para coibir, punir e erradicar a violência doméstica e familiar contra a mulher. O nome pelo qual se tornou conhecida é uma homenagem a Maria da Penha, uma biofarmacêutica do Ceará que ficou paraplégica depois de levar um tiro do marido, economista e professor universitário.
Maria da Penha conta que, antes de se casarem, ele era uma pessoa amável e prestativa. Só depois do casamento, no início dos anos 80, e do nascimento das três filhas do casal, que o marido revelou seu lado violento dentro de casa. Em sociedade, continuava com sua boa imagem, de pessoa dócil e afetuosa. Denunciado pelo atentado à mulher, ocorrido em 1983, ele foi condenado 19 anos mais tarde em dois júris populares à pena de 8 anos de prisão. Cumpriu 16 meses em regime fechado. A condenação só ocorreu depois de manifestação da Comissão Interamericana dos Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA).
Juízes que lidam com a matéria entendem que uma decisão judicial tem impacto pedagógico não só para o agressor, mas para toda a comunidade. Para eles, cada sentença condenatória é a prova de que nem a sociedade nem o Judiciário toleram mais esse tipo de conduta. A partir de 2011, foram criadas na Capital sete varas especializadas em violência doméstica e familiar contra a mulher. Nos últimos quatro anos, período em que o tribunal passou a gerar estatísticas de produtividade desses casos, o que se viu é que, apesar da especialização, as varas da Mulher não conseguem atender à demanda de casos de violência doméstica. De 2013 para 2016 o número total de sentenças proferidas no estado aumentou de 5,6 mil para 16 mil. O acervo de casos à espera de julgamento, entretanto, cresceu de maneira surpreendente
Em dezembro de 2013, a vara instalada no bairro da Penha, na Zona Leste, tinha em andamento pouco mais de 1 mil processos. Quatro anos depois os feitos passavam de 3 mil. A outra vara especializada da Zona Leste, em São Miguel Paulista, tinha 3,4 mil processos pendentes em 2013. Em outubro de 2016, o estoque de processos se aproximava dos 9 mil. Em todas as outras varas especializadas da Capital registrou-se escalada semelhante no número de casos pendentes de julgamento, uma indicação clara de uma demanda maior do que a capacidade de julgar dessas varas. O interior tem apenas três varas especializadas. Localizadas em São José dos Campos, Guarulhos e Sorocaba, não tiveram aumentos tão expressivos como os registrados na capital (veja quadro).
O Tribunal de Justiça enfrenta a falta de varas especializadas no interior com a criação de anexos judiciais, que processam exclusivamente casos de violência doméstica, mas estão subordinados a uma vara criminal. Já estão em funcionamento os anexos de Suzano, Ribeirão Preto, Itu e Assis. Há projeto para instalação de novas unidades especializadas em Santos, Andradina e Limeira, ainda sem previsão de implementação.
A mesma tendência de crescimento do estoque de ações à espera de julgamento é registrada pelas varas não especializadas, que também julgam casos de violência doméstica. As varas da Grande São Paulo, que formam a 1ª Região Administrativa Judiciária, passaram de 30 mil casos em tramitação em 2013 para 58 mil em 2016. As cidades da região de Bauru (3ª Região) tinham 4,6 mil processos pendentes em 2013, contra mais de 9 mil em 2016. Em Campinas (4ª RAJ), os 11 mil casos em tramitação dobraram para 22 mil em 2016.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) colocou o enfrentamento à violência doméstica contra as mulheres como uma das metas do Judiciário para 2017. Isso significa que os juízes deverão dar prioridade para o julgamento desse tipo de processo.
Em São Paulo, processos da Lei Maria da Penha já foram distribuídos em ordem prioritária em 2016 como parte da campanha “Todos Somos Maria da Penha”, lançada pelo presidente da corte, Paulo Dimas Mascaretti.
Em 2012, o TJ-SP criou a Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Poder Judiciário do Estado de São Paulo (Comesp) para assegurar que os direitos das mulheres sejam cumpridos. A Comesp é formada pelas desembargadoras Angélica de Almeida e Maria de Lourdes Rachid Vaz de Almeida e pelas juízas Elaine Cristina Monteiro Cavalcante, Maria Domitila Prado Manssur Domingos e Teresa Cristina Cabral Santana Rodrigues dos Santos. Outros 12 juízes de Direito atuam como colaboradores.
A coordenadoria presta atendimento multidisciplinar à mulher vítima de violência, desde serviço psicológico e social até encaminhamento para reparações quando há danos à saúde ou estéticos. Há também as casas-abrigo, previstas na Lei Maria da Penha, para que a vítima possa se abrigar, longe do alcance do agressor, e tenha subsídios para viver de forma autônoma, sem precisar voltar para a antiga residência.
De acordo com Angélica de Almeida, coordenadora da Comesp, o enfrentamento de gênero doméstico e familiar requer interlocução entre todos os atores, públicos ou privados. “A mulher que está sob risco de violência deve ser atendida de uma forma efetiva, desde o serviço médico, à delegacia de polícia, até o processo chegar ao tribunal na apelação. Todos esses serviços precisam estar interligados, senão ela fica desatendida em algum momento”, explica.
Em muitos casos, as mulheres ficam com sequelas físicas no corpo, por causa de agressões no rosto, perda de dentes e até mutilações de mamas e órgãos genitais. A desembargadora relata que já julgou casos em que um namorado arrancou parte do nariz da mulher com uma mordida. Em outro caso, o marido deu remédio para a mulher dormir e a trancou em casa durante o final de semana sem comida. Houve também o caso do namorado que picotou o cabelo da mulher no meio da rua e do homem que pegou a companheira pelo cabelo e a arremessou contra a parede.
Os juízes das varas especializadas aprenderam de sua experiência que o agressor não chega de um dia para o outro e comete um crime. A violência costuma seguir um ciclo que chega a durar anos. Por isso, é importante identificar o fato no início e aplicar as medidas de prevenção. Eles contam que a primeira manifestação costuma ser de violência psicológica, na forma de ameaça, humilhação, isolamento, vigilância constante, perseguição e limitação do direito de ir e vir. Posteriormente, as ameaças passam às vias de fato e evoluem para agressões com lesões corporais.
De 2013 a 2016, a Justiça paulista determinou a aplicação de 254.776 medidas protetivas. A prisão do agressor é determinada quando fica comprovado que a vítima está correndo risco de vida, quando foi agredida e quando há descumprimento das medidas protetivas.
A juíza Elaine Monteiro Cavalcante, titular da Vara Central de Violência Doméstica e Familiar da Capital, entende que a prisão é medida de exceção. Ela chama para conversar com o homem que descumpriu a medida protetiva pela primeira vez e só o leva à prisão se ele reincide.
De acordo com dados do setor de estatística da segunda instância, o TJ-SP recebeu quase 26 mil apelações em casos de violência contra mulher de 2009 a 2016. Mais de 20 mil casos foram julgados. Os desembargadores do tribunal têm feito uma interpretação extensiva da Lei Maria da Penha, aplicando-a em todos os casos em que há violência ou submissão por conta da condição de mulher. Dessa forma, agressões de filhos contra as mães ou de pais contra filhas ou enteadas e até mesmo de mulheres transgênero contra suas companheiras têm atraído a competência das varas especializadas.
Juvenal Duarte, desembargador da 5ª Câmara Criminal, entende que a lei não é exclusiva para as mulheres e deve ser considerada em sentido amplo, envolvendo todos que, no âmbito familiar, se encontram em situação de fragilidade. “Ou as relações homoafetivas entre indivíduos do sexo masculino não seriam abarcadas pela lei em estudo apenas em decorrência do gênero? Não há como negar que a preocupação do legislador foi além da proteção do gênero feminino, incluindo todas as relações domésticas e familiares”, diz em um voto.
Para a juíza Elaine Cavalcante, a Lei Maria da Penha é reconhecida pela ONU como uma das três melhores do mundo. Ressalva, apenas, que as penas são muito brandas. “No crime de ameaça, a pena varia de 1 a 6 meses de detenção”, lamenta. A juíza Teresa Rodrigues dos Santos, da 2ª Vara Criminal de Santo André, concorda. “Em especial o delito de ameaça e as contravenções penais de vias de fato e perturbação de tranquilidade. Também acho que deve ser criado um tipo penal específico para a perseguição que as vítimas sofrem pelos agressores – o stalking do Direito Americano –, assim como para a pornografia de vingança”, explica. Para ela, são duas situações extremamente graves, que não têm alcançado a proteção devida e cuja tipificação penal pode trazer um avanço.
O juiz Caio Moscariello Rodrigues, titular da vara especializada de São Miguel Paulista, diz que a especialização é fundamental. “Não se trata de simplesmente condenar e aplicar a pena prevista em lei, o que invariavelmente ocorre em varas criminais. Em violência doméstica, o problema não se resolve com a condenação, considerando que réu e vítima continuarão se relacionando, porque geralmente são casais que possuem filhos”, explica.
Ele entende que as medidas protetivas, que obrigam o agressor a se afastar da vítima e podem ser impostas rapidamente, sem aguardar o trâmite do processo, são o maior avanço da Lei Maria da Penha. “Já como deficiência estatal, aponto a existência de poucas instituições adequadas para abrigo e acolhimento de vítimas, e também para reeducação de agressores.”
São apenas sete casas-abrigo na cidade de São Paulo, que atendem a demanda de outros municípios. No interior a escassez é ainda maior. Cidades de maior porte, como Araraquara, Marília e São José do Rio Preto, dispõem de apenas um abrigo. São locais seguros, de endereço não divulgado, que oferecem moradia protegida e atendimento integral a mulheres em risco de vida iminente em razão da violência doméstica para que elas não precisem retornar à antiga residência.
As Delegacias de Defesa da Mulher – são nove na Capital, 14 na Grande São Paulo e 107 no interior e litoral, com uma por cidade – funcionam somente nos dias úteis e em horário comercial, e não nas madrugadas e fins de semana, quando a violência costuma ocorrer. Questões de Direito Civil, como divórcio, guarda, divisão de bens, continuam a ser tratadas de forma dissociada da violência doméstica.
Thiago Crepaldi é repórter da revista Consultor Jurídico.
Claudia Moraes é repórter da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 6 de março de 2017.
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